Relatório do governo federal divulga o drama de trans encarceradas

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Foto: Fábio Tito/G1

Uma pesquisa inédita do governo federal publicada na quarta-feira (5) sobre a realidade da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) no sistema carcerário mostra que travestis e transexuais sofrem constantes violências emocionais, físicas e sexuais, assim como práticas de tortura específicas da sua condição de gênero, dentro das prisões masculinas.

Encomendado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos por meio de uma chamada pública, o relatório “LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento” mostrou ser uma prática comum, nos presídios masculinos, que travestis e mulheres trans sejam tratadas como homens, sendo forçadas a cortar o cabelo, usar roupas masculinas, não terem o nome social respeitado e terem de abandonar a terapia hormonal.

“Existem padrões de violação e práticas de tortura que atingem especificamente a população de travestis e mulheres trans nos presídios” – Gustavo Passos, coordenador do estudo
O coordenador do estudo visitou pelo menos uma unidade prisional em cada um dos estados e Distrito Federal e entrevistou 131 pessoas LGBT encarceradas em todo o Brasil.

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“Essas pessoas estão mais vulneráveis à violência quando há rebeliões nos presídios”, afirma Passos, explicando que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são pessoas mais vulneráveis aos efeitos da precariedade do sistema prisional brasileiro.

O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo: são, pelo menos, 726 mil pessoas encarceradas, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de dezembro de 2017, o último divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). Ainda de acordo com o órgão, 89% dos detentos estão em unidades superlotadas.

Para a Defensoria Pública da União (DPU), ao encarcerar mulheres trans em presídios masculinos, “o Estado Brasileiro desrespeita o direito à identidade e à expressão de gênero, e, portanto, viola direitos humanos.”

Na contramão da realidade mostrada no relatório do governo federal, uma Resolução de 2014 do Conselho Nacional de Política criminal e Penitenciária (CNPCP) determina que pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas. E, dentro dos presídios, é direito da travesti ou transexual ser chamada pelo nome social e ser tratada de acordo com sua identidade de gênero – ou seja, com o gênero que ela escolheu se apresentar à sociedade.

Porém, a Resolução do CNPCP não foi o suficiente para garantir que a mulher trans Gabriela* (nome fictício para proteger a identidade da vítima), de 41 anos, presa entre 2013 e 2018 em um dos maiores presídios masculinos de São Paulo, fosse mandada para uma unidade feminina ou que tivesse sua identidade de gênero respeitada.

“Quando cheguei na cadeia, a primeira coisa que os agentes penitenciários fizeram foi mandar eu trocar minhas roupas íntimas femininas por masculinas e cortar meu cabelo”, lembra Gabriela.

Quanto à tortura física, a ex-detenta conta que, durante uma rebelião, foi usada como “escudo” pelos detentos e, quando a polícia entrou no presídio, foi “torturada com choques nos genitais” quando os policiais descobriram que ela era trans.

Vinda das Filipinas para tentar a vida no Brasil, Gabriela escolheu seu nome social ainda no país de origem. O nome foi inspirado em uma modelo de um comercial de xampu. “Eu amava o cabelo dela, sonhava em ter um igual. Deixei meu cabelo crescer por anos. Quando fui presa, ele batia na cintura, mas aí o cortaram e não o deixaram mais crescer”, lembra. “Eles [agentes] ficavam felizes ao verem que nos sentíamos humilhadas com o cabelo com corte de homem.”

Outra violação apontada no relatório e também vivida por Gabriela no presídio masculino foi a violência sexual.

“Na minha primeira noite na cadeia, fui mandada para uma cela com 12 homens. Fui estuprada aquela noite toda. Depois, ao longo da pena, era comum ser estuprada no banheiro.” Em um dos estupros, Gabriela contraiu uma infecção grave e precisou fazer uma cirurgia de reparação nos órgãos genitais.

Procurada pelo G1 sobre as violências narradas pela ex-detenta Gabriela, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) não se pronunciou.

Outra determinação da Resolução de 2014 do CNPCP diz que às travestis, trans e aos gays privados de liberdade nas unidades prisionais, por razões de segurança e vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos.

Das 508 unidades prisionais que participaram do estudo do governo federal, somente 106 têm celas específicas para a população LGBT.

“O Norte é a região que apresenta o panorama mais grave quanto à atenção as demandas dessa população. Nessa região, apenas uma única unidade prisional, no Pará, tem 2 celas para LGBT”, aponta Passos.

Gabriela conta que no presídio em que esteve até 2018 haviam celas específicas para a população LGBT. Essas celas eram apelidadas de “Seguro”, “mas de seguro não tinha nada.” “O Seguro era visto como um lugar de punição para as trans e travestis, uma espécie de solitária, onde a presa ficava sozinha e sem comida.”

A filipina conta que foi duas vezes para o Seguro. Na primeira vez, foi para o local após tentar enviar uma carta à Defensoria Pública pedindo acesso à terapia hormonal, que não tinha no presídio, e denunciando os estupros sofridos constantemente.

“Mas o diretor do presídio interceptou a minha carta. Como castigo, fui mandada para o Seguro por 13 dias. Mal me davam água e quase nada de comida. Fiquei só pele e osso”.

Segundo a Resolução do CNPCP, as celas específicas para essa população não devem se destinar à aplicação de medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo, assim como a transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico ficará condicionada à sua expressa manifestação de vontade.

“Além das violências, o grande problema do sistema carcerário no Brasil é que ele tenta fazer com que você perca as características de gênero que você escolheu fora da prisão”, afirma Gabriela sobre a falta de acesso à terapia hormonal dentro do presídio. Segundo Passos, de maneira geral, nenhuma unidade prisional visitada oferecia terapia hormonal à população trans.

Segundo o Depen, “a oferta de tratamento hormonal não faz parte da saúde básica, fazendo parte da Atenção Especializada, sendo necessário o encaminhamento desta presa à rede extramuros”.

“Às pessoas transexuais em privação de liberdade deve ser garantida a manutenção do seu tratamento hormonal”, rebate o defensor regional de Direitos Humanos de Pernambuco, André Carneiro Leão.

“O Poder Público (União, nas penitenciárias federais, e os estados, nos demais estabelecimentos penais) devem sim fornecer o tratamento hormonal e todas as medidas de prevenção às doenças sexualmente transmitidas, como os preservativos.”

Além do fator estético, a falta da reposição hormonal também pode desenvolver doenças nessa população, como a osteoporose.

Quanto ao número da população LGBT encarcerada, o Depen informou que não tem esses dados, mas que “está em curso um detalhado levantamento de dados de pessoas presas autodeclaradas LGBT”, que será usado para “qualificar políticas específicas para esta população.”

A pesquisa realizada pelo governo federal não coletou dados quantitativos, mas, durante o ano de sua produção, 2019, o pesquisador Passos afirma que havia pelo menos uma pessoa trans ou travesti presa em todas as unidades visitadas.

G1