Atos do dia 15 dividem direita, diz socióloga

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Foto: Carl de Souza/AFP

Sociólogos não são astrólogos e, portanto, apenas “ex post”, depois do fato consumado, é que podem fazer análises mais precisas. Angela Alonso, professora da USP e pesquisadora do Cebrap, vem mapeando, desde 2013, quais são e o que defendem os diferentes grupos que tomaram as ruas do país. O “mapa” do que se viu nas ruas, diz ela ao Valor, mudou bastante após a posse de Jair Bolsonaro.

Houve um fenômeno que ela chama de “unificação do espanto” com atos cotidianos do presidente, o que desalinhou o campo da direita e afastou liberais e conservadores da ala autoritária, a única hoje realmente identificada com o presidente.

Para a socióloga, os ruídos para os chamados dos atos do dia 15, pró-Bolsonaro, foram muitos e a intensidade certamente não será a mesma vista no passado. Ela ousa uma certa previsão do futuro: o Brasil assistirá, nos próximos anos, a uma série de pequenas manifestações violentas, fruto de confronto com polícias cada vez mais repressivas.

Em meio a questionamentos sobre o apoio de uma elite – que ela considera “tacanha” – ao governo Bolsonaro, Alonso crê que o presidente cumprirá seu mandato até o fim.

Veja trechos da entrevista:

Valor: A senhora fez mapeamentos das manifestações de ruas desde 2013 e classificou os protestos em três estilos: o patriota, o socialista e o autonomista. Há uma grande manifestação marcada para o dia 15, pró-Bolsonaro, e outras contrárias ao governo (dias 14 e 18). Após a posse de Bolsonaro, houve modificações nos perfis desses protestos?

Angela Alonso: Esses três grandes campos foram se diferenciando ainda em 2013. Em 2013, esses autonomistas – como o MBL, que parecia ser a grande novidade – eram muito pequenos, tanto em volume de ativistas quanto em capacidade de mobilizações. Quando adiante apareceram protestos de rua, sobretudo em março de 2015, a rua foi tomada pelo campo patriota, que cresceu de maneira inesperada. Temos em 2013 os três campos juntos. Depois, em 2015, tem o predomínio da turma patriota. Quando começam as conversas sobre o impeachment, há uma rearticulação: de um lado, a esquerda se unifica. Do outro lado, o campo patriota começa a ter uma diferenciação interna. Tem se falado muito no Brasil de uma nova direita, da nova onda conservadora, como se estivéssemos diante de algo muito homogêneo. Mas desde o impeachment já dava para ver que há três grandes subcampos na direita.

Valor: Quais seriam eles?

Angela: Tem um grupo mais autoritário, a favor de intervenção militar, reacionário nos costumes e muito patriótico. Mas há outros dois grupos de maior envergadura: os conservadores no sentido tradicional, mas dentro do espectro democrático, e os liberais, em que há inclusive posições mais parecidas com a dos autonomistas no que diz respeito a liberdades individuais. Não são grupos tão próximos deste lado autoritário como possa se pensar. Há uma diferenciação interna e complexidade que precisa ser melhor estudada.

Valor: O que aproxima esses liberais do campo dessa nova direita é somente a pauta econômica?

Angela: É, eles são liberais no sentido do liberalismo econômico, contra a intervenção do Estado, mas se parecem com a esquerda autonomista na grande ênfase que têm com a auto-organização da sociedade.

“Na história do Brasil, todas as vezes em que há crise a direita engole rancores e se aglutina. Na esquerda, a união é relativa”

Valor: Os conservadores e os liberais têm numericamente muito mais expressão do que os reacionários de extrema-direita?

Angela: Estou neste momento fazendo esse mapeamento para concluir essa contabilidade. É um fenômeno bastante pulverizado. E ele está em crescimento, então todos os dias aparecem movimentos novos, organizações novas. Contabilizo os que participam de protestos de ruas desde 2013. Até o momento há mais ou menos 311 organizações e grupos mapeados (criados desde 2011, com bandeiras formais). Desses, mais da metade pertence a esse grande campo patriota: liberais, conservadores e autoritários. São expressivos em número e bem financiados.

Valor: Financiados por quem?

Angela: Isso é muito mais difícil de aferir. Durante os grandes protestos, como em março de 2015, há evidências indiretas. A Fiesp forneceu lanches para alguns, hotéis da Avenida Paulista franquearam banheiros, carros de som foram emprestados… Então houve apoio indireto. Mas é mais difícil mapear.

