Brasil tem maior afastamento da Argentina em 35 anos

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Foto: AFP

Os presidentes Jair Bolsonaro e Alberto Fernández completaram mais de seis meses sem se falar desde que o argentino assumiu a Presidência do país, em 10 de dezembro passado. A ausência de diálogo marca um jejum inédito entre líderes dos dois países em cerca de 35 anos, desde a retomada da democracia no Brasil (1985) e na Argentina (1983).

Estudiosos sobre a relação bilateral ressaltam, porém, que “a retórica agressiva” é uma novidade desde o século 19, quando o Brasil e a Argentina começaram a se aproximar depois de terem deixado de ser colônias de Portugal e da Espanha, respectivamente.

No período atual, Bolsonaro e Fernández trocam alfinetadas públicas desde a campanha presidencial do argentino, no ano passado. Na ocasião, Bolsonaro defendia publicamente a reeleição de Mauricio Macri, opositor de Fernández, e previu que, se este fosse eleito, haveria um êxodo de argentinos rumo ao Brasil, a exemplo do que ocorrera em Roraima, estado “invadido” por venezuelanos fugindo dos problemas de seu país. Fernández reagiu dizendo comemorar que “um misógino e violento” falasse mal dele.

A inusitada troca de críticas públicas entre líderes dos dois países continuou durante a pandemia do novo coronavírus, um sinal de que o diálogo bilateral parece distante. Nas suas falas frequentes sobre a importância da quarentena para “salvar vidas” contra o vírus, Fernández costuma mostrar gráficos comparando o baixo número de mortes no país em relação aos de outros países, incluindo o Brasil.

Além disso, o presidente argentino citou o Brasil, governado por Bolsonaro, pelo menos três vezes – direta ou indiretamente -, como exemplo a não ser seguido. “Estamos vendo o que está acontecendo onde deram prioridade à economia”, disse, em alusão a quantidade de mortes por covid-19 no Brasil. Bolsonaro, por sua vez, afirmou, no fim de maio, que o modelo de quarentena argentina, com o agravamento da sua crise econômica, devia ser evitado. “Olhem para a nossa querida Argentina, é isso que vocês querem?”, afirmou, como reproduziu a imprensa argentina.

As diferenças ideológicas entre os dois líderes se refletiram no xadrez da diplomacia regional. Fernández apoia a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada em 2008 por Hugo Chávez, a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), criada em 2010 como uma espécie de herdeira do Grupo do Rio, e o Grupo de Puebla, um fórum “progressista” com líderes e ex-líderes de esquerda da América Latina e Espanha. Na gestão Bolsonaro, o Brasil se retirou da Celac e da Unasul, e lançou, juntamente com outros líderes conservadores da região, o Foro para o Progresso da América do Sul (Prosul).

Fernández é próximo de desafetos de Bolsonaro, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda durante a campanha presidencial, Fernández visitara Lula na prisão da Polícia Federal, em Curitiba. Na sexta-feira passada (26), ambos participaram de um ato virtual realizado pela Universidade de Buenos Aires (UBA).

Fernández disse: “Querido Lula, você não imagina a saudade que sentimos de você na Presidência. A relação seria outra (com a Argentina) e com a América Latina”. O presidente argentino criticou o capitalismo, ressaltou as “duras penas” enfrentadas na região e reforçou a luta conjunta dele com o colega mexicano Andrés López Obrador na busca por outros caminhos. Uma propagada aliança política entre a Argentina e o México, no lugar da – antes vista com natural – parceria entre a Argentina e o Brasil.

Recentemente, o Brasil teve de retirar seu candidato à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para não contrariar a iniciativa do governo Trump de colocar um candidato próprio – rompendo a tradição de manter o órgão sob comando de um latino-americano. O governo brasileiro disse ter visto a indicação americana “positivamente”; já Fernández criticou o “alinhamento regional” em torno do nome dos Estados Unidos nesta questão.

No cotidiano argentino, criticar o Brasil na condução da pandemia passou a ser corriqueiro. Mesmo outros políticos argentinos, como o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, aliado de Fernández, e comentaristas das televisões locais fazem referência ao Brasil.

“A economia argentina vai cair 9,9% em 2020, mas como a economia do Brasil também vai cair mais de 9% neste ano (segundo o FMI), o governo argentino pode argumentar que a quarentena foi a melhor saída porque evitou mortes e o desempenho econômico não vai ser muito diferente do brasileiro (que não teve uma quarentena unificada e nacional)”, disse o comentarista de economia Marcelo Bonelli, da TV TN.

No domingo (27), a Argentina registrava 1.207 mortes por covid-19, e o Brasil, tinha mais de 55 mil. Fernández disse que se a Argentina tivesse seguido o modelo brasileiro de encarar a pandemia, seu país teria cerca de dez mil mortes e não os números atuais.

