Bolsonaro vira refém de militares e Mandetta
Um dia depois de ameaçar usar a caneta contra ministros que falavam demais e tinham virado “estrelas” do governo, o presidente Jair Bolsonaro mostrou que a ameaça velada não passava, ao menos naquele momento, de um blefe.
Não haviam se passado nem 24 horas dessa declaração na porta do Palácio da Alvorada, e o presidente ficou mudo ao ser indagado pelo ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde) sobre o motivo pelo qual não o demitia.
A cena ocorreu em reunião ministerial convocada de última hora na segunda-feira (6) e foi presenciada por outros ministros, além do vice-presidente, o general Hamilton Mourão.
De acordo com quatro auxiliares do presidente ouvidos pela Folha em condição de anonimato, Bolsonaro arregalou os olhos, ficou em silêncio e demonstrou surpresa diante do questionamento direto de Mandetta.
Ministros militares tentaram contornar a situação. O ministro seguiu. Disse que Bolsonaro cobrava confiança da equipe, mas que isso era uma via de mão dupla.
Também questionou o motivo de sua nomeação, se ele não o ouvia para questões de saúde. Ali, transparecia sua irritação por ter sido excluído de reunião do presidente com médicos no Palácio do Planalto para tratar da hidroxicloroquina, medicamento no centro das discussões sobre possíveis tratamentos do novo coronavírus.
O questionamento de Mandetta motivou o diálogo entre o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, e o deputado e ex-ministro Osmar Terra (MDB-RS) na quinta-feira (9).
“O que aconteceu na reunião eu não teria segurado, eu teria cortado a cabeça dele”, disse Onyx a Osmar Terra em conversa divulgada pela CNN Brasil.
Terra foi um dos presentes na reunião convocada por Bolsonaro no Planalto para falar do uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. Mandetta não foi chamado e soube do encontro pela imprensa.
A reunião ministerial em que Mandetta emparedou Bolsonaro durou duas horas. No Ministério da Saúde, a demissão era considerada certa, e as gavetas do ministro chegaram a ser esvaziadas.
O episódio ilustra como o presidente tem conduzido a crise do coronavírus. Se, para dentro do governo, a caneta não é tão mais forte assim —com militares assumindo a dianteira da crise e Mandetta mantendo, por ora, sua independência—, para fora Bolsonaro joga para a plateia.
Desde que a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou pandemia mundial, no dia 11 de março, ele tem adotado discursos e atitudes contraditórias. Em cinco pronunciamentos à nação feitos em rede nacional de rádio e TV, tons diferentes prevaleceram.
No dia 12 de março, o discurso foi usado para atacar o Congresso e desencorajar que a população fosse às ruas numa manifestação a favor do governo. Três dias depois, Bolsonaro estava na frente do Planalto apoiando o ato. A cena incomodou técnicos da Saúde e o próprio Mandetta. Nascia ali a primeira crise.
A “gripezinha” ou “resfriadinho”, como Bolsonaro definiu a doença em outro pronunciamento, já matou mais de mil pessoas no Brasil e teve 20 mil casos confirmados até a última sexta-feira (10).
No Planalto, foram contaminados o secretário especial de Comunicação Social da Presidência, Fabio Wajngarten, e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, além de outras 18 pessoas.
Todos tinham contato direto com o presidente, que alega ter feito dois testes. Ele negou ter sido infectado, mas não mostrou o resultado dos exames até agora.
A maneira como Bolsonaro trata a crise —e a doença— é uma estratégia que nasceu na ala mais ideológica do governo e foi forjada pelos seus filhos: Carlos (vereador do Republicanos no Rio de Janeiro), Eduardo (deputado federal pelo PSL-SP) e Flávio (senador pelo Republicanos-RJ).
O núcleo apostou na tática de encontrar inimigos para justificar a crise. Primeiro, a culpa foi do Congresso. Depois, do chamado “vírus chinês”, em referência ao primeiro epicentro da epidemia. Na sequência, governadores e, por último, seus próprios ministros.