Valor: Assim como no campo patriótico da direita, no campo socialista, da esquerda, essas subdivisões também são perceptíveis? O fenômeno é igual para os dois lados?

Angela: Não, vem sendo diferente. O campo patriótico (chamo assim porque todos recorrem aos símbolos nacionais, comungam um “verde-amarelismo”) suplantou essas diferenças ao longo da campanha do impeachment da Dilma e eles se unificaram numa grande aliança nacional. Conseguiram fazer a campanha juntos, lançaram candidaturas eleitorais, vários se elegeram. São muito pragmáticos. Do lado da esquerda, houve uma demora grande de articulação entre movimentos autonomistas e socialistas – a conversa foi mais difícil. Depois da eleição do Bolsonaro, há uma unificação de espanto que pega tanto esses campos autonomistas e socialistas, como parte de grupos liberais e conservadores que não se identificam plenamente com a condução que o governo está dando ao país.

Valor: Isso explicaria os ruídos de uma direita mais moderada com a extrema-direita, um confronto já perceptível nas redes sociais e na ausência do protesto dia 15?

Angela: É, o MBL, por exemplo, declarou que não vai. Você tem aí um desalinhamento dos que estavam antes alinhados, à direita. Agora, do lado da esquerda, a unificação também é relativa. Três protestos foram marcados: dias 8, 14 e 18. O que acontece quando se chamam três protestos consecutivos? Você divide os participantes. Isso mostra uma dificuldade de coordenação.

Valor: Quais suas suposições sobre essas dificuldades de organização do campo da esquerda?

Angela: Na história brasileira, todas as vezes em que há uma crise a direita engole seus rancores mútuos e se unifica. E a esquerda briga entre si. Observamos na última eleição essas disputas entre os Ferreira Gomes e os petistas. Essas lideranças, que poderiam confluir neste momento, não estão fazendo este esforço. São raras as figuras da esquerda que estão buscando essa articulação, esse diálogo mais amplo. Tem o [Marcelo] Freixo, no Rio, o Flavio Dino, no Maranhão. Mas são exceções. O PT precisou investir na polarização, com o Lula Livre, e agora é muito difícil voltar a uma posição mais moderada.

Valor: Qual a sua expectativa, em relação aos atos do dia 15, considerando as divisões da direita? O governo ensaiou uma nova narrativa, em defesa das reformas.

Angela: Houve muito ruído nesse chamado. Agora, o cidadão comum não sabe muito bem para que ele deve ir às ruas. Isso tem um efeito de desestímulo. E movimentos com capacidade de mobilização, como o MBL, se retiraram. Movimentos menos identificados com essa ala mais raivosa estão com as barbas de molho. Agora, o que a gente não sabe, porque não há pesquisa que identifique isso ainda, é o tamanho deste grupo autoritário que está subterrâneo. O que a gente viu agora no Ceará é que a polícia tem uma capilaridade grande. Em todas essas manifestações vão as famílias dos policiais. E essa base é bolsonarista. Ele sempre teve grande identificação com esses grupos, é um grupo com o qual fala diretamente. Para mim, a dúvida é saber o quanto da corporação vai. Como ele deu uma recuada no chamado, os sinais agora são ambíguos, se é para ir ou não, se é a favor do [Paulo] Guedes, do presidente… Nas redes e nas páginas dos movimentos não há aquele volume de chamamento que as grandes manifestações tiveram.

Valor: Essa identificação das polícias com o bolsonarismo, como a senhora cita, acende algum alarme, como socióloga, sobre a preservação do processo democrático?

Angela: Todo mundo que está em sã consciência no Brasil hoje está preocupado com a democracia brasileira. É muito surpreendente, por exemplo, essa notícia de reunião do Bolsonaro com um novo conselho empresarial na Fiesp, em que os empresários só disseram a ele como o mundo vai bem. Essa parte da bonança a maioria dos brasileiros não está vendo de nenhum lado. Nem do lado econômico, que eles prometeram, mas sobretudo do lado político. O que temos visto, desde que Bolsonaro assumiu, é uma sequência de ações contrárias à democracia. É um presidente que claramente se posiciona com total falta de identificação com valores democráticos, ele como indivíduo, e com baixa capacidade de entender o próprio funcionamento das instituições democráticas. As piadas com jornalistas, a política de factóides que pratica cotidianamente, mostra o grande despreparo para o exercício do cargo. Ele fala para os eleitores fiéis, para a sua base, mas se comunica muito mal com o país. O que é espantoso é que você tenha grandes empresários, grande parte da elite econômica brasileira, apoiando um governo deste tipo. É estarrecedor.

