Curados da covid19 podem adoecer de novo

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Foto: Andreas Arnold / dpa / AFP

A ideia de que os contaminados por uma doença, uma vez curados, estariam imunes ao mal e poderiam circular livremente é tão atraente quanto antiga. Em 430 a.C., o historiador grego Tucídides escreveu em História da guerra do Peloponeso que os sobreviventes da peste — epidemia mortal que assolava Atenas naquele momento — eram os mesmos que cuidavam dos enfermos “confiantes na imunidade, pois o mal nunca atacava a mesma pessoa duas vezes, pelo menos com efeitos fatais”. Quase 2.500 anos depois, o mesmo princípio anima os defensores em vários países da instituição de uma espécie de “passaporte da imunidade” como a saída para o começo do fim do interminável isolamento forçado pela pandemia do novo coronavírus.

A questão, entretanto, é que ainda há um longo debate científico e ético a ser feito para a estratégia se tornar realidade. “A ideia é ótima. Mas ainda não sei se está na hora de afirmar que é possível”, disse Alessandro Farias, chefe do Departamento de Genética, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da Unicamp.

Um dos principais obstáculos é confirmar a premissa inicial do tal passaporte. Pessoas contaminadas pela doença ficam de fato imunes a ela? Ainda não se sabe ao certo, dizem os cientistas.

Na última segunda-feira, a Coreia do Sul anunciou que 116 pessoas consideradas curadas do vírus voltaram a testar positivo. Na China, cerca de 100 infectados também tiveram essa experiência até agora — em geral, com sintomas brandos. O desafio da ciência é entender se esses são casos que ocorreram por reativação do vírus ou por reinfecção; este é o pior dos cenários. “Reativação do vírus é quando ele fica escondido em algum lugar do corpo. Os exames não conseguem detectá-lo e, depois de um tempo, ele volta a aparecer. O maior exemplo disso é o HIV, que fica anos escondido até se manifestar”, explicou Jean Pierre Peron, professor do Departamento de Imunologia da USP. “Se for reinfecção, temos um problema enorme. Significa que o corpo não consegue montar uma resposta imune protetora ao vírus. Cada vez que a pessoa se expuser, vai se infectar”, concluiu.

Defensor da ideia do passaporte da imunidade, Peter Doherty, imunologista da Universidade de Melbourne, na Austrália, que ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1996 por descobrir como as células do sistema de defesa do corpo humano respondem a uma bactéria ou vírus, levanta outra suspeita. “Qual foi a evidência deles (coreanos e chineses) de que determinado caso é uma reinfecção em vez de uma infecção persistente no indivíduo? Um ou dois testes negativos, depois positivo? Essas não são evidências sólidas de reinfecção”, avaliou.

Um estudo conduzido pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês apontou que pacientes contaminados pela sars-CoV-1 ficam imunes por até três anos. Esse é um outro coronavírus, “parente” do causador da atual pandemia, o sars-CoV-2. A doença que ele causa é chamada de sars (sigla em inglês para Síndrome Respiratória Aguda Grave), que também surgiu na China, em 2003, e causou epidemia em diversos países. As taxas de letalidade da doença são mais altas que as da Covid-19, mas ela é bem menos transmissível. “O isolamento social funciona, e os passaportes da imunidade podem ser uma saída para alguns, mas ainda não chegamos lá”, ponderou Doherty. “É muito improvável que você não seja protegido depois de ter a Covid-19” , afirmou.

Na avaliação de Cláudio Lorenzo, professor adjunto do Departamento de Saúde Coletiva da UnB e membro do Conselho Assessor da Redbioética para América Latina e Caribe da Unesco, a ciência deve respeitar princípios como o da incerteza e da precaução. “Se tenho um resultado científico, mas ainda não posso ter certeza, devo utilizar o princípio da precaução. Não devo tomar nenhuma ação baseado nesse resultado”, disse. Segundo ele, estudos desenvolvidos em diferentes partes do mundo apontam que a imunização ao sars-CoV-2 deve ficar entre três meses e cinco anos. “Esses artigos mostram que a resposta imune varia muito entre as pessoas, e não se sabe se isso é causado por fatores genéticos, climáticos ou as duas coisas.”

