Coronavírus foi devastador para Bolsonaro

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Foto: Sergio Lima/AFP

É notória a disposição de Jair Bolsonaro para testar as instituições, desprezar o conhecimento científico e disparar ataques a adversários, reais ou imaginários. Desde o início de seu mandato, o presidente usa a estratégia do tensionamento com o objetivo de manter sua base mobilizada — e quase sempre dá certo. A sucessão de provocações desnecessárias, agressões gratuitas e desatinos diversos pouco lhe custou até agora em termos eleitorais, como mostram as mais recentes pesquisas de opinião. Com a crise do coronavírus, a situação parece mudar de figura. Depois de tachar a pandemia de fantasia, reclamar de um clima de histeria e tentar minimizar a todo custo os efeitos da Covid-19 na economia e na saúde pública, Bolsonaro começou a desidratar nas redes sociais. Um monitoramento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV) descobriu que caiu quase pela metade o peso dos bolsonaristas nas interações sobre coronavírus nas redes sociais e, em contrapartida, aumentou a participação de grupos que fazem menções críticas ao governo e compartilham informações sobre a doença. Já a Quaest Consultoria, que elabora um ranking de popularidade digital, detectou queda na capacidade das postagens do presidente de provocar reações positivas. Ou seja: as hostes bolsonaristas nas redes sociais registraram baixas, em quantidade e influência.

No mundo real, onde as pessoas ficam doentes, perdem o emprego e se sentem inseguras em relação à própria vida, o efeito foi mais devastador. Pela primeira vez desde o início do governo, houve panelaços contra o presidente em capitais do país. A possibilidade de abertura de processo de impeachment também reapareceu nas conversas de políticos, ainda que tratada como algo inoportuno e improvável, já que Bolsonaro mantém pelo menos 30% do eleitorado a seu lado. O presidente também enfrentou defecções importantes em suas fileiras. Cotada para o posto de vice de Bolsonaro na última campanha, a deputada estadual Janaina Paschoal chegou a defender o afastamento dele do cargo e sua substituição pelo general Hamilton Mourão, depois de o presidente ter confraternizado com populares que estavam em frente ao Palácio do Planalto, no domingo 15, durante as manifestações convocadas a favor de seu governo e contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Naquele dia, já era conhecida a orientação do Ministério da Saúde para que fossem evitadas aglomerações. Também já era de conhecimento público a suspeita de que Bolsonaro pudesse estar infectado pelo coronavírus. Ao cumprimentar e tirar fotos com populares, o chefe da nação, a quem cabe dar exemplos, poderia ter contribuído para a disseminação do vírus. Uma tremenda irresponsabilidade.

O que parecia um ato de esperteza política logo se revelou um desastre. Dois exames descartaram que Bolsonaro estivesse infectado, mas dezessete pessoas que estiveram com ele na viagem aos Estados Unidos testaram positivo para o vírus — entre eles os ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e Bento Albuquerque, de Minas e Energia (veja a matéria na pág. 52). A tentativa inicial de Bolsonaro de caracterizar a crise como algo pequeno ou desimportante enquanto o mundo desabava revelou um presidente incapaz de compreender a realidade, o que é grave, ou um presidente que tenta desviar o foco de sua incapacidade de liderar, o que também é muito grave. Mirando João Doria e Wilson Witzel, que despontam como seus rivais em 2022, Bolsonaro partiu para o que sabe fazer de melhor: o confronto político. Criticou os governadores por restringirem a circulação de pessoas, sob a alegação de que essa medida, recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), atrapalharia o desempenho econômico. Atrapalha, claro, mas o desempenho econômico não será melhor num cenário de milhões de brasileiros doentes. É preciso primeiro salvar vidas.

