Procuradora questiona utilidade do CNJ

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Fotos: Agência CNJ e Bruno Santos/Folhapress

Frederico Vasconcelos
Sob o título “15 anos de Conselho Nacional de Justiça: Nada a comemorar”, o artigo a seguir é de autoria de Ana Lúcia Amaral, procuradora regional da República aposentada.

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Por compartilhar da indignação do Dr. Danilo Campos, juiz aposentado em Minas Gerais, exposta no artigo “O balanço dos 15 anos do CNJ”, publicado neste espaço, permito-me trazer a minha.

Idealizado para fazer o controle externo do Poder Judiciário, o poder de Estado mais hermético, e sem o menor controle social, vez que do cargo só se sai morto ou aposentado, diferentemente do cargos eletivos que acabam por selecionar os integrantes dos outros dois poderes de Estado, o CNJ deveria abrir as masmorras do Poder Judiciário, para que todo lixo jogado para debaixo do tapete viesse a público.

Ambientes fechados deterioram. A depuração que se esperava promover via CNJ seria para o bem do Poder Judiciário, mas nada de transformador aconteceu.

Uma das mazelas nacionais é a impunidade.

O Poder Judiciário se mostrou disfuncional na medida em que desobedecer a lei nunca foi desestimulado por uma clara e boa decisão judicial.

Aqui é o país onde a lei não pega. Não são só criminosos que ficam impunes, ao permitir-se chicanas que procrastinam o feito até a prescrição. Os violadores das normas civis e administrativas são premiados com processos sem fim.

Quem não conhece a célebre frase utilizada cinicamente pelos descumpridores de contratos e outros negócios jurídicos: vá reclamar na Justiça!

Tudo que se imagina fazer para tornar o Poder Judiciário menos disfuncional, acaba por manter as coisas como sempre foram.

Com o CNJ não é diferente. Não só deixa de funcionar no que se refere à busca de correção de desvios de magistrados, que em grande parte configuram crime. Algumas pouquíssimas sanções se deram em casos cujas provas gritavam nos autos, fatos muitos deles públicos e notórios.

Falta de vontade de trabalhar, ou ignorar julgado por instâncias superiores, não há como corrigir nem no CNJ.

Trago apenas um exemplo, pois acompanho o caso de perto.

Em 1996, foi ajuizada a ação ordinária em litisconsórcio ativo, via sindicato de professores do município de São Paulo, processo nº 04127886119968260053, distribuído à 11ª da Fazenda Pública do Estado de São Paulo.

A tese era arguição de direito adquirido a uma forma de correção de vencimentos, com base em leis de 1988. Julgada improcedente em primeira instância, a decisão foi mantida pelo TJ-SP.

Por haver matéria constitucional, foi ao STF, embora o recurso não tenha sido admitido pelo tribunal de origem.

Admitido no STF o seu processamento, o Recurso Extraordinário foi provido em 2007, na esteira de tantos idênticos julgados do STF. Baixado feito para a execução do julgado, foi extinta a ação ao argumento que a Prefeitura Municipal tinha cumprido a decisão, tese da administração alegada na contestação da inicial.

Na Apelação o TJ-SP confirmou a sentença de extinção da execução.

Como entra o CNJ nisto tudo? Foi-se ao CNJ contar que juiz não cumpre julgado do STF. Responderam que o CNJ não era para isso e a parte interessada que recorresse. Simples assim…

Foi interposto Recurso Especial, e ao STJ coube explicitar que havia uma decisão de mérito, dando procedência à demanda, decisão essa proferida, nada mais, nada menos, do que pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual tinha que ser cumprida.

Baixado o feito para a execução do julgado, chegou-se a ser admitida a extinção da execução por inconstitucionalidade progressiva.

Como em 2014 houve uma decisão do STF que fixava outros critérios para a correção de vencimentos, o juiz estadual entendeu que a decisão do STF de 2007 virou inconstitucional em 2015. Mais recurso!

O TJ-SP desta vez não entrou na confusão. Em suma: qualquer coisa que a parte ré diz, vem o famoso “diga a parte autora”.

Em junho de 2020, ainda não há precatório.

Está evidente que mesmo seguindo as regras, as regras acabam sendo distorcidas, e acabam beneficiando o errado. Conseguir decisão favorável ao seu pleito não é garantia que seu direito será finalmente atendido. Juiz descumpre decisão do STF e fica por isso mesmo. Tem o jurisdicionado que engolir o “recorra!”

Não adiantou a criação do CNJ, pois a forma de escolha dos integrantes dos tribunais continua a mesma.

Juiz eficiente, dedicado, que demonstra estudar continuamente, vara em ordem, não é garantia de promoção. As razões por que uns são promovidos e não outros ficam ao gosto de conchavos internos.

Quanto aos Tribunais Superiores, a situação é ainda mais disfuncional. A escolha dos que irão preencher as vagas exige que o candidato “passe o chapéu” nos gabinetes dos parlamentares, que vão obter junto ao chefe do Poder Executivo o apoio para esse ou aquele nome, nem sempre pelas melhores razões.

À época do julgamento da ação penal conhecida como o “mensalão”, no STF, um dos réus contou que foi procurado por candidato à vaga naquela Corte para obter apoio junto ao chefe do Poder Executivo, que era do mesmo partido daquele réu. Parece que o combinado não saiu como o combinado.

Mais recentemente, na Operação Lava Jato, os recursos que chegavam ao STJ não conseguiam afetar as ações em sua origem.