A ideia do passaporte da imunidade surgiu na Alemanha. Lá, um grupo de pesquisadores projeta um grande estudo para investigar quantas pessoas já se tornaram imunes à Covid-19 após sofrerem uma infecção. Eles esperam testar 100 mil pessoas. “Aqueles que são imunes poderão receber um tipo de passe de vacinação que, por exemplo, permitiria isentar-se de restrições a sua atividade”, disse ao jornal britânico The Guardian Gérard Krause, chefe de epidemiologia do Centro Helmholtz de Pesquisa de Infecções em Braunschweig e um dos participantes do estudo.

A ideia dos cientistas alemães ganhou força no Reino Unido. O secretário de Saúde de Boris Johnson, Jonathan Ashworth, disse que “temos muito a aprender com a abordagem deles”. “Eu já pedi repetidamente mais testes e rastreamento de contatos no Reino Unido, e deveríamos observar iniciativas como essas de perto”, afirmou.

O parlamento italiano também discute a medida. O país planeja aplicar, segundo o jornal La Repubblica, cerca de 100 mil testes rápidos, que detectam anticorpos. Eles são mais velozes e baratos e podem ser usados em casa, furando a ponta do dedo e deixando pingar uma gota de sangue no aparelho. Uma única empresa italiana conseguiu desenvolver o produto, que está em fase de certificação. Ele custa € 5 (aproximadamente R$ 28), e o resultado sai em uma hora. Nos Estados Unidos, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci, disse que a Casa Branca também considera a proposta.

No Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu a ideia. “Já mandei para o ministro (da Saúde, Luiz Henrique) Mandetta, para o chefe da Casa Civil, o ministro Braga Netto, e para o presidente Jair Bolsonaro. Ou seja, se você fez o teste e deu positivo, você pode circular. Você fez o teste e deu negativo, você tem de ir para casa. Não é agora. Agora nós estamos em isolamento. Nós estamos planejando uma saída, lá na frente, e teremos esse teste em massa. As pessoas vão sendo testadas, pode ser semanalmente, e quem estiver livre continua trabalhando”, disse o ministro, em uma live, no começo de abril.

Procurado por ÉPOCA, o Ministério da Saúde, a quem caberia a decisão, não se pronunciou sobre essa possibilidade, mas afirmou que “a ampliação da testagem para outros grupos (além daqueles com contato com suspeitos de infecção) depende da dinâmica da pandemia no Brasil e da capacidade operacional dos serviços de saúde, conforme aquisições e doações de testes”. A pasta afirmou ainda que “os testes serão realizados de acordo com a realidade do Brasil para conhecer a epidemia e auxiliar na tomada das decisões”.

“PETER DOHERTY, IMUNOLOGISTA GANHADOR DO PRÊMIO NOBEL DE MEDICINA, DEFENDE O PASSAPORTE E AFIRMA QUE É IMPROVÁVEL QUE OS INFECTADOS NÃO ESTEJAM PROTEGIDOS DEPOIS DA CURA”

Para conseguir providenciar os certificados de imunidade, os países precisam testar em massa a população. Um boletim do Ministério da Saúde brasileiro disse que, dos 22,9 milhões de testes anunciados em meio à pandemia, só foram entregues 904.872 até a última semana — ou 4% do total. A previsão é que em julho esse volume acumulado recebido chegue a 9,1 milhões, ou cerca de 40% do previsto.

Para complicar, a confiabilidade desses exames também é um problema. Dezenas de empresas pelo mundo correram para desenvolver seus produtos, e em geral o grau de acerto é de 95% dos casos. O problema é que 5%, numa escala em testagem de massa, pode ser muita gente. Na prática, poderá haver milhares de infectados obrigados a ficar em casa mesmo depois de contaminados e outros milhares que, mesmo sem nunca terem sido contaminados, receberiam autorização para sair às ruas, o que os colocaria em risco e poderia aumentar o contágio.

O principal contraponto a esse risco calculado é a possibilidade de uma retomada gradual da economia. No caso dos profissionais da saúde, por exemplo, quem foi infectado e depois curado já volta ao batente. A alternativa é o planeta ficar num “liga-desliga” da quarentena pelos próximos meses e anos, como apontou um estudo publicado na revista Science. “Sem o passaporte, a saída para a quarentena só virá com uma vacina”, apontou o nobel Doherty.

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