Bolsonaro reduz transparência sobre covid19
Foto: Getty Imagens/AFP
O Brasil vem registrando um aumento dramático no número de mortes e novos casos de covid-19, a um ritmo que já supera mil óbitos por dia. Já são 34.021 mortes e quase 615 mil infecções pelo novo coronavírus. Mas quem acompanha como o Ministério da Saúde vem divulgando esses dados pode ter a impressão que a situação no país não poderia estar mais calma.
Cabe à pasta consolidar e divulgar os dados fornecidos pelas secretarias estaduais sobre o avanço da pandemia. Mas, a partir do início de maio, na medida em que os impactos da doença se intensificaram, o ministério passou a dar menos destaque para as mortes e novos casos.
Também esvaziou as coletivas de imprensa, que não são mais diárias, e adotou uma abordagem “otimista” em relação aos efeitos da pandemia, dando ênfase ao número de recuperados. A divulgação dos boletins com os mortos e contaminados, por sua vez, desapareceu das redes sociais da pasta.
Os números consolidados da pandemia estão sendo divulgados cada vez mais tarde pelo Ministério da Saúde. Em abril, na gestão de Luiz Henrique Mandetta, eles normalmente saíam por volta de 17h no horário de Brasília, durante coletivas de imprensa.
Depois, com a nomeação de Nelson Teich para a chefia da pasta, passaram a ser divulgados por volta das 19h. No final de maio, já sem Teich na pasta, os dados passaram a ser publicados com atrasos cada vez mais constantes, muitas vezes depois da 20h.
Nesta quarta-feira, uma nova marca: 22h. Na ocasião, a pasta alegou “problemas técnicos” para explicar a demora. Estranhamente, quando a tabela foi finalmente distribuída, ela indicava que os números haviam sido fechados às 19h.
Nesta quinta-feira, os dados foram novamente divulgados às 22h. Desta vez, a pasta não deu nenhuma explicação, apenas negou que os atrasos tenham sido propositais.
Os dois atrasos coincidiram com dois recordes consecutivos no número de mortes por covid-19. Na quarta, foram registradas 1.349 mortes. Na quinta, 1.473.
Não foi a primeira vez que uma mudança na forma da divulgação dos dados coincidiu com um novo recorde de mortes. Em 19 de maio, o ministério parou de divulgar a íntegra dos boletins nas redes sociais Twitter e Facebook. Foi justamente no dia em que o país registrou pela primeira vez mais de mil mortes em 24 horas.
Nas redes sociais, no lugar do boletim completo com mortes e casos, o ministério passou a replicar publicações “otimistas” da Secretaria de Comunicação do Planalto (Secom), que já vinha divulgando desde o final de abril um chamado “Placar da Vida”, que inclui apenas o número de infectados, recuperados e “em recuperação”, sem mencionar o número de mortos em decorrência da doença.
Acesse o Painel Coronavírus e confira o balanço completo da situação da #covid19 no Brasil https://t.co/cnyJY8jjmq https://t.co/A7WoyQOQRa
— Ministério da Saúde (@minsaude) June 4, 2020
Na noite de 18 de maio, antes da primeira marca diária de mil mortes ter sido atingida, a Secom sintetizou a visão numa publicação no Twitter que destacou a marca de 100 mil recuperados: “Hoje o Brasil comemora 100 mil vidas salvas em meio à crise mundial. (…). Enquanto muitos focalizam a morte, o Governo do Brasil trabalha pela vida e celebra a vida.”
Hoje o Brasil comemora 100 mil vidas salvas em meio à crise mundial. Mais precisamente, 100.459 pessoas curadas em todo o país. Enquanto muitos focalizam a morte, o Governo do Brasil trabalha pela vida e celebra a vida. 🙏🇧🇷 pic.twitter.com/GSxW9AWgiV
— SecomVc (@secomvc) May 18, 2020
Desde que essa publicação foi ao ar, o país contabilizou mais 17 mil mortes (metade do total desde o início da pandemia) e 343 mil novos casos.
Antes de o novo formato ter sido escancarado nas redes sociais, o próprio site do Ministério da Saúde já vinha adotando uma tática de diminuir o destaque dado às mortes e aos novos casos nos releases enviados à imprensa e reproduzidos em seu site.
