Edifício turístico de SP, Copan proíbe visitas
Foto: Gilberto Marques / O Globo
A advogada aposentada Marisa Severo nunca imaginou sentir um estranhamento ao caminhar pelos mesmos corredores por onde passa, diariamente, há mais de três décadas. Nas últimas semanas, experimentou um vazio inédito ao atravessar a galeria instalada no térreo do Copan, o ícone paulistano da arquitetura moderna. Da manicure ao consultório dentário, do pet shop à academia, todas as lojas estão fechadas. Até mesmo o tradicional Café Floresta, que serve os paulistanos de segunda a segunda, avançando a madrugada, interrompeu as atividades.
“Nunca vi isso acontecer.É tudo muito, muito estranho mesmo”, diz ela, procurando as palavras que melhor descrevem esse cenário distópico.
Marisa tem 78 anos, mais de 30 deles vividos no Copan, o edifício projetado em 1951 pelo arquiteto Oscar Niemeyer no centro da maior cidade da América do Sul. Primeiro ocupou uma quitinete no bloco B. À medida que a carreira de advogada engrenou, foi para um apartamento de um dormitório, no F. Hoje vive no 24 andar, num imóvel amplo, de três quartos e 210 metros quadrados, na companhia da irmã mais nova e de duas cachorrinhas chihuahua.
Para elas, espaço para atravessar os dias de isolamento impostos pela mais alarmante das epidemias recentes não tem sido um problema. “Como os quartos e a sala têm janelões envidraçados, tenho uma visão ampla da cidade. Pela frente do apartamento, vejo a zona Norte e um pedaço da Oeste. Na parte de trás, a vista é para a zona Sul e Leste. Mantemos sempre tudo muito arejado”, conta Marisa. “O movimento lá fora está bem reduzido. Vez ou outra passa um ônibus, tem alguns que até andam vazios”.
Assim como milhões pelo mundo, Marisa adotou algumas regras básicas em sua rotina doméstica para se manter longe do coronavírus. Só sai do apartamento bem cedinho, por volta das 7h, para levar Olga, uma das cachorras, fazer suas necessidades na rua ao lado. Não se lembra de ter cruzado com algum morador no elevador de serviço nas últimas semanas e diz tomar todo cuidado para não encostar em nada. “Por aqui, está todo mundo levando bem a sério”, opina.
Ao chegar em casa, lava as patas do animal com xampu ou as higieniza com lenço umedecido e álcool-gel. Compra de comida agora é só por telefone, num mercadinho ao lado. Para passar o tempo, Marisa lee, joga paciência no computador e se exercita, seguindo as orientações que um amigo fisioterapeuta enviou por vídeo. Sacos de feijão fazem as vezes do pesos usados nas sequencias do pilates.
Em tempos de coronavírus, gerenciar um prédio superlativo como o Copan – são 32 pavimentos, seis blocos, cerca de 70 lojas, 1.160 unidades habitacionais e mais de 5 mil moradores – tornou-se um desafio maior para Affonso de Oliveira, há 26 anos síndico do edifício.
Antes mesmo de uma compreensão mais acurada da gravidade da doença, Oliveira suspendeu as visitas ao prédio, que chegavam a somar 300 curiosos no dia. Era 30 de janeiro quando emitiu a ordem.
Pouco depois, diz ter recebido o telefonema de uma jornalista perguntando se ele queria causar pânico na cidade. “Expliquei que estava me antecipando. Como recebemos muita gente de fora do país, meu medo era trazer problema para dentro do prédio”, diz.
Oliveira conta que, entre outras medidas, houve um treinamento dos mais de cem funcionários para o uso de EPIs (Equipamentos de Proteção Industrial). Ele próprio deu demonstrações de como lavar as mãos e explicou a necessidade de manter uma distância de pelo menos dois metros dos moradores.
A limpeza dos elevadores foi acentuada e todas as portarias têm álcool em gel. Pelo menos uma porta da área comum foi trancada, para aumentar o controle do acesso. Mais recentemente, veio o fechamento do comércio da galeria.
“Desde 2008, quando apareceu a gripe H1NI, tomamos uma série de providências, como lavar o chão da área comum com cloro. Agora, estamos orientando os moradores a entrar no elevador com, no máximo, duas pessoas, de preferência do mesmo apartamento. As entregas têm de ser deixadas na portaria. Estamos fazendo o que achamos que, se não é a solução, se aproxima da dela”, ressalta Oliveira.
Mesmo proibindo as visitas ao prédio, ele teme que estrangeiros que se hospedam nos apartamentos do Copan por aplicativos de viagem estejam contaminados pelo coronavírus. Só na semana passada, o edifício recebeu americanos, canadenses, franceses, italianos e suíços.
“Se legalmente fosse possível proibiria isso. Mas não posso proibir o direito de propriedade”, afirma. Ele diz acreditar que é uma questão de tempo para o vírus chegar. “Acho que são poucos que vão escapar dessa doença”.
Aos 80 anos e hipertenso, Oliveira também está adotando medidas em sua residência. Morador do Copan, diz ter reduzido a carga de trabalho de dez para cinco horas, de modo a circular menos pelas áreas comuns do edifício. Delimitou as idas ao supermercado ao horário da manhã, menos movimentado. “Preciso me cuidar porque faço parte do grupão de risco”, diz ele, batendo “na madeira de lei” do Copan. “Mas não posso abandonar o prédio. O comandante é o último a deixar o navio”.
Nas últimas semanas, o barulho do vaivém de moradores tem dado lugar ao tilintar das panelas. Como em outras cidades do Brasil, desde o último dia 17 moradores se manifestam contra a postura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) diante da crise.
Naquela noite, Bolsonaro entrou na casa dos brasileiros, num pronunciamento pela TV aberta, para minimizar a gravidade do coronavírus, que comparou a uma “gripezinha”. Na janela, os condôminos batem panela, apitam ou ainda reproduzem, em caixas de som no último volume, um áudio que viralizou no WhatApp reproduzindo o “plein plein plein” do utensílio doméstico.
“Começa oito horas em ponto, todos os dias. Já falo para minha esposa: está na hora da gente jantar”, brinca Oliveira. Uma única habitante do Copan se demonstrou incomodada publicamente, mas foi colocada em seu “devido lugar” pelo síndico. “Estamos num país democrático. É um negócio meio desagradável, mas cada um tem o direito de se manifestar como quiser. E assim deve permanecer”, diz.