Na centro-direita, Huck perde e Doria ganha
Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Cumprindo o isolamento social em seu apartamento em Higienópolis, região central da capital paulista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem dividido o tempo entre o trabalho em novo livro sobre sua trajetória intelectual, releituras de Machado de Assis e reuniões e debates virtuais do seu instituto. Eventualmente, faz rápidas caminhadas pelo bairro, sempre de máscara. O cardápio de filmes e séries fica por conta de sua mulher, Patrícia. Mas FHC confessa que não é muito fã de “maratonar” em plataformas de streaming.
Nesta entrevista ao Estado, FHC fez um uma análise do cenário político em tempos de covid-19 e disse que o presidencialismo de coalizão deu lugar a um sistema precário de governo compartilhado entre Câmara, Senado e Supremo Tribunal Federal. Na avaliação dele, o governador João Doria (PSDB) ganhou espaço durante a crise, enquanto o apresentador e possível presidenciável Luciano Huck, de quem é amigo, ficou politicamente menor.
Alguns especialistas falam em ampliar o isolamento para combater a covid-19, enquanto empresários e a Fiesp defendem a abertura lenta e gradual da atividade econômica. O sr. acha que é o caso de abrir ou fechar mais?
Não sou médico, mas devemos ouvir os especialistas. O único remédio nesse momento é ficar em casa. Não há vacina nem medicamento específico. Qual a objeção de ficar em casa? É dizer que estão olhando mais para o sistema hospitalar, enquanto precisamos da economia funcionando. Vi uma entrevista de um general dizendo que há municípios onde não entrou a epidemia. Tudo bem, mas quem decide isso? Tem que ser uma coisa feita pelo governador e o município. Em tese eu sou mais favorável a manter por mais tempo o regime de ficar em casa.
O sr. concorda com a medida provisória que permite redução salarial durante a pandemia?
Essa MP foi precipitada. Vai chegar um momento que talvez seja necessário, mas por que começar a apertar quem mais precisa? Quem está empregado quer manter a renda. Vai se mexer nisso? Me parece provocação. Não acho adequado.
Por que não há um movimento articulado ‘Fora, Bolsonaro’?
A oposição não sabe bem o que fazer. Pedir o impeachment agora com base em quê? O impeachment ocorre quando o governo perde maioria no Congresso e não passa mais nada. Quando perde a capacidade de governar. Segundo, quando há gente na rua e a situação econômica está ruim. Nesse momento, o governo não tem maioria sólida, nem nunca teve porque sempre desprezou a maioria no Congresso, mas continua governando. Não tem gente na rua. Está todo mundo em casa, com medo. O momento é de coesão, de apelar para unidade. E esse é o erro do governo. O impeachment é traumático, deixa marcas. Não vejo que se aplique ao caso atual. Se o presidente começar a errar muito, ele mesmo vai provocar seu autoimpedimento. Tirar o ministro da Saúde foi uma coisa insensata. Um erro grave. Isso vai acumulando e mostrando pouca capacidade de liderança.
Como o sr. avalia a atuação da oposição neste momento?
Não há oposição organizada. Estamos passando por uma situação curiosa politicamente no Brasil. Tínhamos um sistema baseado em coalizão, que não foi planejado pela Constituinte, mas foi acontecendo. É a coligação de vários partidos para poder governar. O presidente atual despreza os partidos, mas está acontecendo uma coisa curiosa, uma espécie de governo compartilhado. A Câmara e o Senado estão atuando mais efetivamente. O STF também. Não se sabe muito bem o que vai acontecer de tudo isso, mas há outro sistema em funcionamento que não é mais o de coalizão.
E que sistema é esse? Um parlamentarismo branco?
Isso (parlamentarismo branco) está acontecendo, mas a cultura no Brasil não é parlamentarista. Desde o Império as pessoas precisam ter alguém que conduza. Elas criticam quem conduz, mas precisam de alguém para conduzir. O problema mais grave que enfrentamos hoje é a falta de lideranças em vários setores.
