Mulher pisoteada por PM perdeu o “respeito pela farda”

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Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Estou acamada. Fiz cirurgia na perna e estou me recuperando aos poucos. Sou viúva há nove anos, tenho cinco filhos e duas netas. Antes de ter o bar, eu era cuidadora de idosos. Quando meu marido faleceu, larguei a profissão. Como cuidadora, tinha de ficar muito tempo fora de casa. Amava minha profissão, amava meus velhos, mas abandonei com o coração partido para ficar perto de meus filhos, que eram pequenos na época. Queria ver meus filhos crescerem debaixo dos meus olhos. Eles estão comigo agora. Estão preocupados e revoltados. Se estivessem aqui na hora do que aconteceu, poderia ter sido pior. Porque eles não aceitariam um estranho batendo na mãe deles.

Trabalho de segunda a domingo, à noite, horário em que o bar funciona. Não tenho folga, porque temos de trabalhar para sobreviver e é desse barzinho que há oito anos tiro meu sustento e o de minha família. A rua onde tenho o bar é pequena e moro aqui há quase 30 anos. Nem todos gostam muito que exista um bar na rua. Mas faz parte, toda rua tem um.

No dia do incidente, estava no bar por volta das 13h20, aguardando a entrega de bebidas. Quando estava organizando vasilhames, chegaram clientes. Como trabalho com alimentação também, só podia atender no sistema de meia porta, por causa da pandemia.

Aí chegou um rapaz, cliente e conhecido meu há bastante tempo, com carro e som alto. Pedi para ele abaixar o som e avisei que a vizinha do prédio chamaria a polícia. Ele fechou a tampa do carro atrás para diminuir o som. Voltei para dentro do bar e fiquei lá entretida. Depois de um tempo, ouvi uma barulheira lá fora.

“‘QUANDO O POLICIAL COMEÇOU A APERTAR MEU PESCOÇO, LEMBREI DA IMAGEM DO GEORGE FLOYD. ACHEI QUE ERA O FINAL DA MINHA VIDA. AGORA TEMO PELO FUTURO. SERÁ QUE ELE NÃO VAI APARECER OU MANDAR ALGUÉM FAZER ALGO COMIGO?’”

O dono do carro estava sendo agredido por um policial. Fui pedir para o policial parar de agredir. O rapaz já estava encolhido no chão, no canto das grades do bar. E o policial dando joelhada nele (um dos vídeos feitos por moradores também mostra a comerciante agredindo o policial com um rodo). Pedi de novo, ele não parou e me empurrou contra a grade do bar. Me deu três pancadas no peito e eu fiquei meio tonta.

Então o policial veio em minha direção e me deu uma rasteira. Na hora, senti muita dor na perna. Quando ele me levantou, eu disse que minha perna estava quebrada e ele disse que estava “quebrada porra nenhuma”. Mas ela não ficava reta, dobrava. Foi quando ele me pegou pela blusa e pelo cabelo e me jogou diante do carro que estava em frente ao bar. Caí na frente do carro.

O policial, então, veio, pisou no meu pescoço e ficou apertando. Meu rosto ficou preso no asfalto, eu sentia muita dor na perna, me debatia e ele tentava colocar a algema. Eu já estava quase sem fôlego. Não é permitido um policial fazer o que ele fez comigo. E isso não vai sair da minha mente nunca. Quando ele começou a apertar meu pescoço, eu lembrei da imagem do George (George Floyd, americano assassinado por um policial em 25 de maio último. Floyd foi asfixiado pelo joelho de um policial em seu pescoço, e durante oito minutos e 46 segundos afirmou, mais de 20 vezes, que não conseguia respirar).

O tempo todo ele pisava no meu pescoço como se aquilo fosse… um troféu para ele. Achei que era o final da minha vida. Cada vez que ele pressionava, eu me debatia. Quanto mais eu me debatia, mais ele apertava meu pescoço contra o asfalto. E o ar ficava mais curto. Desmaiei três vezes. Eu apagava e acordava, mas via tudo sombreado. Acordei de um dos desmaios depois de ele me arrastar pelo cabelo para a calçada do vizinho. Quando acordei, senti meu rosto gelado e achei que ele estava molhado. Pensei que era água do chão, mas era sangue.

Acordei com um rapaz pedindo: “Para de fazer isso com ela! Bate em mim! Bate em mim!”. O policial não deu muita atenção e apaguei de novo. Depois uma vizinha pediu para ele não me machucar, dizendo que eu era trabalhadeira, de bem, uma guerreira. Ela disse: “Por favor, eu tenho câncer! Tenho câncer!”. Quando ela falou isso, ele saiu de cima de mim e parou de me agredir.

