Combate a fake news ocorre no mundo todo

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Foto: Jefferson Rudy / Agência Senado

Ao mesmo tempo em que outros países tratam do tema e implementam mecanismos de combate à desinformação, cresce no Brasil a discussão sobre o projeto de lei das fake news, já aprovado no Senado e agora em análise na Câmara dos Deputados. Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que o debate é necessário, mas ponderam que não deve ocorrer de maneira apressada e defendem ajustes no texto. O modelo autorregulatório das plataformas vem sendo questionado no mundo todo, o que já levou à adoção de iniciativas, por exemplo, na Alemanha, que tem uma legislação em vigor centrada no controle ao discurso de ódio.

Na definição da pesquisadora Clara Iglesias, do Berlim Social Science Center, as plataformas deixaram de ser vistas como “grandes ferramentas democratizantes” e passaram a ser encaradas como “vilãs da democracia”. Estudiosa de legislações internacionais sobre o assunto, ela considera que o texto brasileiro “tem mecanismos inovadores, o que não quer dizer que sejam bons ou ruins” e elogia o trecho sobre transparência.

O artigo citado determina que as redes sociais produzam relatórios trimestrais que contenham, entre outras informações, o volume de usuários que acessaram os provedores a partir de conexões localizadas no Brasil; o número total de medidas de moderação de contas e conteúdos adotadas; e a quantidade de contas automatizadas e de redes de distribuição artificial detectadas. Em 2018, a União Europeia criou um código de boas práticas das plataformas, que prevê a entrega de relatórios mensais de transparência. Por lá, especialistas como o diretor executivo do News Media Europe, Wout Van Wijk, asseguram que o código não foi suficiente para o combate à desinformação.

— A aplicação é voluntária, então foi encarado com superficialidade pelas plataformas. Hoje, estamos discutindo uma legislação sobre responsabilidade e transparência — avaliou Wijk, para quem “o melhor antídoto contra as fake news é um jornalismo de qualidade”.

Nos Estados Unidos, o diretor executivo do News Media Alliance, David Chavern, aponta que vem crescendo a consciência social sobre a necessidade de impor limites à atuação das plataformas, como medida essencial para enfrentar a desinformação:

— Estamos debatendo, dentro e fora do Congresso, como aumentar a quantidade de boa informação e elevar a responsabilidade por parte das plataformas no caso de má informação. O foco não está tanto naqueles que originam os conteúdos, mas em quem os dissemina.

Especialistas brasileiros concordam que um novo passo é essencial, apesar de algumas críticas ao ritmo acelerado com que o Congresso vem lidando com o tema. O professor da USP Pablo Ortellado é favorável ao mecanismo de rastreabilidade, na forma exata como foi aprovado no Senado. O texto estipula que serviços como o WhatsApp guardem os registros de mensagens que alcancem mais de mil usuários, dentro de um intervalo de 15 dias — não há acesso ao conteúdo disseminado. Para ele, a ausência de controle expões falhas, percebidas claramente no momento atual, em meio à pandemia de coronavírus.

— O que temos hoje permitiu campanhas horrorosas, negacionismo da pandemia de Covid-19, difamação da vereadora Marielle Franco (assassinada em 2018). Por que a comunicação de massa deve ter sigilo? O texto não quebra a criptografia. Entendo a preocupação das pessoas com informações privadas, mas a discussão é sobre sigilo em comunicação de massa, e isso está bem diferenciado — pontuou Ortellado.

O coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-Rio, Ivar Hartmann, defende os procedimentos de moderação e transparência presentes no projeto, que, segundo ele, poderia ser mais “enxuto”. Ele considera, no entanto, que a implementação da rastreabilidade deveria ser precedida de um debate mais amplo:

— Acho uma discussão necessária, mas isso requer muito mais tempo.

A diretora do InternetLab, Mariana Valente, alerta para a possibilidade de “retenção de dados em massa”.

— Temos de discutir, mas não partir para um vigilantismo que pode se virar contra nós. Acho mais interessante o trecho que limita o tamanho dos grupos e o número de encaminhamentos. Apostar na rastreabilidade para chegar no autor original… Sou cética.

Ortellado acrescenta que seriam bem-vindos ajustes no artigo que trata de procedimentos de moderação das plataformas. O item em questão determina que os usuários sejam notificados sobre conteúdos — a lei não trata especificamente sobre o teor das publicações — derrubados e a fundamentação da medida.

— As plataformas devem explicar por que retiraram a publicação. Em algum momento, também teremos de regular conteúdos — avalia Ortellado.

Pesquisadores citam como pontos positivos trechos do projeto que proíbem agentes públicos de bloquear usuários, fazendo com que não vejam suas postagens, assim como a vedação ao poder público de destinar “publicidade para sítios eletrônicos e contas em redes sociais que promovam atos de incitação à violência contra pessoa ou grupo, especialmente em razão de sua raça, cor, etnia, sexo, características genéticas, convicções filosóficas, deficiência física, imunológica, sensorial ou mental”.