Um postulante à vaga no STJ, que poderia vir a integrar a mesma turma daquele tribunal onde tramitavam os recursos da Lava Jato, teria sido contatado por parlamentar investigado.

Cogitava-se, com seu voto, poder alterar um pouco o equilíbrio das forças nos julgamentos de recursos contra decisões do TRF-4 que confirmavam as decisões proferidas pela 13ª. Vara Federal, em Curitiba.

Ainda que não tenha sido logrado aquele intento, àquela época, o fato é que a história deixou rastro de desconfianças.

Autoridades conseguiram, por décadas, escapar das barras dos tribunais por força do foro especial por prerrogativa de função.

Condenação no STF parecia coisa de livro de ficção. Não dá para dissociar a baixa operatividade dos tribunais superiores à forma de escolha de seus integrantes.

Muitos são os exemplos de indicados ao STF que estão muito longe do notório saber jurídico, mas lá estão porque o presidente da República assim escolheu, deixando a impressão que sempre está a procurar compor um quórum que não o incomode, se enredado em estranhas transações.

Nos julgamentos dos recursos oriundos dos processos da Operação Lava Jato, o STF ficou, novamente, exposto negativamente.

Não se percam de vista os incríveis embargos infringentes, admitidos no julgamento do Mensalão, quando não restou reconhecida a formação de quadrilha, que propiciou penas bem menores aos réus condenados na ocasião.

A quadrilha não reconhecida lá atrás era a origem da organização criminosa reconhecida nos processos da Operação Lava Jato. Personagens já muito conhecidos voltaram aos tribunais, enquanto outro que tinha passado ileso, anteriormente, foi alcançado.

A decisão pelo início da execução da pena, após condenação por colegiado em segundo grau, teve reviravoltas e reviravoltas no STF, não havendo qualquer má vontade por parte de quem entendeu que mudou a orientação porque uns réus são mais iguais do que outros.

Além de estar revirando sua jurisprudência em espaço curto de tempo, o STF chegou até a legislar ao criar uma nova ordem na apresentação das alegações finais, em caso de haver réu colaborador. Criou-se norma que atingiu ato processual realizado no passado. E nem ficaram corados!

Enquanto a Lava Jato alcançou quase que todos os segmentos de poder, atraindo a admiração de boa parte da sociedade, viu-se no STF um movimento para desmontá-la, esvaziá-la.

Alguns dos seus integrantes demonstravam ira quase que doentia pelos agentes públicos que estavam realizando aquele trabalho.

Depois de decisões por demais controvertidas, o STF conquistou a desconfiança e a rejeição de muitos.

Movimento pela Lava Toga foi feito, mas sem sucesso, na medida que dependeria do Congresso Nacional, onde há um número considerável de parlamentares já denunciados ou investigados. Sabe-se que há numerosos requerimentos por impeachment contra integrantes do STF.

Ano passado o STF, por seu presidente, fez movimento de juridicidade e constitucionalidade duvidosas: instaurou inquérito sobre supostas ameaças aos integrantes do STF e seus familiares. Sem fato ou sujeitos definidos a serem investigados, o relator escolhido e não sorteado determinou a censura de revista eletrônica, que publicou a existência de documento em processo judicial público no qual o presidente daquela Corte era mencionado.

Não bastasse, o mesmo presidente do STF proferiu decisão, em atendimento a pedido de quem nem era parte naquele processo, suspendendo todas as investigações nas quais o COAF tivesse enviado seus relatórios.

O feito em que lançado aquele despacho não tinha nada a ver com o COAF.

Tudo porque foi publicada matéria, naquela revista censurada, dando conta que havia movimentações estranhas em contas de integrantes do STF e suas esposas. Sobre esse assunto nada mais foi mencionado. Não pode e não pode, e fim de papo!

A procuradora-geral da República, à época, manifestou-se pelo arquivamento daquele inquérito, em função de tantas irregularidades, para não dizer inconstitucionalidades.

O atual PGR, escolhido fora da lista tríplice, “topou” o inquérito também chamando de inquérito do fim do mundo, ou das fake News.

No entanto, agora que até o presidente da República pode ser incluído nesse inquérito, pois estimula as críticas mais agressivas de seus apoiadores aos integrantes do STF, o que se vê são ministros daquela Corte, antes desconfortáveis com o inquérito do fim do mundo, dando ar de normalidade e até de constitucionalidade ao procedimento.

Curioso, foi o PGR, que antes concordava com o tal inquérito, e agora, que pode chegar ao Chefe do Executivo Federal, pedir a suspensão. Ou que deixem o MPF participar. Tal seria concordar sem a participação do MPF…

A prisão de Sara Winter, apoiadora do presidente da República, que teria lançado fogos de artifício em direção à sede do STF, além de declarações absurdas, teve enquadradas suas ações e falas na Lei de Segurança Nacional, de sorte que estaria inserida no “inquérito sobre atos antidemocráticos” que agora é o nome dado ao inquérito do fim do mundo, e amplamente aceito pela imprensa e meios jurídicos.

A prisão temporária, por enquanto, da “apoiadora” do presidente da República teve até a aprovação do ministro Gilmar Mendes, sempre tão contrário à prisão de assaltantes do erário.

Lembrei, por outro lado, dos milhares de presos condenados, soltos por força da Covid-19.

Diante de todo esse quadro, como esperar que o CNJ funcione bem? Estamos a tratar da mesma mentalidade dominante nesses nichos de poder, que nos tira a esperança de um futuro melhor para o País.

Ouvi, há poucos dias, de veterano profissional do Direito que o Poder Judiciário é bom para o mau direito.

Folha De S. Paulo