Trump muda discurso diante da gravidade da crise nos EUA
Foto: Tom Brenne/Reuters
O tom foi inédito. Pela primeira vez, Donald Trump discursou com gravidade, apresentou números realistas —mesmo que alarmantes— e não destoou de sua equipe de especialistas ao falar sobre a pandemia do coronavírus.
Durante duas horas e 12 minutos, em entrevista coletiva nesta terça-feira (31), o presidente americano apresentou um cenário sombrio nos EUA.
Disse que, nos próximos meses, entre 100 mil e 240 mil pessoas podem morrer no país mesmo com a adoção de medidas de distanciamento social e que o número pode chegar a 2,2 milhões caso não haja respeito às restrições impostas até 30 de abril.
A retórica alarmante de quem até há pouco minimizava a pandemia deu finalmente dimensão à crise nacional e chamou a atenção de quem acompanha de perto a Casa Branca.
Donald Trump em entrevista de imprensa em Washington, nos EUA, ao lado de um painel que mostra a projeção de 100 mil mortes no país mesmo com medidas de distanciamento social – Tom Brenner – 31.mar.2020/REUTERS
A apresentação desta terça-feira foi comparada a outros momentos sombrios da história moderna da Presidência americana, somando-se ao pronunciamento de George W. Bush sobre os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 e ao de Ronald Reagan após o acidente com o ônibus espacial Challenger, que matou sete astronautas em 1986.
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Os mais céticos, porém, alertam que ainda é preciso observar se a mudança de tom de Trump vai se sobrepor a seu instinto eleitoral até o fim da pandemia. Destacam também que a nova postura do presidente não apaga o que ele fez até aqui.
Em campanha à reeleição, o republicano se preocupa com o impacto da crise na tentativa de seguir na Casa Branca. Até então, adotava seu habitual comportamento errático diante dos possíveis desdobramentos da crise.
Vocalizava medidas de distanciamento social ao mesmo tempo em que propagandeava o uso de medicamento que ainda não teve sua eficácia comprovada contra o vírus e defendia a reabertura do país até a Páscoa, em 12 de abril.
Disse há pouco mais de um mês que o novo coronavírus era “assim como uma gripe” e que “um milagre” resolveria a situação.
No domingo (29), porém, o presidente recuou, anunciou extensão das medidas de distanciamento social até o fim de abril e disse que daria declarações importantes durante a semana, fazendo soar o alarme em todo o país.
Ao lado de Anthony Fauci, diretor do Instituto de Doenças Infecciosas dos EUA e apontado como um dos principais responsáveis pela mudança de tom do presidente, Trump disse nesta terça que era “questão de vida ou morte” adotar as restrições sociais e que, caso isso não fosse feito, pessoas morreriam “nos aeroportos e lobbies de hotel”.
Se o líder americano pensava em insistir no discurso dúbio, foi atropelado pelos números. Sua imagem diante de gráficos tão assombrosos aconteceu no dia em que os EUA ultrapassaram a China em número de vítimas da pandemia.
Nesta quarta (1º), já eram quase 190 mil casos, com mais de 4.000 mortes em território americano, e o pico é esperado somente para 15 de abril.
O primeiro caso de coronavírus confirmado nos EUA foi em 21 de janeiro. Trump declarou estado de emergência nacional apenas 52 dias depois, em 13 de março, e, mesmo assim, insistia em minimizar a crise e flertar com o relaxamento das restrições sociais.
Atualmente, 3 em cada 4 americanos estão sob medidas de distanciamento social, quadro que deve escalar.
Ainda é cedo para falar dos efeitos da pandemia na disputa eleitoral, mas o principal adversário do presidente, o democrata Joe Biden, tem estado fora de foco nas últimas semanas, enquanto a pauta única se impôs no país.
Trump faz pronunciamentos quase diários na Casa Branca, enquanto Biden suspendeu comícios e eventos de campanha. Aparece pouco, concede poucas entrevistas e faz vídeos de dentro de seu escritório.
Os números têm assustado o republicano, mas é preciso saber se ele realmente entendeu que não é possível navegar entre o discurso a seus eleitores e as necessárias medidas de governo diante de uma crise como essa.
O presidente costuma ir e voltar em várias de suas decisões. Mas, desta vez, o novo discurso precisa prevalecer.