Assinatura de general sem cargo é fraude
Foto: Aílton de Freitas
Principais especialistas em direito administrativo no País consideraram “grave” e possível “fraude” a decisão do Ministério da Defesa de utilizar um parecer de um general exonerado e sem função numa portaria para aumentar o limite de compra de munições. Neste domingo, 23, o Estadão revelou que, sob pressão do presidente Jair Bolsonaro, as pastas da Defesa e da Justiça publicaram, no dia 23 de abril, a norma interministerial 1.634 com base num parecer assinado pelo general Eugênio Pacelli, que já estava na reserva desde o final do mês anterior.
Após a divulgação da reportagem, o Ministério da Defesa encaminhou nota ao jornal para afirmar que “o militar estava em pleno exercício legal do seu cargo ao assinar os documentos”. No entendimento da Defesa, uma regra expressa do art. 22 da Lei 6.880/80 permite que o militar possa assinar atos mesmo já exonerado e com um substituto nomeado em seu lugar.
O Estadão ouviu oito especialistas em direito administrativo, dois ministros, um do Supremo Tribunal Federal (STF) e um do Tribunal de Contas da União (TCU), e um procurador. Todos foram unânimes em afirmar que o general não poderia ter assinado o parecer sendo ele civil ou militar em nome da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados.
Um dos autores da nova Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb), o professor de direito administrativo da FGV de São Paulo Carlos Ari Sundfeld afirma que “o substituto poderia não estar em exercício, mas como Pacelli foi exonerado, a partir daquele momento não pode exercer a função”. “O exonerado nunca pode responder pelo órgão, a partir da data da publicação da exoneração.”
Sundfeld defendeu uma apuração do caso para avaliar uma possível fraude. “Uma das razões pelas quais a portaria foi editada é porque a Diretoria de Fiscalização teria se manifestado a favor. Acontece que esse fato não ocorreu porque esse general não era absolutamente nada. Justifica uma investigação profunda, porque há possibilidade, em tese, de isso ter sido feito com intuito de fraudar, de simular um processo administrativo que não existiu”, argumentou.
Para o professor, a partir da publicação da exoneração no Diário Oficial da União, a pessoa, seja ela civil ou militar, não responde mais ao cargo. “E se estiver ocupando o cargo é uma irregularidade administrativa”, destacou. “A portaria é nula, porque ela levou em consideração uma manifestação técnica que tem dois vícios. Foi dada por alguém absolutamente incompetente, que não representa o órgão, e segundo, porque não tem motivação.”
Por sua vez, o professor de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Rafael Maffini afirmou que o uso do parecer do general Eugênio Pacelli na aprovação da portaria constitui uma “gravidade” e uma “corrosão” à mais “trivial” noção de Estado de Direito. “É pressuposto de validade dos atos administrativos que eles sejam praticados por quem tenha atribuição legal para tanto”, explicou. “Em 25/3 foram publicados decretos que exoneraram, a partir de 31/3, o general Pacelli Mota do cargo de Diretor de Fiscalização de Produtos Controlados e o transferiram para a reserva remunerada. Desta forma, em meados de abril, não mais teria ele atribuição legal, pois excluído do serviço ativo das Forças Armadas”, completou, citando o artigo 94 do Estatuto dos Militares. “E são igualmente inválidos os atos administrativos que foram praticados com base na indevida manifestação de agente público sem atribuição legal.”
O parecer do general Pacelli foi enviado à assessoria jurídica do Ministério da Defesa às 22h18 de 15 de abril, por um e-mail particular, num horário de fora do expediente ds repartição. A exoneração dele saiu no DOU dia 30 de março, mesmo dia em que seu substituto foi nomeado.
A professora de direito administrativo da FGV-SP Vera Monteiro considerou um “episódio grave” mudar uma política pública dessa maneira. “A invalidade da portaria está relacionada à falta de motivação. A motivação para tomar essa decisão foi um ‘ok’ por WhatsApp, e foi um e-mail de alguém que não ocupava mais a função dentro do departamento, dizendo que não observa ‘qualquer impedimento’.”
O advogado Saulo Stefanone Alle, doutor em direito pela USP, concorda. “Da forma como foi praticado, o ato do general não tem validade”, disse. “O que a gente tem que avaliar, no caso do general, é se, ao praticar esse ato, ele cometeu improbidade diante da administração pública. Se teve a violação de um princípio. Para essa improbidade tenho que verificar se ele agiu de forma dolosa.”
Por meio de nota, o Ministério da Defesa ressaltou neste domingo que considera legal o parecer de Pacelli. A pasta argumentou que o Estatuto dos Militares, a Lei 6.880, que trata da transição de cargos militares, prevê a continuidade do oficial no posto em caso de vacância.
O ministério destacou o seguinte trecho do estatuto, assinada pelo general João Baptista Figueiredo em 1980: “O militar somente deixa o cargo/função a partir do momento que outro militar nele toma posse”. Portanto, na interpretação da pasta, “a publicação em Diário Oficial da União é condição necessária, mas não suficiente, para a transmissão do cargo.”