O contraste com outros líderes também foi devastador para o mandatário brasileiro. Enquanto Bolsonaro insistia no mantra da fantasia e delegava ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a tarefa de lidar com o problema, presidentes de outros países assumiam a linha de frente. Até Donald Trump, a quem o presidente gosta de emular e bajular, emergiu (tardiamente, mas o fez) no centro do tablado e passou a comandar os trabalhos. Bolsonaro, no entanto, preferiu perder tempo e energia confrontando velhos adversários. Pelo raciocínio do presidente, a possibilidade de uns pontinhos a mais no PIB compensaria o risco de afrouxar o controle da disseminação da doença. Esse alheamento da realidade levou os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário a se reunirem, na segunda-feira 16, para tratar do coronavírus sem a presença de Bolsonaro.

Num gesto de retaliação, também impróprio para o momento, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, do Senado, Davi Alcolumbre, e do Supremo, Dias Toffoli, convidaram para o encontro apenas o ministro da Saúde. Bolsonaro considerou a iniciativa uma afronta — e, como de costume, enxergou ali uma manobra conspiratória de seus adversários. Por meio de assessores, passou a fritar Mandetta, como se este tivesse cometido algum tipo de traição ao participar da reunião. Nos bastidores, também retomou a carga contra os líderes do Congresso. A aliados, disse que Maia, a quem chama pejorativamente de “gordinho”, trama para prejudicar o governo e dificultar sua reeleição. Segundo o presidente, o deputado teria fechado um pacto com Doria para ser vice do tucano em 2022. Alcolumbre faria parte dessa aliança, porque seria “pilotado como drone por Maia”. Depois da manifestação a favor de seu governo e contra o Congresso, Bolsonaro chegou a desafiar Maia e Alcolumbre a sair às ruas.

Os parlamentares, felizmente, responderam a essa provocação com responsabilidade. Mesmo fustigados, apresentaram empenho pela aprovação do decreto de calamidade pública editado pelo presidente a fim de garantir fôlego de caixa para o combate aos efeitos da pandemia de coronavírus. Durante a semana, premido pelas circunstâncias, Bolsonaro anunciou outras medidas em resposta à crise. Boa parte delas terá de ser aprovada pelo Congresso. Do lado do governo, a tarefa de pavimentar o caminho para a tramitação é do general Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo. Ramos é um dos auxiliares mais próximos de Bolsonaro, mas agora enfrenta um processo de fritura tão intenso quanto o deflagrado contra o seu colega Mandetta. O general começou a ser atacado depois de ter sido apontado como o responsável pelo acordo entre o Executivo e o Legislativo sobre 30 bilhões de reais do Orçamento da União — um acordo que incendiou as redes bolsonaristas. Amigo do presidente, o general quase foi defenestrado. Ou seja: em plena crise, com desdobramentos políticos, econômicos e de saúde pública imprevisíveis, dois ministros considerados essenciais para o enfrentamento do problema, Mandetta e Ramos, são acossados pelo próprio presidente e seus aliados. Bolsonaro tem revelado uma incrível capacidade de distorcer a realidade.

Na quarta-feira 18, diante da desidratação de apoiadores nas redes sociais e do acúmulo de indicadores negativos (do aumento dos casos de Covid-19 confirmados ao novo derretimento da bolsa de valores), Bolsonaro convocou uma entrevista coletiva, modulou o discurso, anunciou decisões importantes e acenou para a necessidade de um esforço conjunto entre os poderes para enfrentar o coronavírus. Parecia que o presidente finalmente compreendera a gravidade da situação — a oportunidade para mostrar qualidades como discernimento, moderação e segurança que se esperam de um líder. Com direito a discursar com uma máscara pendurada na orelha. Bolsonaro, porém, não fez o mea-culpa por ter confraternizado com apoiadores em frente ao Planalto, mentiu mais uma vez e ainda recorreu ao populismo de sempre. Desconsiderando os protocolos médicos, chegou a recomendar às pessoas que não se surpreendam se ele embarcar num vagão lotado de metrô só para demonstrar sua lealdade ao povo — o mesmo povo que está vendo bater à sua porta a pior e a mais devastadora crise dos últimos anos.

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