“Desde o impeachment da Dilma já havia três subcampos da direita: os reacionários, os conservadores, e os liberais”

Valor: Em um artigo recente, em que a senhora questiona quem são os bárbaros no país, é visível essa crítica à elite. É por que considera a elite condescendente com Bolsonaro? Faz diferenciação dessa elite?

Angela: A gente talvez tenha tido na história brasileira uma visão equivocada de quem eram as nossas elites até há pouco. Agora estamos vendo com mais clareza, à luz plena, como pensam essas pessoas que ocupam posições de comando. O que tem sido frequente, não só na eleição do Bolsonaro, mas desde o início da crise do governo Dilma, é uma visão muito auto-interessada das elites, sem projeto de país, que é o que se costuma esperar de elites. Toda vez que o assunto em pauta diz respeito a interesses econômicos e de natureza corporativa que podem beneficiar esses grupos, parece que qualquer preço pode ser pago. Tem aí uma falta de compromisso civilizatório, uma falta de atenção para questões que são fundamentais na construção de uma democracia plena, que é o acesso completo de todos os brasileiros a direitos, a renda mínima, a dignidade mínima. Não vejo, com raríssimas exceções, pronunciamentos de grandes empresários, de grandes financistas, nesta direção. As grandes preocupações, em boa medida, são expressas pelo Paulo Guedes, que é ‘vamos diminuir o Estado e facilitar os nossos negócios’. Então, sob este ângulo, acho que temos – e vou usar um termo forte – uma elite tacanha. Porque este tipo de projeto tem perna curta. Se o país seguir do jeito que vai, essa desigualdade que já é imensa pode gerar tanto esvaziamento completo do mercado consumidor interno como manifestações de insatisfação de formas violentas. Nem todas as manifestações antigoverno terão esse formato que esperamos no dia 15. Em situações de crise aguda, acontecem saques. Essa situação de desestruturação da vida social cotidiana pode acontecer. E isso também é ruim para os negócios. Por isso digo que esses empresários não estão tendo visão de longo alcance, porque não enxergam as consequências dessas próprias ações.

Valor: A senhora inclui nesta definição de elite parte do empresariado e o mercado financeiro?

Angela: Sim, o mercado financeiro, principalmente, parece que se desterritorializou de tal maneira que a sociedade na qual ele se encontra não tem mais relevância. É como se estivessem imunizados, num mundo próprio, numa bolha. Tenho muita dificuldade de entender essa lógica.

Valor: O próprio Bolsonaro chegou a mencionar há alguns meses o temor de manifestações sociais, como no Chile, mas sob outros argumentos. Mas quando se fala em desigualdade e precarização de direitos é possível imaginar que desfavorecidos contestem a legitimidade do governo. Mas isso poderia chegar às ruas, pelo histórico do Brasil?

Angela: No Brasil não se conta muito sobre episódios violentos. Um episódio que gosto sempre de lembrar é a “Revolta do Vintém”, quando subiu um vintém na passagem do bonde, ainda no Império. A população do Rio de Janeiro se rebelou arrancando trilhos nas ruas, com uma resposta direta. Houve uma batalha campal até que o governo recuou. Há vários episódios assim na história brasileira que não são muito documentados e contados. Saques são fenômenos tópicos, com pauta concreta, e que não tem segmento, não se transforma numa ação política plena, com liderança. Esses eventos eu acho que podem acontecer no Brasil se a situação econômica piorar. Agora, uma manifestação mais organizada contra o governo seria mais difícil, porque aí precisa de recursos, organização, tempo e energia das pessoas. Desde 2013 os brasileiros estão sendo chamados à política numa intensidade que há muito tempo não se via, como nas Diretas Já e no impeachment do Collor. Isso acaba levando a uma exaustão.

Valor: Sobre a divisão da direita e a dificuldade de mapear o real tamanho da ala autoritária, parece nítido o descontentamento entre conservadores e liberais com ações do Bolsonaro. É possível transpor isso, sob o ponto de vista de mobilizações, com uma identificação desses setores com lideranças ao centro?

Angela: Esse exercício é muito prematuro. Motivos para um processo de impeachment contra o Bolsonaro são abundantes, mas não existe uma maioria política no Congresso nem uma multidão na rua que possa levar esse processo adiante. Então é de se esperar que ele cumpra seu mandato. Como ele é tão imprevisível e tem esse presidencialismo consanguíneo, com os filhos participantes do exercício do governo, e eles têm vários problemas judiciais a enfrentar, pode ser que venha a aparecer uma crise que desestabilize mais seriamente este governo. Mas, para o bem ou para o mal, acho que esse governo tem todas as condições, tendo sido eleito, de concluir seu mandato.

