Europa cria fórmulas contra violência doméstica
“Mamãe, diz que está feliz, senão o papai fica bravo”, pediu Lorena, 6. A menina e sua mãe são vítimas de uma epidemia que não é de coronavírus, mas provocada por ele: a de violência doméstica (todos os nomes de vítimas são fictícios).
Medidas impostas pelo governo para combater a doença criaram uma verdadeira panela de pressão, descreve Talitha Vaz, que coordena a seção portuguesa da Revibra, entidade de apoio a brasileiras vítimas de violência na Europa.
De um dia para o outro, foram potencializados pelas quarentenas todos os ingredientes de um problema que não é novo nem limitado: 33% das mulheres europeias já sofreram violência física ou sexual, indicam pesquisas.
mulher loira de cabelos curtos, casaco azul e luvas de plástico olha por uma janela. O prédio é marrom claro e as janelas são de madeira e cinza escuro. Ela tem um olhar triste.
Mulher olha pela janela de seu apartamento em Veneza, Itália, durante a quarentena contra o novo coronavírus no país – Manuel Silvestri – 4.abr.2020/ REUTERS
Frustração e insegurança econômica, que costumam levar a episódios de agressão, cresceram com a paralisação da economia.
Imobilidade e tédio elevaram o consumo de álcool, outro motor da violência.
O confinamento prendeu agressores e vítimas num mesmo espaço, muitas vezes estreito, 24 horas por dia. De quebra, dificultou denúncias que precisavam ser feitas por telefone.
Quando havia alternativa para pedir socorro, albergues lotados fechavam as portas. “As mulheres se viram presas no lugar onde estão menos seguras: suas próprias casas”, alertou um comunicado da ONU.
O efeito foi de um catalizador, diz Juliana Santos Wahlgren, que fundou a Revibra e atua na Bélgica. Antes da pandemia, os casos progrediam lentamente, de violência psicológica, para financeira (confisco de salário), administrativa (retenção dos documentos), até chegar à física.
As quarentenas aceleraram o ciclo: “As mulheres não nos procuram mais porque começam a se sentir torturadas; agora elas já foram agredidas, e muitas vezes suas crianças também”.
No primeiro mês de quarentena europeia (de meados de março a meados de abril), a Revibra atendeu a 22 desses casos, quase o dobro dos 12 registrados no mês anterior nos oito países em que atua (Portugal, Bélgica, Alemanha, França, Holanda, Itália, Luxemburgo e Reino Unido).
Não é uma medida estatística, mas reforça a tendência apontada pela polícia francesa (crescimento de 30% nas queixas), pelo governo espanhol (18% mais ligações nas duas primeiras semanas de quarentena) e pelo continente todo.
E fora da Europa também, diz a eurodeputada tcheca Radka Maxová, uma das nove que na semana passada pediram um plano de emergência ao Poder Executivo da UE.
As parlamentares querem que a Comissão Europeia incentive governos a reforçarem os serviços de atendimento e de abrigos, onde a espera por uma vaga pode levar semanas, como aconteceu com Carol e suas filhas de 5 e 3 anos, no Reino Unido.
Ainda antes da pandemia, ela pediu alojamento para escapar dos maus-tratos do marido. Quando a resposta chegou, as assistentes sociais disseram que o risco de contágio estava alto e que ela deveria “aguentar um pouco mais em casa”.
Políticos e ativistas também afirmam que os telefones de socorro não são mais a melhor opção para as vítimas. “Com a dificuldade de fazer ligações, as denúncias ficaram represadas”, afirma a eurodeputada holandesa Samira Rafaela.
Foi o que aconteceu na Itália, primeiro país a adotar o confinamento, no começo de março. O número de chamadas teve queda abrupta, acendendo o alerta. “São necessários outros canais para que as denúncias desaguem”, diz Samira.
Na Itália, a alternativa foi um aplicativo que funciona 24 horas. Em Portugal, foi criado um SMS apenas para casos de violência doméstica durante a pandemia.
“Em cinco dias, foram 41 pedidos de ajuda, mais que todos os outros serviços somados”, conta Talitha. Além de mais discreto, o meio é gratuito e não aparece na conta telefônica.
Na Espanha, uma senha secreta permite às vítimas pedir ajuda nas farmácias, e na França foram abertos 20 “centros de aconselhamento pop-up” em supermercados, para que as mulheres possam pedir ajuda quando forem fazer compras.
Com essas válvulas de escape, as denúncias subiram mais de um terço na Europa, diz a europedutada espanhola Soraya Rodríguez.
O governo português também abriu cem novas vagas em abrigos, “insuficientes para tanta demanda”, segundo Talitha.
Ela tenta trazer para o Porto uma ideia adotada em Lisboa, na Espanha e na França: quartos alugados pelo governo em hotéis, pensões e Airbnb desocupados durante o lockdown.
Na Alemanha, a rede de abrigos passou a receber mulheres de regiões a até 300 km de distância, afirma a cientista política Marcia Baratto, da seção alemã da Revibra.
Vários países lançaram campanhas avisando que o atendimento às vítimas continua. Na França, que tem uma das mais altas taxas de violência doméstica da Europa, o presidente Emmanuel Macron escreveu numa rede social no domingo (12): “Mulheres vítimas de violência, vocês não estão sozinhas. Existem soluções para protegê-las, e elas estão sendo reforçadas na quarentena”. “Se é possível reforçar medidas em tempos extremamente difíceis, por que não se fez isso nos tempos fáceis?”, perguntou um francês nos comentários.
Para Amarsanaa Darisuren, principal conselheira de assuntos de gênero da OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa), nem sempre é fácil prever com antecedência uma crise, “por isso é importante adotar planos de contingência”.
Segundo ela, durante a pandemia as medidas mais importantes são as que oferecem ajuda imediata: socorro policial, aconselhamento jurídico, cuidado de saúde, apoio psicológico e serviço social. Mas também é importante manter a prevenção. “Há organizações dando apoio psicológico aos homens que apresentam risco de cometer violência e estão sob a pressão do lockdown”.
Por outro lado, é preciso garantir que a Justiça puna os agressores, diz a eurodeputada Radka, e treinar polícia, equipe médica, juízes e promotores, “para prevenir dupla vitimização”.
Foi o que aconteceu com Petra, mãe de um bebê de 11 meses na Bélgica. Quando os casos de coronavírus começaram a crescer no país, a Justiça proibiu que sua filha (que ela ainda amamenta) ficasse no abrigo, por causa do risco de contágio.
A criança passou a morar com o pai, obrigando Petra a conviver com seu agressor. “É uma dupla violência, do indivíduo e do Estado”, dizem Marcia e Juliana.
Com a tensão em alta, cresceu também a procura de aconselhamento psicológico no DialogAR, serviço gratuito do qual a Revibra é parceira. Nas quatro semanas de quarentena, a organização atendeu a três casos de tentativa de suicídio, contra um no mês anterior.
“O isolamento da mulher vítima de violência sempre ocorreu, mas era invisível. Com o confinamento geral, acendeu-se um holofote sobre ele”, diz Talitha.