Professor de Direito Eleitoral da Universidade Mackenzie, Diogo Rais considera que há artigos do texto que violam a privacidade dos usuários e lamenta a falta de meios para encontrar e punir os financiadores da rede de fake news. Deputados já indicaram que vão acrescentar ao texto mecanismos com este objetivo.

— As discussões estão olhando para os usuários e não para o dinheiro que alimenta as redes de desinformação — disse Rais, autor do livro “Fakenews, a conexão entre a desinformação e o direito”.

Carlos Affonso Souza: ‘Projeto não ataca a raiz do problema’
Na visão do advogado Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), o projeto de lei das fake news está sendo tratado de forma apressada e não ataca uma questão central: a criação de mecanismos para detectar a raiz da cadeia de desinformação e seu financiamento.

Qual é sua opinião sobre a proposta em debate na Câmara?

Sou a favor da discussão sobre desinformação, mas não a favor deste projeto, que não tem nada a ver com fake news. O próprio conceito de desinformação foi retirado da proposta. O atual projeto peca pelo processo, muito acelerado para um tema tão complexo, pelo pouco debate e também por ser pouco permeável a visões mais distintas.

Por que o senhor considera, entre outros motivos, que este projeto não resolveria o problema da desinformação?

Entre outras razões, porque ele não ataca a raiz do problema, a questão do financiamento, o famoso “follow the money”. Estava no texto e foi removido por falta de consenso. Seria melhor um projeto que focasse em ampliar métodos de investigação para seguir a raiz das cadeias de desinformação, mais do que criar um arcabouço regulatório.

Que pontos do texto preocupam?

O projeto mira as grandes plataformas, criando regras que são interessantes em termos de transparência, mas com um detalhismo que não cabe numa lei tão pouco debatida. Pode transformar o Brasil numa ilha, completamente separado das soluções regulatórias existentes em outros países. O artigo 32 afirma que as redes sociais e serviços de mensagens privadas, como o WhatsApp, “deverão ter sede e nomear representantes legais no Brasil”. O mesmo item diz que essas informações devem ficar disponíveis na internet e que as plataformas também precisam “manter acesso remoto, a partir do Brasil, aos seus bancos de dados, os quais conterão informações referentes aos usuários brasileiros e servirão para a guarda de conteúdos nas situações previstas em lei, especialmente para atendimento de ordens de autoridade judicial brasileira”. Isso atropela esforços diplomáticos e também cria uma medida unilateral de acesso a dados. A definição de rede social também é complicada, já que afirma que trata-se de uma aplicação de internet que permite a conexão entre usuários. Isso pode pegar grandes redes ou qualquer site de e-commerce. Gera dilemas e pode levar a uma aplicação seletiva da lei.

O projeto em debate na Câmara dos Deputados é “um caminho interessante” para enfrentar a questão da desinformação e da transparência nas redes sociais, segundo a coordenadora de campanhas da Avaaz, Laura Moraes. Embora faça algumas ressalvas ao texto já aprovado no Senado, Laura assegura que é importante criar uma lei que trate das fake news, em função do calendário eleitoral — o primeiro turno das eleições municipais está marcado para 15 de novembro. “A desinformação tornou-se gigantesca neste contexto”, considera Laura.

Como a Avaaz vê o projeto em discussão?

A versão aprovada no Senado tem pontos bem importantes sobre transparência, que é algo fundamental, e traz também o artigo que proíbe contas inautênticas e automatizadas. A sociedade civil não é uníssona sobre este projeto, mas consideramos importante conseguir uma proposta sobre desinformação. Teremos eleição neste ano, e ela estará muito presente no meio virtual, por causa da pandemia. Se teremos ou não uma boa lei, dependerá do debate. Nós queremos melhorar o processo, não destruí-lo.

Até agora, que aspectos positivos destacaria do processo?

Hoje, o poder das plataformas é gigante. Temos pesquisas que mostram que 110 milhões de brasileiros acreditaram em pelo menos uma fake news sobre a Covid-19. Se 10% dessas pessoas tomarem decisões com base nisso, obviamente nossa curva de contágios aumenta pela desinformação. Prezamos pela liberdade de expressão, mas achamos que é o momento deste debate, com seriedade. Ele afeta outros direitos fundamentais. Nos alegra que o Brasil possa se tornar uma referência mundial, mesmo que o projeto acabe focando principalmente na transparência.

O que precisa melhorar?

O texto não discute com seriedade parâmetros de conteúdo, sendo que as plataformas são as únicas que podem tirar esse megafone da desinformação e fazer com que as pessoas recebam informação factual, por exemplo, produzida por veículos jornalísticos. Questionamos pontos específicos, como a implementação de sanções. Como está, podem ser manobradas. O artigo dez, sobre rastreamento de mensagens em serviços de mensagens privadas, ainda estamos estudando. O texto pode ser aprimorado.

O Globo