Governo manobra para burlar teto de gastos
Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados
Para reforçar o projeto do programa social Renda Brasil, a equipe econômica propôs usar até R$ 8 bilhões por ano fora do teto de gastos para criar um voucher-creche.
A proposta de transferir recursos para que os beneficiários busquem uma creche na rede privada, porém, é vista como uma “contabilidade criativa” por economistas.
Nas discussões com o Congresso sobre a ampliação do Fundeb (fundo para a educação), que financia o sistema público de ensino, o ministro Paulo Guedes (Economia) apresentou a ideia de usar parte desses recursos para bancar um auxílio de R$ 250.
Esse dinheiro seria como adicional a beneficiários do novo Bolsa Família, batizado de Renda Brasil.
Diante de forte resistência, inclusive do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), interlocutores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) passaram a negociar com líderes do Congresso às vésperas da votação da proposta, prevista para esta terça-feira (21).
A PEC da Câmara torna o Fundeb permanente, amplia a complementação da União para 20% de modo progressivo até 2026, e altera, entre outras coisas, o formato de distribuição dos novos recursos.
Por causa das críticas, o Palácio do Planalto sugeriu, na noite desta segunda (20), que a complementação chegasse a 23% —com destinação de 5% para educação infantil, sem previsão de usar parte do incremento no Fundeb para financiar o programa assistencial.
O texto, portanto, ainda pode sofrer modificações até a análise na Câmara da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) de ampliação do Fundeb.
O reforço no orçamento da área social, defendido por Guedes, também subiria de forma gradual e poderia ficar entre R$ 6 bilhões e R$ 8 bilhões por ano, a partir de 2026.
Como o Fundeb não está limitado à regra do teto de gastos, esse montante estaria fora da trava de crescimento das despesas públicas, prevista na norma aprovada pelo Congresso em 2016.
“Eu acho que é ruim misturar as coisas. Isso seria fazer um programa de transferência de renda com dinheiro do Fundeb, que foi criado para custear gastos com educação”, disse o diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente, órgão ligado ao Senado), Felipe Salto.
“O Renda Brasil é um programa de renda básica permanente. Isso [usar recursos do Fundeb] vai ser visto como contabilidade criativa”, afirmou o economista Daniel Veloso Couri, diretor da IFI.
A economista-chefe da gestora ARX Investimentos e colunista da Folha, Solange Srour, afirma que, se o Renda Brasil demandar gastos maiores que os programas sociais atuais do governo, precisa ter como contrapartida cortes de despesas.
Colocar a iniciativa ou parte dela fora do teto de gastos contribui para acabar, na prática, com a regra constitucional que limita as despesas federais.
“De fato, é uma maneira de burlar o teto. O Renda Brasil deveria ser um programa que usasse os recursos que já são gastos atualmente em diversos programas sociais, fazendo um redesenho. Qualquer recurso a mais deveria usar espaço em algum corte despesa, para cumprir o teto. O que o governo tentou foi usar uma brecha. Já que o Fundeb está fora do teto, colocar uma parte do Renda Brasil no Fundeb”, afirma Srour.
Ela diz que, se houver algum outro deslize fiscal, essa questão vai ser lembrada pelo mercado.
“É uma manobra. Não tem como usar outro nome. O mercado só não reage de forma muito negativa porque o cenário externo está muito positivo e há uma promessa de que o governo vai mandar algumas reformas econômicas, de que a agenda liberal continua.”
Integrantes do governo negam que a proposta seja uma forma de burlar a regra do teto de gastos.
A equipe econômica diz que esse recurso não seria livremente usado no pagamento de benefícios assistenciais, pois o dinheiro seria aplicado na educação, como determina o Fundeb.
Haveria uma espécie de carimbo para que a verba seja direcionada especificamente para o pagamento do voucher-creche. Com esse recurso em mãos, o beneficiário poderia procurar uma creche particular para matricular o filho.
A proposta do governo de transferir parte da complementação da União no Fundeb ao Renda Brasil também foi criticada por Maia. Ele sugeriu que a equipe econômica resiste em priorizar recursos para a educação.
“Até porque nós estamos vendo que, para alguns temas, parece que o governo entende que tem dinheiro. Para outros temas, como essa prioridade de curto prazo na educação, parece que o governo gera mais resistência. Pelo menos a equipe econômica”, afirmou o presidente da Câmara nesta segunda.
Apesar de recursos que seriam deslocados para o Renda Brasil representarem um montante de aproximadamente R$ 8 bilhões ao ano, estimativas do Ministério da Economia apresentadas à Folha apontam que seria possível atender 2 milhões de crianças com uma verba anual de R$ 6 bilhões.
O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, afirmou que a ideia do governo não desvia a finalidade dos recursos da educação e prioriza a formação na primeira infância.
“Nós podemos dar um voucher-creche da ordem de R$ 250 por mês, e nós eliminaríamos todo déficit de creche para essas crianças, com fortíssimo impacto no atendimento a essas famílias com crianças na faixa de 0 a 3 anos, que demandam creche e não são atendidas hoje”, disse à Folha.
Segundo o secretário, o déficit de creches para famílias com renda mensal de até meio salário mínimo está pouco acima de 2 milhões de vagas.
Outra crítica de especialistas é que a proposta do novo Fundeb deve acabar pressionando as contas dos estados e municípios no futuro.
Como o piso salarial do professor é vinculado à despesa por aluno, o reajuste deve acompanhar o crescimento dessa despesa.
O valor mínimo gasto por aluno no país teria uma alta de 39%, passando de R$ 3.427 para R$ 4.778, segundo cálculo da Consultoria do Orçamento da Câmara.
O número de municípios beneficiados com a complementação seria 34% maior, das atuais 1.699 cidades para 2.284 em 2026.
O Fundeb, principal mecanismo de financiamento da educação básica, é responsável por R$ 4 de cada R$ 10 gastos pelas redes públicas nesta etapa. Sua vigência expira no fim deste ano.
O dispositivo reúne parcelas de impostos e recebe uma complementação da União para estados e respectivos municípios que não atingem o valor mínimo a ser gasto por aluno no ano. O complemento federal atual é de 10% —cerca de R$ 16 bilhões no ano.