O liberalismo radical entrou em xeque com essa crise?
É verdade. O Estado atuante e necessário, nem o mínimo nem o máximo. Na hora da crise todo mundo vira keynesiano (quem segue o economista inglês John Maynard Keynes) e quer que o governo gaste e dê dinheiro para quem não tem emprego. Aí se vê que o Estado tem uma função reparadora importante. Por que só na época das crises? Tem sempre. A intensidade aumenta ou diminui. A ideia de um liberalismo total é uma ilusão.
Por que, na opinião do sr., o PT não está conseguindo liderar um movimento consistente de oposição a Bolsonaro?
Qual era a proposta do PT? O Lula livre. O Lula está livre. Relativamente, mas está. A palavra do PT para a condução política desapareceu. Mas não foi só isso. A base social do PT, sindicatos, CUT, etc., ficou muito aquém da movimentação da sociedade. Os governadores hoje têm mais acesso aos meios de comunicação. O (João) Doria sabe usá-los. Mostrou que tem decisão. Decidiu enfrentar o presidente. Nesse momento quem está colhendo mais frutos é o Doria. O Doria tem mostrado capacidade de sobreviver na crise.
Doria ganha força como presidenciável e pode ocupar esse campo do centro?
É o que ele se propõe. Fora disso, quem tem? Um projeto, que é o Luciano Huck, que nasce de um movimento fora dos partidos. Mas na crise ele não tem instrumentos de aparecer e agir. Fica menor na crise. Doria fica maior. Os que detêm alavanca de poder, como o Doria, têm maior projeção. O Doria vem da rede social. Está tendo uma vantagem indiscutível.
O PSDB devia ir de vez para a oposição a Bolsonaro?
Acho que sim. Ficar nessa posição de que não é quente nem frio não é o melhor. Essa polarização que houve no Brasil é ruim para as pessoas que são razoáveis, e eu procuro ser razoável, mas ela existe. É um dado da realidade brasileira. O PSDB corre o perigo de não ficar nem cá, nem lá. Doria entendeu isso e avançou.
Que cicatrizes ficarão no Brasil após essa crise do coronavírus?
Meus pais falavam muito da gripe espanhola. O que aconteceu de mais próximo foi a crise econômica de 1929, que resultou, por um lado, no (Franklin) Roosevelt (presidente dos Estados Unidos) e, na Europa, no fascismo com (Benito) Mussolini e (Adolf) Hitler. Houve muita hesitação para combater esses males. Tomara que haja um Roosevelt daqui para frente.
Como o sr. avalia a influência da ala ideológica, que se baseia em Olavo de Carvalho, no governo? Já leu algo dele?
Nunca ouvi falar de Olavo de Carvalho. E olha que morei nos Estados Unidos em várias ocasiões, fui professor em várias universidades. Isso é um invento local, brasileiro. Ele ganhou prestígio porque o grupo que venceu a eleição se uniu ao redor de ideias nesse espírito reacionário, que não é de direita. É reacionário, atrasado. Infelizmente, embarcamos em uma canoa furada, a crença de que há um perigo ideológico que estaria contaminando o Brasil. Olavo representa uma linha de insensatez.
O sr. prezava a liturgia do cargo. Como avalia a relação de Bolsonaro com os filhos e os espaços deles no governo?
O presidente Bolsonaro não entendeu a cadeira que ocupa, que é simbólica. O presidente (José) Sarney falava que havia um ritual do cargo. É verdade. Nenhum filho meu entrava no gabinete ou entrava no meu carro. Eventualmente, minha mulher, que tinha uma função social grande. No helicóptero não ia família. Na Presidência você não é um homem comum. Você foi eleito. Tenho a impressão de que o presidente Bolsonaro ainda se acha uma pessoa comum. Não é. Tudo que ele faz tem repercussão internacional. Ele precisa se portar dentro de um figurino. É difícil? É. Desagradável? Pessoalmente, é duro, mas é assim que as coisas funcionam.