Se Bolsonaro testou positivo, cometeu crime
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Abandonem-se as predileções e divergências políticas para a leitura do presente artigo, que não passa de um ensaio de algumas ideias tocantes ao Direito Penal, Processual Penal, mas, sobretudo, Direito Constitucional. Ideias estas que não devem tocar, com exclusividade, a nossos aliados ou inimigos, mas, pela saúde da República e da própria democracia, compreendem irrestritamente todos os cidadãos. Não diferente –o próprio Presidente da República.
Veicula-se notícia[1] de que a Câmara dos Deputados conferiu a Jair Bolsonaro o prazo de 30 dias para que apresentasse os seus exames, a fim de atestar se fora (ou não) infectado pela covid-19, o inimigo invisível que tem mobilizado a comunidade internacional. Caso não se atenda a tal pedido, corre-se o risco de incidir em crime de responsabilidade por negativa de informação à Câmara, ainda segundo a notícia. A grande indagação que se deve fazer é se estaria o Presidente, de fato, obrigado a fornecer tais informações.
Resgato, portanto, a advertência inicial: a resposta, para além do ambiente político, envolve temas sensíveis do campo jurídico e, ao meu sentir (e de antemão), é negativa: não vejo possibilidade de compelir o Presidente da República a oferecer tais informações.
O fundamento para tanto passa pela máxima (com a qual os operadores do Direito Processual Penal já estão acostumados) do nemo tenetur se detegere. Ou seja, numa terminologia mais corriqueira: ninguém é obrigado a produzir prova contra si.
Este axioma encontra no Pacto de São José da Costa Rica – notadamente em seu art. 8º, 2, g – a sua materialização, em que se preconiza o direito (da pessoa) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada. No nosso ordenamento jurídico, é edificado nos termos do art. 5º, LXIII, da Constituição Federal de 1988, o qual assegura ao preso o direito de permanecer em silêncio, garantia fundamental a todo e qualquer cidadão.
É intuitiva, portanto, a primeira crítica que se dirige ao Constituinte de 1988 – que, muito embora orientado pelo Norte dos Direitos Humanos, conferiu redação aquém da real dimensão que tem o direito à não-autoincriminação. Isso porque, aos olhos mais desatentos, poder-se-ia pensar que apenas o preso faria jus a tal garantia fundamental. Mais do que isso: a vedação à autoincriminação estaria constrita ao depoimento/interrogatório do preso, nada impedindo que ele pudesse ser obrigado a oferecer declarações escritas ou documentais de modo geral. Isto não ocorre com a leitura do dispositivo da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) já mencionado, uma vez que o uso da expressão “declarar-se culpada” confere a extensão que, de fato, se pretendia dar a tal direito.
Todavia, para a nossa sorte, o Egrégio Supremo Tribunal Federal, fazendo valer o seu papel de legítimo guardião da Constituição da República, tem consolidada jurisprudência no sentido de espelhar a hermenêutica aos preceitos da CADH, de modo a assegurar a não-autoincriminação como um impedimento ao sujeito de ser compelido a colaborar com a investigação ou instrução criminal.
A outra crítica, por sua vez, é estritamente técnica. O nosso Constituinte, ao deixar a redação enxuta, perdeu a oportunidade de tornar tal princípio em regra. Pode parecer de pouca relevância, ou de muito apego a formalismos e “juridiquismos”, mas não o é.
Apenas na superficialidade que me impõe o formato desta manifestação, vale dizer que esta é uma discussão sempre atual e corriqueira nos ordenamentos estrangeiros e se pauta, resumidamente, na seguinte fórmula: enquanto regra é determinação de satisfação estanque (ou ela é obedecida, ou desobedecida – sem meio termo); princípio tem satisfação variável, à luz do caso concreto (ALEXY, 2011). Tal discussão tem sensíveis impactos na vida prática, visto que não se discute a imposição de uma multa por excesso de velocidade (a lei prevê um limite de X e, acima disso, justifica-se a sanção), enquanto que o funcionamento de um centro religioso numa área urbana pode ensejar um debate acerca da razoabilidade de imposição de horário de modo a evitar prejudicar o descanso da vizinhança.
Ou seja, caso fosse regra, a resposta quanto à obrigatoriedade (ou não) do Chefe do Executivo em atender ao chamado do Congresso Nacional estaria posta, sem dar margem a eventuais dúvidas. Como não o é, justifica-se o debate – inclusive, por meio deste artigo.
Mas, afinal, antes de chegar à resposta propriamente, um esclarecimento se faz necessário: por que falo da vedação à autoincriminação?
Caso o Presidente estivesse contaminado pelo vírus, ele poderia incidir, quando das suas aparições públicas, na prática do crime previsto no art. 131[2], ou mesmo art. 132[3] do Código Penal: Perigo de Moléstia Grave ou; Perigo para a Vida ou Saúde de Outrem, respectivamente. Ou seja, oferecer tal documentação, poderia dar margem à análise relativa a uma possível prática de infração penal por parte do próprio Presidente, de modo que há que se considerar a possibilidade de ele se encontrar protegido pelo axioma aqui debatido.
Desta forma, há alguns princípios colidentes no caso em testilha: o interesse público/saúde pública/publicidade, de um lado e; o nemo tenetur se detegere, de outro.
A vedação à autoincriminação constitui significativa conquista histórica, gestada de modo a confirmar a superação – e o reconhecimento – do cenário de franca violação a direitos humanos testemunhado na primeira metade do séc. XX. É parte integrante inderrogável para que se confira ao sujeito o valor de pessoa humana e, por conseguinte, digna. Nada impede, todavia, que tais informações sejam prestadas por outras vias, que não o próprio possível autor de crime fornecendo-as.
Deste modo, por mais que ainda tenha margem no campo político, penso que, no que tange ao jurídico, não se pode transigir com o direito à não-autoincriminação que pode assistir ao Presidente da República – e é justamente esta a beleza dos Direitos Humanos/Fundamentais: eles se situam acima e absolutamente alheios a questões relativas a credo, viés político, cor de pele ou orientação sexual.