A assessoria do ministério sustenta, inclusive, que é aplicado ao caso do general Pacelli, que atuava na burocracia do governo, o entendimento de que “a não continuidade no cargo/função pelo militar, deixando-o vago e sem comando antes que o seu substituto nele tome posse, pode ser caracterizado como crime de abandono de posto”.
Entre a nomeação e a posse, afirma a Defesa, “há um período de transição para as medidas administrativas de ambos. Enquanto isso, o comandante exonerado permanece exercendo a sua autoridade, até que seja realizada uma solenidade de transmissão do cargo”. No dia em que Pacelli assinou o parecer o seu antigo posto não estava vago. Já no dia 31, o general Alexandre Porto respondia pela função, segundo o DOU.
Carlos Ari Sundfeld, professor de direito administrativo da FGV Direito SP e um dos autores da nova Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Lindb)
“Isso em aula a gente dá como um exemplo muito bom de nulidade do ato, por aplicação da teoria dos motivos determinantes. O que é isso? Uma das razões pelas quais você editou a portaria é porque a diretoria de fiscalização teria se manifestado a favor. Acontece que esse fato não ocorreu. Esse motivo que determinou a edição da portaria não ocorreu, porque esse general não era absolutamente nada. O fato é o seguinte: ele foi exonerado por decreto, e foi publicado. A partir da publicação, a pessoa está fora do cargo, não responde mais ao cargo, e se tiver ocupando o cargo, é uma irregularidade administrativa. Não houve a manifestação dessa diretoria, portanto, a portaria é nula, porque ela levou em consideração uma manifestação técnica que tem dois vícios. Foi dada por alguém absolutamente incompetente, porque não representa o órgão, e segundo, é uma manifestação nula porque não tem motivação. Não diz quais as razões pelas quais não tem óbice. É um caso clássico de nulidade de ato normativo por falta de motivação. Justifica uma investigação profunda, porque há possibilidade, em tese, de isso ter sido feito com intuito de fraudar, de simular um processo administrativo que não existiu. Os indícios justificam uma possibilidade de ter uma simulação de processo administrativo para justificar tecnicamente a portaria. Só que esse processo administrativo não existiu, então se a investigação confirmar que houve esse intuito de fraudar, os envolvidos terão de responder por isso. O substituto poderia não estar em exercício, mas como Pacelli foi o exonerado, a partir daquele momento não pode exercer a função. O exonerado nunca pode responder pelo órgão, a partir da data da publicação da exoneração”
Rafael Maffini, advogado e professor de Direito Administrativo da UFRGS:
“É pressuposto de validade dos atos administrativos que eles sejam praticados por quem tenha atribuição legal para tanto. Em 26/03 foram publicados decretos que exoneraram, a partir de 31/03, o General Pacelli Mota do cargo de Diretor de Fiscalização de Produtos Controlados e o transferiram para a reserva remunerada. Desta forma, em meados de abril, não mais teria ele atribuição legal, pois excluído do serviço ativo das Forças Armadas (art. 94, I, da Lei 6.880/80). E são igualmente inválidos os atos administrativos que foram praticados com base na indevida manifestação de agente público sem atribuição legal, inclusive com expressa menção a tal manifestação. Isso em razão da denominada teoria dos motivos determinantes, pela qual é nulo todo ato administrativo ‘quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido’ (art. 2º, parágrafo único, ‘d’, da Lei 4.717/65)”
Vera Monteiro, professora de direito administrativo da FGV Direito São Paulo
“É um episódio grave mudar uma política pública dessa maneira. A portaria foi assinada por quem tem competência pra fazer – os ministros da Defesa e da Justiça. São superiores hierárquicos. No entanto, a invalidade da portaria está relacionada à falta de motivação. A motivação para tomar essa decisão foi um ‘ok’ por WhatsApp, e foi um e-mail de alguém que não ocupava mais a função dentro do departamento, dizendo que não observa ‘qualquer impedimento’. Ainda que o Pacelli não ocupasse mais o cargo de diretor, poderia dar informação sobre estudo, algo em andamento no âmbito do departamento, que pudesse fundamentar a portaria e não trouxe. Ele apenas diz que não há qualquer impedimento. É uma portaria cujo vício é a falta de motivação – você tem uma mudança de uma regra sem que a autoridade tenha revelada as razões pelas quais a regra vai ser alterada. O fato de o general Pacelli ter enviado um e-mail, quando já não mais ocupava o cargo, e sendo o e-mail pessoal é mais um elemento para afirmar a falta de cerimônia para justificar a publicidade de uma portaria que muda uma política setorial. Uma portaria que muda política setorial precisa ser motivada. Essa motivação não veio nem do Ministério da Justiça, nem do Ministério da Defesa. Apenas revela que, na época em que o general Pacelli ocupava o cargo, não havia discussão nem estudo nem dentro do departamento sobre esse assunto.”