A inacreditável investigação inútil da facada

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Foto: Reprodução

A investigação da Polícia Federal que descartou pela segunda vez a existência de mandante no caso da facada no então presidenciável Jair Bolsonaro localizou e ouviu até dois homens confundidos com o verdadeiro autor do crime, Adélio Bispo de Oliveira.

O trabalho da corporação, descrito pelo delegado Rodrigo Morais no relatório do inquérito como técnico, criterioso e minucioso, contrariou a versão que o presidente da República e seus aliados têm difundido —a de que o esfaqueador teria agido a mando de terceiros, e não sozinho, como a PF concluiu.

O relatório parcial, apresentado na quinta-feira (14), narra em detalhes os passos da apuração, a segunda aberta sobre o ataque durante a campanha de 2018, em Juiz de Fora (MG). Adélio, declarado inimputável por ter doença mental, cumpre medida de segurança no presídio federal de Campo Grande (MS).

Os agentes chegaram aos dois “sósias” após dicas, das várias que receberam, sobre o passado do autor que poderiam ajudar na descoberta de eventuais pessoas por trás da tentativa de assassinato. Como tantas outras pistas, essas também se revelaram falsas.

Uma delas surgiu em uma carta anônima enviada à PF, dando conta de que Adélio teria sido visto em Luminárias (MG) por volta de abril de 2018. Como havia o interesse de identificar todos os lugares percorridos pelo autor e pessoas com quem ele teve contato, os investigadores foram à cidade.

A riqueza de detalhes da carta, com dados de hotel, veículos e pessoas, chamou a atenção. Só que os policiais concluíram que se tratava de outro homem que esteve hospedado no município no mesmo período. “A confusão foi justificada, dada a semelhança física entre ambos”, disse o delegado no relatório.

Outro suposto rastro de Adélio chegou à PF por meio do Ministério da Educação, que reencaminhou uma denúncia recebida pela pasta. O relato avisava que um primo de Adélio, que teria se encontrado com ele pouco antes do crime, estava trabalhando como segurança em Juiz de Fora.

O material narrava ainda que o tal homem tinha a fama de pertencer a uma família perigosa e que corria na cidade o alerta de que era “para tomar cuidado com ele”.

E lá foram os agentes identificar os citados e interrogá-los. A denúncia se mostrou, em parte, promissora. Locais e referências confirmavam todos os indícios. Não fosse por um detalhe: o suposto primo não conhece o homem que tentou matar Bolsonaro nem possui nenhum parentesco com ele.

O rumor surgiu porque o homem também é do norte de Minas, assim como Adélio, que nasceu em Montes Claros. Por causa da origem e da aparência semelhante, colegas começaram a brincar que ele era primo do autor, e a história acabou tomando uma proporção inimaginável.

Segundo o delegado do caso, isso tudo era esperado, dado o aspecto inusitado e inédito do atentado.

“É natural e compreensivo que haja um despertar imaginativo na população, voltado, sempre, às mais diversas teorias de cunho conspiratório, construídas com base em narrativas críveis, porém nem sempre reais ou verdadeiras”, escreveu Morais no relatório oficial.

Ele afirmou que inúmeras informações chegaram ao órgão sobre envolvimento de terceiros, locais frequentados por Adélio e relação com outros crimes. Algumas, como as que levaram à descoberta dos sósias, foram checadas. Outras, prontamente descartadas, caíram na categoria de fake news.

Parte dessas teorias, difundidas principalmente em redes sociais, envolveu pessoas que nada têm a ver com o crime e acabaram prejudicadas. Apoiadores do então candidato à Presidência que aparecem em imagens da passeata em Juiz de Fora, por exemplo, foram apontados como cúmplices do criminoso.

Até pessoas que não estavam no cenário do atentado foram acusadas de ter passado a faca para o autor ou ter facilitado o acesso dele a Bolsonaro. A PF destacou os casos de sete vítimas que sofreram linchamento virtual, tiveram o rosto exposto e foram associadas ao caso com insultos e xingamentos.

Postagens disseram que elas deveriam ser denunciadas e as classificaram como “ativistas terroristas”. Em alguns casos, elas foram indevidamente descritas como filiadas ao PSOL e ao PT, em uma narrativa reiterada até hoje por aliados do presidente, que buscam incriminar partidos de esquerda no episódio.

Em depoimento, seis mulheres falaram que se sentiram apavoradas com ataques e ameaças de morte na internet. Algumas delas disseram que até pararam de sair de casa, assustadas com a proporção dos boatos. Parte das especulações foi divulgada inclusive em TVs e outros veículos de comunicação.

Também foi desmentida pela PF a tese de que um homem teria dado um soco no abdômen de Bolsonaro após a facada, para que sentisse mais dor, e que seria um inimigo infiltrado na equipe de segurança. Ele era, na verdade, um policial federal que ajudou no socorro, mas acabou virando alvo nas redes.

Hostilizado na cidade onde morava, o agente foi obrigado a pedir transferência para outra localidade, em outro estado, segundo o relatório.

A possibilidade de envolvimento de outras pessoas foi refutada. Nada no processo indicou até agora a existência de comparsas ou financiadores, conforme a PF. Adélio sustenta que agiu a mando de Deus por discordar das ideias de Bolsonaro. Diligências pedidas por advogados do presidente também foram feitas.

Como mostrou a Folha, o texto com as conclusões da apuração ressaltou que uma investigação do tipo não pode se basear na opinião pública ou em suspeitas levantadas por leigos. Bolsonaro vem colocando em xeque o trabalho da PF no caso, insistindo na versão de que Adélio recebeu a encomenda de matá-lo.

A pressão do presidente faz parte das insatisfações dele com o órgão, que culminaram na troca do diretor-geral da corporação e levaram ao pedido de demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, ao qual a PF é subordinada. Advogados de Bolsonaro não recorreram da absolvição do autor do crime.

Folha