Briga com PGR é canto do cisne da Lava Jato
Foto: Paulo Lisboa – 30.nov.16/Folhapress
O choque entre a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e a PGR (Procuradoria-Geral da República), comandada por Augusto Aras, a respeito do grau de autonomia da equipe no Paraná é o ápice de um prolongado processo de deterioração na relação entre as duas partes.
O desgaste começou ainda quando Raquel Dodge assumiu o cargo de procuradora-geral, três anos atrás. Tanto Dodge quanto agora Aras atuaram sem o alinhamento quase total que era mantido entre procuradores da Lava Jato da primeira instância com Rodrigo Janot, que esteve à frente do Ministério Público no auge da operação, até setembro de 2017.
Na mais incisiva declaração contra a equipe do Paraná em seis anos de operação, a PGR divulgou comunicado no último fim de semana afirmando que a Lava Jato “não é um órgão autônomo e distinto do Ministério Público Federal, mas sim uma frente de investigação que deve obedecer a todos os princípios e normas internas da instituição”.
A declaração foi uma resposta à reclamação que a equipe fez à Corregedoria da PGR sobre a tentativa de Lindora Araújo, uma das auxiliares mais próximas de Aras, de obter cópias de dados de investigações abertas em Curitiba.
Além dessa questão, o procurador-geral e o grupo liderado pelo procurador Deltan Dallagnol também divergem sobre a proposta de criação de um novo órgão na estrutura do Ministério Público, chamado Unac (Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado), ao qual as forças-tarefas da Lava Jato no Rio, em São Paulo e no Paraná trabalhariam vinculadas.
A possibilidade de excessiva centralização em Brasília, porém, gera desconfiança sobre o plano. Integrantes do grupo na capital paranaense passaram a se manifestar nos últimos dias em rede social cobrando independência.
Pesa ainda na disputa a própria legitimidade da gestão Aras junto a seus pares. Diferentemente de seus antecessores, o atual procurador-geral chegou ao cargo por indicação direta do presidente Jair Bolsonaro, sem passar pela eleição interna da categoria, procedimento por tempos encarado praticamente como uma questão de honra na instituição.
No caso de Dodge, a crítica maior em Curitiba, como mostraram conversas por meio do aplicativo Telegram obtidas pelo site The Intercept Brasil em 2019, era o ritmo moroso dos novos acordos de delação, um dos pilares da investigação.
Se na gestão de Rodrigo Janot havia uma linha direta na comunicação entre Brasília e Curitiba e ritmo intenso na concretização das delações, a partir de 2017 o volume de novos delatores despencou.
Dodge já havia freado o espírito de autonomia do grupo do Paraná ao se posicionar de maneira contrária, em 2019, ao plano dos procuradores de gerenciar, por meio de uma fundação privada, recursos bilionários recuperados de desvios na Petrobras.
A iniciativa de constituir essa entidade foi um dos símbolos do ativismo do grupo de procuradores, motivando críticas dentro e fora do Ministério Público.
Esse voluntarismo da equipe, que incluiu ao longo dos anos o projeto de Dez Medidas Contra a Corrupção, derrubado no Congresso em 2016, e manifestações na mídia pressionando tribunais superiores, seria reforçado por reportagens feitas com base nos diálogos que mostraram, por exemplo, tentativas de apurar informações sobre figuras com foro especial.
A Folha e o Intercept mostraram que Deltan incentivou colegas em Brasília e em Curitiba a investigar sigilosamente o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, hoje presidente da corte.
A Constituição estabelece o princípio da independência funcional aos membros do Ministério Público e prevê ainda a “unidade e a indivisibilidade” da instituição. Por essa lógica, o material obtido na capital paranaense é entregue à instituição como um todo, e não apenas a indivíduos integrantes da força-tarefa.
Na correlação de forças, também é preciso levar em conta o poder da caneta do procurador-geral sobre os rumos da força-tarefa.
O grupo de Curitiba foi criado por designação do então procurador-geral Janot, ainda em 2014, tendo seu trabalho renovado sucessivamente. E depende agora de Aras para que o formato atual, com procuradores provisoriamente “emprestados” de outras lotações, seja mantido. A autorização precisa ser renovada em setembro.
O conflito coincide também com um período de esvaziamento dos trabalhos em Curitiba.
Duas das principais frentes da equipe no Paraná no ano passado, envolvendo o ex-operador do PSDB Paulo Preto e os negócios de um dos filhos do ex-presidente Lula (PT), acabaram retiradas de Curitiba por decisões da segunda instância.
Nos seis primeiros meses deste ano, em que pese a pandemia do novo coronavírus, foi deflagrada apenas uma nova fase etapa da operação.
A isso se somam o pacote anticrime, que foi sancionado em dezembro e dificultou prisões preventivas, e a decisão do Supremo que barrou a detenção de réus condenados em segunda instância, adiando a perder de vista o efeito prático das sentenças expedidas na capital paranaense.
Desde 2014, foram deflagradas 71 fases da operação no Paraná, com 49 acordos de colaboração e 14 de leniência firmados no estado.
É o conteúdo desse “acervo”, que inclui documentos apreendidos, dados de transações dos investigados e relatórios de inteligência, que a equipe no estado resiste em compartilhar com os auxiliares de Aras sem que exista um objetivo definido.
“O apoio mútuo entre as várias unidades do MPF ou outras instituições não equivale a permitir que diligências sem fundamento claro, objeto e objetivo possam incluir o acesso indiscriminado a materiais probatórios”, escreveu Deltan Dallagnol em rede social nesta quarta (1º).
O professor de direito constitucional da UnB (Universidade de Brasília) Paulo Blair entende que a iniciativa da PGR de pedir cópia das informações, na forma da lei, não deveria ser vista como estranhamento e que não há violação da autonomia funcional.
Ele afirma que a lei já prevê medidas que estabeleçam uma mínima orientação comum e conjunta entre membros do Ministério Público, como câmaras de coordenação e planos de atuação.
“Isso só nos causa estranheza porque nos acostumamos a pensar, dada a importância simbólica da Lava Jato, como algo que é, em si mesmo, uma cápsula fechada, capaz de redimir a nossa corrupção histórica.”