Brasil depende da China para respirar
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À medida que aumentam os casos confirmados de coronavírus no Brasil, o país se torna mais dependente da China, num momento sensível das relações entre os dois países. Uma semana depois do incidente diplomático provocado pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), os presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping não se falaram, e a Embaixada da China ainda aguarda um pedido formal de desculpas do parlamentar.
Com a epidemia do novo vírus controlada, há cerca de duas semanas a China voltou a se projetar como o maior fornecedor de máscaras de proteção e aparelhos para Unidades de Terapia Intensiva (UTI), de que necessita com urgência o sistema de saúde brasileiro, que pode entrar em colapso em um mês, no auge das contaminações no país.
“Nós precisamos da China, não há e não haverá capacidade de suprimento [dos aparelhos] a partir dos Estados Unidos”, alerta um dos maiores especialistas brasileiros em equipamentos médicos, PhD em engenharia biomédica, e atualmente radicado nos Estados Unidos.
Com passagens pelo setor público e privado nacional, este especialista tem sido procurado para intermediar a compra de máscaras e ventiladores respiratórios para vários países. Há cerca de cinco semanas, quando a China ainda atravessava uma fase crítica da pandemia e a produção local estava paralisada, ele foi acionado por um grupo chinês para encontrar fornecedores americanos de máscaras respiratórias do tipo 3PLY, que é a mais simples, até do que a N-95, que filtra 95% das partículas biológicas ou não biológicas.
Os chineses queriam encomendar pelo menos 10 milhões de unidades, mas ouviram recusas de fabricantes e distribuidores de primeira linha. Nos EUA, segundo este especialista brasileiro, com o aumento da procura pelos respiradores até no varejo, o que existe em grande quantidade disponível está nas mãos de especuladores, ao preço de 5 dólares por unidade, podendo atingir o dobro. Antes da crise, uma máscara N-95 – recomendada para uso hospitalar – saía por US$ 1 a unidade.
A China normalizou sua linha de produção, mas está sobrecarregada pela demanda global, especialmente, dos países da União Europeia. Os Estados Unidos estão com os estoques esgotados. Depois da China, outros países mantêm linhas de produção em grande escala, mas bloquearam as exportações, como Índia e Taiwan.
Por isso, mesmo diante da saia justa diplomática, somente a China é capaz de atender a demanda por máscaras e outros equipamentos de que o governo brasileiro necessita para enfrentar a covid-19, reforça esse especialista.
Naturalmente, os preços estão inflacionados. A máscara mais simples, 3PLY custava entre R$ 0,10 e R$ 0,15 antes da crise. Agora, nos EUA, estavam sendo comercializadas entre US$ 0,30 e 0,40. Na China, saem por US$ 0,28 a 0,31.
Os EUA também não exportarão ventiladores pulmonares para leitos de UTI. Os seis fabricantes americanos produziam cerca de 5 mil equipamentos por mês. O governo americano vai comprar pelo menos 140 mil unidades. Há disponíveis equipamentos usados, mas que sequer são recondicionados. “Em uma urgência, podem ser uma alternativa”, pondera o consultor brasileiro.
Nesse cenário, gigantes do setor automobilístico como GM, Ford e Tesla anunciaram a abertura de espaço em suas fábricas para produzir ventiladores mecânicos. Apesar do aceno semelhante da GM, o Brasil não tem base produtiva na escala necessária para suprir a demanda nacional pelos aparelhos. Além disso, muitos componentes desses ventiladores são chineses. Com a explosão da demanda, e o período de paralisia da produção chinesa, há falta de peças no mercado.
Outro complicador para suprir a demanda nacional é a forma de pagamento. Para a aquisição de máscaras, ventiladores, termômetros, os fornecedores exigem pagamentos à vista, independentemente se o comprador é público ou privado.
No caso da China, o governo é sócio de algumas empresas, por isso possui cotas de produção. Se o comprador for outro governo e tiver de pagar com carta de crédito, o caminho é pedir ajuda e adquirir via governo chinês – daí a necessidade de boas relações diplomáticas com o país asiático. Em geral, a prática brasileira é a compra por meio de carta de crédito: 30% de adiantamento no embarque do produto, e o restante quando o equipamento chega, é conferido e recebido.
Uma nota técnica do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) divulgada neste mês identificou que 30% das regiões de saúde do país são vulneráveis, devido a uma combinação de infraestrutura de leitos de UTI aquém do mínimo e mortalidade por condições similares à covid-19 acima da média nacional.
O estudo mostra que em um cenário hipotético de 20% da população brasileira infectada, e 5% dos infectados necessitando cuidados em UTI por cinco dias, 294 das 436 regiões de saúde do país ultrapassariam a taxa de ocupação de 100% dos leitos. Em particular, 53% delas necessitariam ao menos o dobro de leitos-dia em relação a 2019 para tratar os casos mais críticos. Nem todos os leitos contam com os respiradores necessários.
Nos últimos dias, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deu mais uma sinalização da dependência brasileira em relação à China: os primeiros testes rápidos para detecção do novo coronavírus – no contexto da promessa de garantir até 10 milhões deles nas próximas semanas – serão fornecidos por uma empresa daquele país.
É nesse cenário de dependência estreita que os laços diplomáticos com a China continuam esgarçados. No último comunicado, depois que o presidente Bolsonaro tentou sem sucesso um telefonema para Xi Jinping, a Embaixada da China no Brasil asseverou que Eduardo Bolsonaro “tem que pedir desculpa ao povo chinês por sua provocação flagrante”. Como o deputado não acena com esse gesto, o impasse aprofunda-se na mesma proporção que a doença no país. O Brasil depende da China para “respirar” e atravessar a crise com algum fôlego.