A partir de 10 de maio, o número de mortes sumiu dos títulos dos textos. “Coronavírus: 162.699 casos confirmados e 11.123 mortes”, apontava o título naquele dia. No dia seguinte, porém, os “recuperados” entraram no lugar das mortes.
Em 18 de maio, foi a vez de o número de casos sumir dos títulos, ficando apenas os recuperados. O tom dos textos também mudou. Nesse dia passaram a incluir frases otimistas, como “uma boa notícia para começar a semana”. Quem quisesse se informar sobre as mortes e casos tinha que ir até o quinto parágrafo dos textos.
Não foi o fim. Nesta quarta-feira, pela primeira vez em meses, o ministério não publicou nenhum texto. O mesmo ocorreu na quinta-feira. Quem quisesse acessar os números tinha que consultar as tabelas do “Painel Coronavírus”, que não aparecem com destaque na homepage do ministério.
O próprio painel já havia sido reformulado em maio, passando a destacar o número de recuperados numa fonte com o dobro do tamanho daquela usada para informar a quantidade de mortos.
Todo esse movimento para diminuir o destaque das notícias negativas já havia começado na curta gestão de Teich, mas se intensificou ainda mais com a sua saída e a crescente submissão da pasta à visão do presidente Jair Bolsonaro, que minimiza os efeitos da pandemia.
O Ministério da Saúde está sem titular desde a saída de Teich, em 15 de maio. O posto vem sendo ocupado interinamente pelo general Eduardo Pazuello, que não tem experiência na gestão da saúde. Com Teich na pasta, as coletivas de imprensa já haviam deixado de ser diárias, mas o agora ex-ministro ainda tomava parte ocasionalmente em algumas. Já Pazuello não participou de nenhuma coletiva desde que passou a comandar a pasta.
A mudança na abordagem também ocorreu após cobranças de Bolsonaro e de um recado à imprensa do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. No dia 22 de abril, ele pediu para que os jornais e TVs divulgassem mais notícias positivas sobre a pandemia em vez de destacarem “caixão”, “corpo”, “número de mortos”.
“É muita notícia ruim, eu sei que está acontecendo, mas vamos também divulgar notícias boas”, disse o ministro na ocasião.
Na noite de quinta-feira, em meio ao segundo atraso consecutivo na divulgação da íntegra do boletim, jornalistas especularam nas redes sociais se não se trataria de uma ação deliberada para impedir que os números negativos fossem divulgados com destaque pelo Jornal Nacional (JN), principal telejornal do país. O JN é transmitido a partir das 20h30 e vem fazendo uma cobertura crítica ao governo.
Se essa foi a tática, ela não teve efeito na noite de quinta-feira. O JN informou aos seus telespectadores que, diante dos seguidos atrasos, o telejornal passaria a divulgar dados coletados com as secretarias estaduais pelo portal G1, que também pertence à Rede Globo.
Em entrevista ao UOL, o ex-ministro Mandetta afirmou que o processo de consolidação dos dados nacionais não é nenhuma tarefa complicada, levantando dúvidas sobre o “problema técnico” citado pela pasta na quarta-feira. Ele disse que para elaborar o boletim “em tese, seria só somar estes números [dos estados], listar por ordem alfabética e somar”.
Sobre os atrasos, ele disse ao UOL: “O grande problema é talvez perder a credibilidade e passar à população a impressão de que estão escondendo números. Seria o pior efeito deste tipo de coisa, a confiança da população quanto à veracidade e a confiabilidade dos números.”
O biólogo e doutor em virologia Atila Iamarino, que atua como divulgador científico, também manifestou preocupação com a abordagem do ministério nas últimas semanas.
“Enquanto o atraso ‘só’ boicotar os jornais, menos mal. Horrível e antidemocrático, mas ainda funcional. Se não tivermos esse número atualizado, não é mais democracia”, escreveu no Twitter.
E assim que publiquei o tuíte, saem os números. Ainda bem pela transparência. Terrível pelo recorde de mortes.https://t.co/oEL6iCz77l
— atila iamarino (@oatila) June 4, 2020