Coronavírus: governo anuncia medicamento sem evidências científicas
Foto: Gerard Julien/AFP
O Ministério da Saúde anunciou na última quarta-feira a possibilidade da inclusão da cloroquina (CQ) e hidroxicloroquina (HCQ) no protocolo para tratamento de Covid-19 em pacientes graves, mesmo sem evidências científicas da eficácia desses princípios ativos no tratamento de qualquer tipo de vírus. Ao mesmo tempo, anunciou a distribuição para os estados.
O presidente Jair Bolsonaro chegou a exibir, na recente reunião do G20, uma caixa de Plaquenil (medicamento comercial à base de HCQ), demonstrando pouco caso para com o sofrimento dos pacientes de lúpus e artrite reumatoide que não conseguem mais encontrar o produto nas farmácias, justamente por causa do alarde em torno das supostas, e até agora não comprovadas, propriedades antivirais da HQC.
Tanto CQ quanto HCQ têm uma longa história de decepcionar os cientistas que tentam confirmar, em animais, o efeito antiviral frequentemente observado em culturas de células. Os fármacos, usados para tratamento de malária, já haviam funcionado, in vitro, contra vírus como os da dengue, zika, chicungunha, além de alguns tipos dos de gripe, mas falharam todas as vezes em que se tentou ver se o efeito persistia no corpo de mamíferos infectados, e em pacientes.
O que se constatou, em diversas pesquisas, é que, para inibir a multiplicação de vírus, é necessária uma dose muito alta de CQ ou HQC, o que causa efeitos adversos sérios. Então, que base racional tem o governo para embasar uma política pública de saúde de tal relevância, que envolve uma mudança inovadora em procedimentos médicos bem estabelecidos?
Nenhuma. Não existem testes clínicos concluídos que ofereçam qualquer evidência de que CQ e HCQ funcione para tratar Covid-19. Foram feitos, até agora, apenas dois estudos para avaliar a capacidade do fármaco em conter a infecção do vírus Sars-CoV-2 em seres humanos. O primeiro, que alega que HCQ foi eficaz em reduzir a presença do vírus na garganta, foi conduzido por um grupo francês e apresenta falhas tão graves que seus autores já passam a sofrer duros questionamentos de natureza ética. O resultado simplesmente não pode ser levado a sério.
O segundo estudo foi feito por um grupo chinês, também em um número pequeno de pessoas, mas com o mérito de respeitar regras mínimas que permitem comparar de modo honesto os resultados dos pacientes que receberam a HQC com os do que ficaram apenas com o tratamento usual. O resultado foi bastante claro: não houve diferença importante entre quem tomou a HQC e quem não tomou.
Então, toda a literatura sobre o impacto da HQC no combate ao coronavírus em seres humanos se resume a dois estudos: um que não presta, e outro que mostra que HCQ não funciona. Será que devemos basear nossas políticas públicas da saúde nisso? É uma aposta bem alta. O Ministro de Saúde da França, Olivier Véran, declarou que não fará apostas com a saúde dos franceses. Aqui, parece que a saúde dos brasileiros já está na roleta.
Ao se posicionar favoravelmente ao uso de CQ/HCQ como alternativas para tratamento da doença, o Ministério da Saúde brasileiro avaliza as secretarias estaduais e municipais a adotar esta estratégia em hospitais de todo o país. Assim, além da rede privada, a rede pública passará a adotar esses medicamentos, aumentando exponencialmente a demanda, ainda mais em um momento em que a curva de casos cresce drasticamente. Ainda não se sabe exatamente qual será o protocolo de tratamento utilizado pelo SUS, mas esse de forma alguma seguirá as evidências científicas obtidas até o momento, que são negativas.