Lei do coronavírus favorece briga entre Bolsonaro e governadores
Foto: Marcelo Camargo/ABr
A lei que dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para o enfrentamento da pandemia do coronavírus deixa brecha para que União e governos locais travem disputas jurídicas entre eles.
Aprovada pelo Congresso em regime de urgência, a lei entrou em vigor em 6 de fevereiro. Desde então, prefeituras, governos estaduais e União passaram a usar a legislação para medidas excepcionais como as de confisco de equipamentos e serviços essenciais para a prevenção e o tratamento da Covid-19.
Motivam essas batalhas judiciais, por exemplo, requisição de respiradores, equipamentos de proteção individual e álcool em gel que ainda estavam nas fábricas.
Há casos em que um mesmo alvo é requisitado por mais de uma esfera de governo. Outro entrave são pedidos de confisco da União direcionados a fábricas, mas de olho em lotes já vendidos a estados e municípios.
No Amapá, por exemplo, a União havia determinado o confisco de 25 aparelhos respiradores que estavam armazenados pela fabricante Intermed Equipamentos Médico Hospitalar. O lote, porém, já estava vendido para o governo estadual.
O caso foi parar na Justiça Federal, após o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) ter entrado com uma ação popular contra o confisco. O próprio governo federal recuou e, em sua manifestação, disse ser a favor de deixar os equipamentos com o estado.
Cinco dias depois, o juiz federal Hilton Sávio Gonçalo Pires acatou o pedido do parlamentar e proibiu a retirada dos ventiladores pulmonares da fábrica.
Na semana passada, quando o Amapá entrou na fase mais aguda da epidemia, com aceleração de casos, o Ministério da Saúde anunciou o envio de respiradores para Macapá, mas Randolfe diz que o anúncio se refere ao mesmo lote de equipamentos alvo do confisco.
“Então eu fui checar e os respiradores que eles dizem que estão mandando são na verdade os que o estado já havia comprado”, disse o senador.
Em Cotia, na Grande São Paulo, houve disputa ainda mais acirrada, desta vez envolvendo a prefeitura e União.
O município havia comprado um lote de 35 ventiladores pulmonares da empresa Magnamed, que tem fábrica na cidade. Após a compra, o Ministério da Saúde enviou um ofício à empresa requisitando todo o estoque de respiradores e a produção dos próximos 180 dias, o que incluía os 35 ventiladores pulmonares já adquiridos pelo município.
O Prefeitura de Cotia, então, entrou na Justiça contra o pedido federal. Mais uma vez houve recuo da União. O Ministério da Saúde emitiu um segundo ofício, no qual retirava a determinação da requisição total da produção, liberando a comercialização de parte do estoque para estados e municípios.
No final de março, a juíza federal Adriana Zanetti derrubou o primeiro pedido de confisco do Ministério da Saúde. Foi a vez então de a prefeitura confiscar aparelhos que já havia comprado.
Os 35 respiradores ainda não haviam passado por testes que garantiriam a segurança do seu funcionamento, mas o vice-prefeito, que acumula o cargo de secretário municipal de Segurança, foi até a fábrica com policiais e retirou os 35 equipamentos. Ele estava com a decisão judicial embaixo do braço.
No dia seguinte, outra reviravolta. A juíza de plantão Adriana Delboni Taricco decidiu que a prefeitura tinha que devolver os aparelhos respiradores. Ela acolheu pedido do Ministério Público Federal porque considerou um “risco imediato o uso de 35 aparelhos pulmanores microprocessados sem a prévia fiscalização da Anvisa”, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
O procurador da República Yuri Corrêa da Luz, que atuou neste caso no plantão, chamou a atenção para a brecha da lei. “A lei feita pelo Legislativo federal que autoriza [o confisco], na verdade autoriza que outros entes da Federação façam também”, disse o procurador à Folha.
“Então a lei acaba gerando um ambiente de guerra de requisições entre entes federativos, porque ela não tem nenhum mecanismo previsto nela própria de coordenação dessas requisições. E não há nenhum lugar na Constituição que coloque que a União tem prevalência sobre os outros entes”, completa.
Preocupado com a possibilidade de confiscos, não só de respiradores, mas também de equipamentos de proteção, o governador João Doria (PSDB-SP) fez essa reclamação ao próprio presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
“Não faz nenhum sentido confiscar equipamentos e insumos. Se essa questão for mantida, tomaremos medidas necessárias no ramo judicial”, disse o governador, no final de março.
O diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, especialista em direito do estado, diz que a União tem uma prerrogativa de organizar os esforços, mas a partir da aplicação dos recursos.
“Então, por exemplo, se ela compra respiradores para a rede pública de saúde, ela decide onde vai alocar. Mas isso não dá à União o poder de confiscar do poder público equipamentos que são adquiridos pelos entes públicos da Federação para a rede local”, diz Floriano.
“A requisição deve ser um remédio excepcional. Ao preferir o exercício autista da autoridade à coordenação de compra e alocação, estão criando um caos onde devia prevalecer a coordenação, desorganizando o sistema. Vai dar errado.”
Ele considera que as ações sendo direcionadas às fábricas são “um pouco mais delicadas, porque a lei autoriza requisitar do privado. Mesmo assim essa deve ser a exceção e não a regra”.
Conforme mostrou a Folha na última sexta-feira (10), medidas judiciais e administrativas em vários estados vêm comprometendo o planejamento de hospitais, laboratórios e da indústria farmacêutica na distribuição de equipamentos de proteção individual a seus profissionais de saúde e funcionários.
A falta de critérios definidos que autorizem vários tipos de confisco —na maior parte amparados por decretos estaduais ou municipais— levou 11 entidades da área médica a pedirem intervenção do STF (Supremo Tribunal Federal) e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
A reportagem aponta ainda que as entidades encaminharam uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) ao STF para que haja normatização que delimite as circunstâncias em que esse tipo de confisco possa ocorrer.
A ação movida pela CNSaúde (Confederação Nacional da Saúde), entidade que reúne federações hospitalares e sindicados patronais, aponta que “amontoam-se os relatos de fornecedores de equipamentos médicos que recebem múltiplas requisições, oriundas de diversos entes da administração pública, de maneira caótica e desordenada, muitas vezes recaindo mais de uma delas sobre os mesmos bens e comprometendo todos os equipamentos em estoque”.
A Lei
O inciso VII, do artigo 3º, trata do confisco de bens e serviços pelas autoridades, que tem sido motivo de embates entre a União e governos locais.
O texto diz que “as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas (…) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”
Mais adiante, a legislação enumera os entes que podem confiscar os bens e serviços. Além do Ministério da Saúde, o texto cita “gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII (…)”. O inciso VII é justamente o que trata da eventual requisição de produtos.
De acordo com o procurador da República Yuri Corrêa da Luz, que atuou em um caso de disputa por respiradores, “a lei (…) na verdade autoriza que outros entes da Federação façam também [o confisco]”.
Já o diretor da Faculdade de Direito da USP, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, diz que a União não tem “poder de confiscar do poder público equipamentos que são adquiridos pelos entes públicos da Federação para a rede local”
O texto legal também confere ao Ministério da Saúde e aos governos locais o poder de determinar “isolamento” e “quarentena”, além da realização obrigatória de “testes laboratoriais” e “vacinação” e “restrição excepcional e temporária (…) por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do país e locomoção interestadual e intermunicipal”, entre outras medidas de combate à pandemia
O mesmo artigo (3º) da legislação afirma ainda que as medidas poderão ser tomadas “somente (…) com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”