Motoboys viram ameaça à quarentena

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Foto: Karime Xavier/Folhapress

Enquanto a tradicional rede St. Marche cancelou pedidos de entrega em algumas regiões de São Paulo e o Pão de Açúcar e o Extra informam que a mercadoria pode demorar duas semanas para chegar à casa dos clientes, entregadores do aplicativo Rappi ficam até duas horas nesses locais para levar a compra do mês a consumidores.

Podem receber cerca de R$ 5 a R$ 10 por quatro quilômetros rodados, conforme relataram motoristas à Folha. A taxa varia de acordo com a distância e o pedido.

O problema é que a dificuldade do trabalho mudou —com risco de exposição e tempo gasto em supermercado— e o pagamento continua o mesmo.

“Dez reais para andar três quilômetros e fazer uma compra de R$ 1.500 para alguém que está em casa? Não sou chauffeur”, diz Luciano Ramos da Silva, 39, motorista de três aplicativos há mais de um ano.

Os pedidos de R$ 1.500 (quase R$ 500 a mais do que um salário mínimo) Silva diz que derruba, e ressalta que até são poucos. Já os de R$ 300 a R$ 600 tornaram-se cada vez mais comuns desde que a população se fechou em casa.

As compras de farmácia que o motorista faz quase sempre incluem álcool em gel, que ele e grande parte dos colegas não usam no leva e traz de produtos e comidas.

“Quando não falta coisa no supermercado, e está faltando em todas as regiões, a gente dá um jeito de levar. Amarra aqui, coloca na mochila. Mas não usa álcool, não”, diz Vinícius Leocardio, 26, que opera no Rappi e no iFood.

A reclamação do risco sanitário e da remuneração afetada pelo novo cenário levou o SindimotoSP a solicitar, nesta terça-feira (24), uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

“Não temos luva, álcool em gel, máscara. Além de ser um risco ao motorista, é um risco ao cliente que recebe a mercadoria. Todo mundo em quarentena e o motorista fazendo seu trabalho, mas sem contrapartida alguma das empresas”, diz Gilberto dos Santos, presidente do sindicato.

No Brasil, as decisões mais recentes de ações coletivas em cortes superiores foram em direções opostas ao definir se há vínculo empregatício entre motoristas e plataformas de entregas.

Em janeiro, a Justiça reconheceu que não há relação trabalhista no caso do iFood. Já no caso da Loggi, foi determinado vínculo em primeira instância, mas a decisão foi suspensa e o julgamento está em curso.

Assim, empresas de tecnologia intermediárias não possuem obrigação legal coletiva de garantir assistência de saúde. Pela lei que regulamenta o transporte privado, os motoristas devem contribuir para o INSS, mas poucos efetivamente o fazem.

Desde que a discussão sobre a vulnerabilidade dos entregadores escalou em outros países que enfrentam o surto do vírus, Uber e iFood anunciaram fundos milionários de assistência a motoristas.

Uma recomendação do Ministério Público do Trabalho, de 19 de março, diz que as empresas deveriam garantir a entregadores que integram o grupo de alto risco “assistência financeira para subsistência”. Também orienta que os aplicativos forneçam álcool em gel gratuito aos entregadores.

Por enquanto, o efeito prático dessa orientação não chegou a muitos motoristas. “O Ministério Público fez uma recomendação. A ideia é acompanhar medidas que serão tomadas pelas empresas para ver se são satisfatórias. A depender do caso, podem ser tomadas medidas judiciais”, diz Renan Kalil, procurador do Trabalho.

As empresas destacam que disponibilizaram “entrega sem contato” nos aplicativos. Em nota, a Uber Eats diz que vai dar “assistência financeira a motoristas e entregadores diagnosticados com Covid-19”, mas não especifica o valor individual. A Rappi e o iFood também anunciaram fundos a entregadores.

“Ainda não sei como funciona. Pessoal não pode se contaminar, mas motoqueiro pode. É esquisito”, diz José Gonçalves, que optou por uma máscara de gás para se proteger. “Se não passa produto químico, não vai passar o bicho.”

Folha de S. Paulo