Governo quer reduzir proteção à Mata Atlântica

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Foto: Reprodução

Mais uma tentativa de atropelar a legislação ambiental, em plena pandemia do coronavírus, está em curso neste momento. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que durante todo o ano passado desmontou o Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) e reduziu a participação da sociedade civil nos órgãos de controle do setor, está tentando agora alterar o Decreto Federal 6.660, vigente desde 2008, o que configura um retrocesso na proteção da Mata Atlântica.

A proposta do Ministério do Meio Ambiente (MMA) não considera devidamente que a proteção dos diferentes ambientes (formações florestais nativas e ecossistemas associados) é fundamental para a preservação do bioma como um todo, suas diversificadas interdependências, interações, conexões ecológicas e funcionais.

Desprovido de embasamento científico e com alegações não demonstradas, o argumento do governo para a mudança é de que a atual normativa provoca “instabilidade técnica e jurídica”(sic). A partir de uma construção frágil com claros vícios de origem, propõe alterar o mapeamento do IBGE relativo à proteção da Mata Atlântica.

Vejamos: é fato reconhecido que as diferentes formações florestais e ecossistemas associados presentes no bioma da Mata Atlântica são assim chamados porque estabelecem interações ecológicas e conectividade entre si, incluindo as formações florestais e não florestais, sendo a sua preservação vital para a higidez, equilíbrio ecológico e persistência dos atributos e serviços ecossistêmicos do conjunto das tipologias de vegetação que integram este domínio, que assim se mantém por força de sua interdependência.

Segundo esclarece a bióloga Yara Scheffer-Novelli, “a conectividade, dentro de um mesmo bioma, entre as diferentes feições florestais e não florestais e seus ecossistemas associados é vital para a manutenção de suas características funcionais. O prejuízo às estas características funcionais ameaça a qualidade ambiental e a conservação da diversidade (Decreto Federal 2519/98, Convenção da Diversidade Biológica), o que se mostra como um contrassenso, em pleno contexto de mudanças climáticas”.

Se por um lado a proposta de alteração do Decreto Federal 6.660/2008 reconhece a manutenção de ecossistemas associados como os campos de altitude, brejos interioranos, assim como a “vegetação de restinga”, que também inclui tipologias não florestais, entre outras, de outro lado, exclui os demais ambientes de forma tecnicamente injustificada, tais como os campos salinos associados a manguezais, as áreas aluviais, os refúgios vegetacionais, as áreas de tensão ecológica e de estepe, savana e savana-estépica e a vegetação nativa das ilhas costeiras e oceânicas, como se estes ecossistemas associados não exercessem qualquer papel ecológico relevante ao bioma da Mata Atlântica. Quanto aos encraves florestais, a proposta não leva em conta que estes, além de contar com atributos e características típicas da Mata Atlântica, plenamente reconhecidas pela área técnica e científica, devem ser protegidos, também, por serem testemunho de expansões e retrações de domínios de vegetação relacionados a flutuações climáticas envolvendo amplas escalas de tempo.

Trata-se, portanto de assunto que é de pleno domínio dos profissionais habilitados e conhecedores matéria. O ministro Ricardo Salles não apresenta, porém, quais os estudos, documentos, relatórios ou pareceres técnicos (e seus autores) que assumem a responsabilidade técnica específica e embasam as alterações propostas. Não houve nenhuma discussão ou debate com a sociedade a respeito da proposta, certamente porque sua fragilidade não resistiria a um embate técnico. Resta perguntar, portanto, a quem interessa essa mudança.

Por meio de critérios arbitrários, a proposta pretende o afastamento sobre a necessidade de manifestação do Ibama em inúmeras situações, com consequências comprometedoras à conservação da vegetação do bioma, alterando premissa estabelecida pelo decreto, adotando argumentos incompatíveis, tais como o de aumento de eficácia na gestão ambiental.

A dimensão do desastre que provocará é digna de nota: a ampliação de área de 50 hectares para 150 hectares por empreendimento e de 3 hectares para 30 (isolada ou cumulativamente), em áreas urbanas ou metropolitanas, como critérios para oitiva do Ibama. Isso reduz drasticamente a tutela do órgão ambiental em relação à proteção da Mata Atlântica, em nível nacional, ao permitir avaliações que serão insuficientes em função de escalas amplas, impedindo sua eficácia e revelando uma flexibilização inaceitável.

A proposta de alteração do Decreto Federal 6.660/2008 exige que as medidas cabíveis sejam tomadas para coibir este retrocesso na legislação de proteção da Mata Atlântica, bioma ameaçado de extinção.

Estadão