Valor: A esquerda tem dificuldade de se alinhar porque não encontra uma narrativa que a unifique, ou por problemas de financiamento, com a falência dos sindicatos?

Angela: Essa quase falência dos sindicatos tem um peso. Mas em 2013 quem começou nas ruas não foram os grandes sindicatos. E o que havia em 2013 e ainda não se resolveu na esquerda é um confronto entre duas formas organizacionais. Os grupos autonomistas são horizontalistas, eles não reconhecem as lideranças verticais, a centralização de poder num líder ou em uma diretoria. E os grupos socialistas seguem com essa hierarquia interna, em busca de lideranças simbólicas que dão a cara aos movimentos, veja, por exemplo, o [Guilherme] Boulos. Então tem uma diferença de modelo de convocação, de organização da rua, e isso gera muito atrito. E tem um problema de agenda: não há o que unifique. O Lula Livre é personalista. O campo da direita tinha a agenda contra a corrupção, e cada um pode imaginar a corrupção a sua maneira e ir para a rua. A esquerda não tem uma bandeira clara.

Valor: A bandeira em favor da democracia pode mobilizar?

Angela: Pode ser, como foi nas Diretas Já. Mas veja os últimos eventos convocados: tem o das mulheres, o da educação… são pautas separadas. E também o governo contribui para isso, porque ataca tudo ao mesmo tempo e os diferentes grupos têm reações corporativas específicas. Tem os artistas, os professores, as minorias sexuais, os ambientalistas… Todo mundo está sob ataque e todo mundo tem razão para fazer protestos específicos. Isso gera uma pulverização. Deste ponto de vista, a estratégia do Bolsonaro é muito bem-sucedida, porque essa metralhadora giratória dele pulveriza as reações.

Valor: Pelo que se observa na conjuntura política hoje, as pulverizações, no campo da esquerda e até na direita, tendem a ocorrer até o fim do governo Bolsonaro?

Angela: Em democracias, se mantidas as condições mínimas de funcionamento, essas manifestações vão acontecer o tempo todo, com frequência e muitas temáticas. A questão é o tamanho e a resposta. O que acontece após 2013, e que é interessante notar, é que a polícia estava muito despreparada para lidar com grandes manifestações. Usou táticas da ditadura e foi muito questionada. Mas desde 2013 houve uma tentativa de incorporação de novas técnicas de repressão e contenção de manifestações, como gostam de dizer. Agora que temos gestões com linhas conservadoras mais claras, como aqui em São Paulo e no Rio, o uso da polícia, como vimos na Assembleia Legislativa de SP, será constante. Está claro que a polícia não vai esperar. Vai chegar com a estratégia de contenção. Deve se tornar frequente são os protestos pequenos com violência. Repressão gera respostas. Você nunca sabe quem começou, se o manifestante ou a polícia. Isso é irrelevante. A estrutura montada é para gerar o conflito, porque vai uma polícia armada, violenta, que não vai dialogar, e manifestantes quase sem recursos. Infelizmente, acho que essas cenas serão cada vez mais constantes.

Valor: É recorrente o confronto do Executivo com Congresso. É algo inerente à personalidade de Bolsonaro ou o conflito com os Poderes é estratégia autoritária que pode minar o processo democrático?

Angela: As duas coisas. Tem algo da personalidade dele, que tem gosto por esse tipo de papel e desempenho. Mas é também uma estratégia que vem dando certo com o Trump, que ele adora e emula. Então ele vem fazendo sempre, desde a campanha eleitoral, declarações muito fortes, politicamente incorretas, que atacam diretamente ou muitas pessoas ou um grupo específico, e que expressam o que muita gente acha, mas não diz. Exemplo: comentários racistas e homofóbicos. Ele transita sempre n limite entre o sério, a paródia, e a piada, porque isso permite que possa recuar. Tem muito de estratégia. Quando começa o “onde está o Queiroz”, “Quem matou Marielle”, “Quem matou Adriano Nóbrega”, “o resultado do PIB”, todos esses assuntos importantes que o país precisa discutir, ele vem com duas ou três declarações deste tipo e, no dia seguinte, o Twitter e os jornais estão reagindo a isso em vez de discutir a questão substantiva. É uma estratégia diversionista e muito bem-sucedida.

Valor Econômico