Nem mesmo Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia) escaparam da artilharia nos bastidores.
Bolsonaro cobrou de Moro uma defesa enfática, mas foi ignorado. Sobre Guedes recaiu a conta da crise e da demora do governo para reagir economicamente. O ministro não respondeu à bronca.
O presidente seguia insistindo na retórica de que era preciso pensar nos empregos, quando o próprio Guedes o havia deixado sozinho ao falar a investidores que, como cidadão, queria ficar em casa.
O núcleo econômico havia errado na avaliação inicial dos impactos da pandemia. Guedes afirmou que o custo seria de R$ 5 bilhões e convenceu o presidente de que a conta teria que ser paga pelo Congresso, com a liberação de emendas. A cifra não foi suficiente, e os auxílios ultrapassam R$ 220 bilhões.
A demora da equipe econômica em agir levou a críticas de setores do empresariado capitaneados por Paulo Skaf, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
Mesmo com a aprovação do Congresso, o governo levou mais de uma semana para dar início ao pagamento do auxílio de R$ 600 a trabalhadores informais e autônomos.
O país respondeu com panelaços quase que diários em várias capitais brasileiras. Os outros Poderes —Congresso e Supremo Tribunal Federal— reagiram cobrando dos ministros militares um controle do comportamento do presidente.
Incomodado com a imagem de que estava sendo tutelado, Bolsonaro dobrou a aposta e visitou pontos do comércio no Distrito Federal. “Ninguém vai tolher minha liberdade de ir e vir”, disse.
Descolado até mesmo de líderes internacionais que idolatra, como o americano Donald Trump, que passou a tratar a crise com gravidade, Bolsonaro recorreu a um velho aliado, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e tido como principal autoridade atual entre os militares.
Na manhã do dia 30 de março, o presidente apareceu na casa do general, na Vila Militar, em Brasília, aonde chegou se queixando por estar sozinho.
Villas Bôas disparou um sinal duplo: após a visita inesperada, colocou em suas redes sociais uma mensagem cifrada, em que ao mesmo tempo demonstra concordar em alguma medida com Bolsonaro, mas não faz pouco caso da pandemia.
O ex-chefe do Exército aconselhou Bolsonaro a falar novamente à nação e fazer um aceno aos outros Poderes. Foi nessa linha que ele sinalizou no dia 31 uma mudança de tom.
Na última semana, Bolsonaro evitou grandes confrontos, embora tenha mantido críticas a governadores, além de novamente ter defendido o uso da cloroquina.
Como ainda não existem estudos robustos sobre a eficácia do medicamento contra a Covid-19, o Ministério da Saúde recomenda seu uso apenas em pacientes críticos ou em estado grave, com acompanhamento médico.
A tutela a Bolsonaro está nas mãos do chefe da Casa Civil, general Braga Netto, e do general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), que deram início a um novo plano estratégico do governo.
Eles aproveitaram a ausência de Wajngarten (que ainda estava afastado em decorrência do tratamento da Covid-19), transferiram para a Casa Civil os anúncios diários à imprensa e enquadraram Mandetta no novo formato, dividindo o protagonismo da crise com os demais membros do primeiro escalão.
Embora não sejam favoráveis à briga de Bolsonaro com o titular da Saúde nem à sua demissão, os militares também se incomodam com a falta de hierarquia do político.
A Bolsonaro os ministros disseram que seria melhor que ele se afastasse das entrevistas coletivas.
Recomendaram que mantivesse uma rotina de falar com jornalistas mais alinhados à sua visão, como Augusto Nunes e José Luiz Datena, e se concentrasse em pronunciamentos em rede nacional.
A ideia é que Bolsonaro siga fazendo falas semanais minutos antes do Jornal Nacional, em uma espécie de contraponto ao telejornal da Globo, alvo de críticas do presidente e de outros membros do governo federal.