Socióloga estuda arrependimento de eleitores bolsonaristas
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
“São todos iguais. PT, PSDB. Poder é poder. Não querem saber da gente. É tudo corrupto, tudo… Eu não voto por esquerda nem direita, voto na pessoa. Ah, eu acho que Bolsonaro é diferente e pode mudar tudo isso. A gente acredita nele. A gente tem fé nele, que ele vai melhorar.” As frases são de um dos 24 eleitores das classes C e D que votaram em Jair Bolsonaro entrevistados pela socióloga Esther Solano em março do ano passado, para uma das mais interessantes pesquisas já feitas no Brasil sobre o voto conservador e, em especial, no ex-capitão. Professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Complutense de Madri, Solano já havia se notabilizado ao mergulhar no mundo dos black blocs em 2013 e dos manifestantes pró-impeachment de 2016. Desde 2018, ela se debruçou sobre as razões que levaram 57,7 milhões de brasileiros a eleger Bolsonaro e, por meio de entrevistas de profundidade, algumas com duração de horas, conseguiu definir os contornos religiosos, morais, antiesquerdista, antissistema, antipartidário e anti-intelectual que fizeram Bolsonaro chegar lá. E, em entrevistas mais recentes, feitas em setembro do ano passado, detectou que a maioria dos votantes de 2018 vem mudando sua percepção sobre o presidente — de maneira negativa.
O caráter antissistêmico e contra partidos — em especial o PT, mas não só ele — foi um dos primeiros traços que emergiram na pesquisa de Solano. Bolsonaro representaria uma mudança em relação ao mar de lama que a Lava Jato expôs. A palavra “esperança” ou “mudança” atrelada à figura do presidente apareceu em todas as conversas. O marketing de Bolsonaro, iniciado bem antes da campanha, por meio de suas redes sociais e de aparições em programas popularescos na TV, conseguiu consolidar sua imagem principalmente para as classes C e D como um homem honesto, autêntico, firme para não ser engolido pelas raposas de Brasília.
Antimainstream, Bolsonaro conseguiu capturar o voto de protesto, mergulhado em profunda frustração e raiva contra o sistema político. Diferentemente dele, as siglas tradicionais são vistas como fisiológicas e preocupadas apenas em proteger suas mordomias.
A negação do sistema tem na percepção de corrupção generalizada seu ponto de partida. O fazer político, que seria corrupto em sua essência, desperta nos entrevistados vergonha e rejeição. A Lava Jato aparece com importância vital na história nacional. É identificada como a primeira grande operação de combate à corrupção que realmente conseguiu punir os criminosos — o que de fato ocorreu. Alguns reivindicam-na como uma política de Estado, muitas vezes atrelada a um conceito de justiça messiânica sobre o inimigo. Sergio Moro aparece nas entrevistas como “herói”, “salvador”, “um enviado”, alguém capaz de “limpar o Brasil”. A visão dualista da Justiça, do bem contra o mal, se revela por respostas que falam em “limpar”, e não em “fazer justiça”.
O fantasma da esquerda inimiga passa a incluir atores que independem do espectro político. As entrevistas apontam que ativistas de direitos humanos e professores, por exemplo, também passam a ser identificados como adversários. “Cidadão de bem é que trabalha, paga imposto, tem vida decente e está desprotegido. Cadê os direitos humanos da vítima? Direitos humanos acaba sendo ruim porque é para bandido, como essa coisa da ‘bolsa presidiário’. E quando o bandido mata o policial? Aí não é direitos humanos?”, respondeu um entrevistado em fevereiro do ano passado, que, evocando o Escola sem Partido, vê as salas de aula como um palanque político. O anti-intelectualismo mira professores, intelectuais e jornalistas, que são intermediadores cujo papel é colocado em questionamento. Da mesma maneira que não se deve aceitar uma política conduzida por profissionais, verdades científicas e acadêmicas validadas por intelectuais também estão em xeque.
A pós-verdade tem terreno fértil. No vale-tudo para atacar esses inimigos, os alvos são apresentados como pessoas que tentam desmanchar o modelo de família tradicional cristã, e conteúdo falso ou distorcido é citado pelos entrevistados como um exemplo de por que eles representam o perigo. Geralmente são informações envolvendo sexualidade — sexualidade infantil principalmente. Evoé, mamadeira de piroca!
Conforme o historiador Francis Fukuyama identificou em seu último livro, Identity (Identidade), ao falar sobre como os populistas de direita vêm ascendendo no mundo, ganha força o ataque às pautas identitárias, dos movimentos feministas, LGBT e negro. Os entrevistados mostram saudade do ideário masculino da família tradicional heteronormativa e patriarcal, que, para eles, está sob ataque. São indivíduos que se sentem agredidos quando duas pessoas do mesmo sexo se beijam na rua ou quando observam que a visibilidade das pautas feministas é cada vez mais cotidiana. “E a Lei Maria da Penha para o homem? A homofobia é boa para o lado deles, mas e para nosso lado? Nós somos normais, não temos essas frescuras aí… Se nós falar viado para o viado, ele se ofende e vai se defender, e nós não pode. Se falar negro para o negro, também. Se tocar na mulher, ela tem Maria da Penha, e a gente? Não é direitos iguais? A corda sempre arrebenta para os mais fracos e os mais fracos somos nós. Deveriam ter uma lei para proteger a gente também”, disse um dos entrevistados, em março.
Um último e determinante traço identificado por Solano foi o papel da religião como reguladora da vida do bolsonarista. “Voto no Bolsonaro porque ele defende a família, ele é do lado religioso. O PT queria fazer o kit gay, ia liberar os presos, e também isso das crianças escolherem na certidão se querem ser meninos ou meninas. Ia acabar com a família. Uma bagunça. Teve até aquela coisa de Bíblia gay”, disse um dos entrevistados. A crise de valores identificada por eles se deve ao abandono dos princípios éticos religiosos, e é premente a necessidade da volta da religiosidade como vetor moral da sociedade. Em paralelo à religião, Solano também identificou uma forte matriz militarista, capaz de dar ordem ao caos ético e moral, à falta de disciplina, autoridade e respeito. “Falta ordem” foi uma das frases mais repetidas.
Curiosamente, quando voltou aos entrevistados, com o governo Bolsonaro já contando nove meses, Solano identificou que foi exatamente a bagunça institucional causada por ele o fator que mais o afastou de seus eleitores. “A classe C e D bolsonarista está mostrando um arrependimento no voto porque Bolsonaro é visto como uma pessoa muito polêmica e violenta. Isso era algo aceitável durante a campanha, mas não durante o governo. A visão deles é que o presidente cria instabilidade e conflitos, é incapaz de manter a governabilidade e a estabilidade de que o país precisa”, afirmou Solano, que, com exceção do bolsonarista hardcore, vê um descolamento gradual e crescente de Bolsonaro.
Mas, segundo Solano, esses eleitores não apontam, nas entrevistas, a esquerda como uma opção. “Não veem no PT uma esperança para representar os trabalhadores. Há um setor com vazio político dos que não se sentem mais representados pelo bolsonarismo nem pela esquerda”, percebeu a pesquisadora. O tema do combate à corrupção e da segurança pública seguem como valores fundamentais. E, segundo os entrevistados, quem mais personifica esses ideais se chama Sergio Moro.