Em entrevista recente ao jornal Clarín, de Buenos Aires, o chanceler Ernesto Araújo disse que o encontro entre Bolsonaro e Fernández poderia ter sido em março na posse do presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, mas não foi possível porque o argentino não participou. Araújo disse que Bolsonaro deu mostras de querer se encontrar com Fernández, como afirmou ao chanceler argentino Felipe Solá, em Brasília, mas que do lado argentino “não houve interesse” e os sinais do governo argentino “são ambíguos”. Os sinais claros, disse, são quando Fernández se refere ao “meu grande amigo presidente Lula”. Nos bastidores do governo argentino, fontes dizem que Bolsonaro é “agressivo” quando fala sobre a Argentina.

Mas quais são os efeitos práticos, na área econômica e comercial, desta animosidade ente os dois governos?

Ouvidos pela BBC News Brasil, fontes da diplomacia dos dois países, analistas e empresários concordaram que o distanciamento entre os governos nesses moldes hostis é inédito.

“O que acontece agora vai na contramão do processo associativo entre os dois países que é uma construção a partir do século 19, quando havia desconfianças herdadas do período colonial, e fomos avançando para uma relação de confiança e de transparência que incluiu a área nuclear, militar e comercial e a criação do Mercosul”, disse o ex-embaixador do Brasil na Argentina, Marcos Azambuja, falando do Rio de Janeiro. “Não que agora exista perigo de conflito, mas a retórica do presidente brasileiro sobre a Argentina, de interferência se ela vai para a esquerda ou a direita, não condiz com nossa postura, com nossa tradição.”

Para o analista político Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, de Buenos Aires, a falta de diálogo é inédita e não apenas desde o restabelecimento da democracia argentina em 1983. Como Azambuja, ele concorda que é a primeira vez que existe este ambiente deste o século dezenove. E acrescenta: “Mesmo quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, os canais diplomáticos entre os dois países não foram suspensos e não vimos jamais agressões entre os presidentes”, disse Fraga.

Brasil e Argentina tiveram atuações diferentes naquele período, quando o Brasil enviou tropas para combates na Itália e a Argentina optou pela neutralidade.

Na ditadura militar, nos dois países, investigações apontaram ações conjuntas no Cone Sul nos crimes contra direitos humanos até que, na retomada das democracias, com os ex-presidentes Raul Alfonsín, da Argentina, e José Sarney, no Brasil, a relação passou a ganhar contornos de transparência e diálogo fluido.

Para a professora de relações internacionais da Universidade Torcuato Di Tella, de Buenos Aires, a brasileira Monica Hirst, o Brasil está deixando hoje “um grande vazio” político na região, contrariando sua tradição de política externa. “O Brasil faz fronteira com dez países e, com a pandemia, ele virou dez focos de ameaça (de expansão da doença para seus vizinhos). O que vemos hoje é quase uma ironia ao lado do que foi a diplomacia brasileira de não gerar conflitos e de não ser ameaça aos seus vizinhos”, disse.

Na visão de Hirst, que também é professora do IESP, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o Brasil carece de uma estratégia regional em termos políticos e de saúde pública. E, no caso da Argentina, pratica o que chamou de “negacionismo”.

“O negacionismo que o Brasil aplica no caso da covid-19 aplica também para a não-relação com seu principal ator regional. É uma negação absoluta de uma construção, de uma história dos últimos 30 anos. E claramente, com esta atitude, é criar um enorme desequilíbrio na América do Sul”, afirmou Hirst. A parceria entre os dois países, acrescentou, era um eixo estratégico, militar e comercial na região. Para ela, neste contexto, o Brasil está deixando “um grande vazio”.

Para o cientista político argentino Guillermo Rodríguez Conte, da consultoria Prospectiva, “a diplomacia presidencial foi uma ponte fundamental para a construção do Mercosul e é melhor se ater sempre às instituições”.

Mas ele diz que as chances de uma relação fluida entre os dois governos já vinham sido minadas na campanha presidencial e que Fernández ter pedido “Lula Livre” no discurso da vitória, no final de outubro de 2019, “ajudou pouco”. Assim como uma postagem feita por Eduardo Bolsonaro no Twitter alguns dias depois, com uma foto dele em meio a armas ao lado de uma foto de Estanislao Fernández, filho de Alberto Fernández, vestido de drag queen: “Envolver a família é complicado”, diz Conte.

“A relação econômica bilateral tem se deteriorado desde a crise internacional de 2008”, diz o presidente da Câmara de Comércio Argentino-Brasileira de São Paulo, o argentino Federico Servideo, que acrescenta que o distanciamento ideológico congelou os esforços para reduzir essa deterioração.

“A relação comercial é muito concentrada em poucos itens, como automóveis e trigo, por exemplo, e a tendência, nesses anos, foi de maior presença de China e de Estados Unidos nos dois países”, disse Servideo, falando de São Paulo.

Dados oficiais apontam que o Brasil deixou de ser o principal sócio comercial da Argentina, em abril e maio, durante a pandemia. Nesse ambiente de frieza e rispidez política e novo cenário comercial, os dois presidentes poderão se ver, provavelmente, pela primeira vez, no dia dois de julho, na reunião virtual do Mercosul.

Nada garante, porém, como disse Fraga, que haverá diálogo entre os dois líderes.

Uol