Mas aí eu desmaiei de tanta dor que sentia e quando acordei de novo meus dois filhos chegaram. O policial alegou que eu agredi seu colega com uma barra arrancada da grade do meu bar. Mas eu não tenho nem força para isso e jamais faria isso. Ele falou que foi agressão, desacato, que eu não quis ser algemada e que eles foram fechar o bar por causa da pandemia. Mas em nenhum momento falaram para mim que vinham fechar o bar, nem chegaram à porta do bar. Vieram resolver o problema do carro com som alto e nem perguntaram se o bar era meu.

Pelo que fiquei sabendo depois, eles foram direto no dono do carro para tentar tomar a chave. Como o dono jogou a chave em cima da laje, o policial ficou irritado e começou a agredir ele. Mas aquele policial (chamado João Paulo, segundo o “Fantástico”) não estava normal. Estava muito alterado. Os outros dois estavam normais, não bateram em ninguém. Eu não o agredi, mas pelo que ele fez comigo aqui, onde moro há quase 30 anos, a população queria bater nele. Foi então que eles pediram reforço e vieram mais duas viaturas.

Se pudesse voltar atrás, eu não sei… Acho que teria feito a mesma coisa. Mas agora, querendo ou não, eu manchei minha vida, porque agora respondo a quatro inquéritos. E me pergunto como vai ser o amanhã e depois.

O oficial queria me colocar com a perna quebrada na viatura, mas meu filho impediu. Disse que não tinha lógica, porque eu não era bandida, era alguém de bem. Me colocaram no banco de trás da viatura e me levaram para o hospital. Quando estava esperando para ser medicada, o policial que me agrediu apareceu lá. E eu surtei, surtei. Ele me olhava com olhar de deboche. E eu falei para ele: “Até dia 29 de maio (dia anterior à agressão), eu respeitava a farda de vocês e tinha orgulho de ver vocês vestidos nesta roupa cinza”. Por causa de um, eu fico imaginando quem vai estar por trás daquela farda: é um bom ou um lobo na pele de cordeiro?

Do hospital fui para o 101º DP e ali me colocaram numa celinha escura. Um policial colocou uma cadeira para eu sentar e um isopor para apoiar a perna, que estava engessada até a virilha. Lá passei a noite. O caso foi tão estranho que, quando fui presa, nem pegaram meu depoimento. Cheguei à delegacia e fui direto para a celinha. A delegada não prestou atenção no que tinha acontecido comigo, só colheu o depoimento dos policiais. Não sei nem como é o rosto dela. Simplesmente fui jogada numa cela como se fosse a maior criminosa do mundo.

Passei a noite presa e às 8 horas da manhã, como eu não conseguia andar, pediram para que os outros dois rapazes que foram presos comigo (o dono do carro com som alto e um outro rapaz) me carregassem até o lado de fora para me colocar no camburão, para ir para o exame de corpo de delito.

Eu não tinha condições de subir com a perna quebrada nesse carro, que era alto como um furgão, então me colocaram no banco de trás. Eu gritava de dor. Fiz o exame de corpo de delito e, de lá, me levaram para uma delegacia feminina, na qual fiquei até a noite presa.

Nunca tive experiências com a polícia parecidas com essa. Sou filha de negros e negra. A polícia é mais violenta com os negros. Quando abordam grupos, os negros são sempre mais prejudicados. Não me sinto segura. Até agora ninguém falou: “Vamos te proteger, vamos pedir uma medida protetiva para você, para que possa andar tranquila com seus filhos na rua”. E como vai ser minha vida daqui em diante? Será que realmente esse policial não vai pedir que alguém se vingue de mim ou dos meus filhos? Ele não vai um dia aparecer ou mandar alguém ao meu bar e fazer algo comigo? Eu fico pensando nisso.

Mas eu me julgo corajosa. Porque alguém tinha de fazer alguma coisa. Chega de acontecerem coisas erradas e a gente ficar tampando o tempo inteiro, com medo de botar a cara para bater. E talvez, por meu intermédio, muitas pessoas vão sair das sombras e falar o que aconteceu com o filho, o marido, o tio, a filha.

Eu não aceitaria um pedido de perdão do policial e não acho que ele mereça um. Porque seria fácil perdoar se ele tivesse me dado um tapa no rosto, um puxão de cabelo, se fosse um acidente. Mas ele tentou me matar. (As imagens mostram o oficial jogando todo o peso do corpo sobre o pescoço da mulher, ao tirar o pé de apoio do asfalto enquanto a pisoteava. Segundo a defesa da comerciante, nesse momento o policial assumiu risco grave de matá-la.)

Talvez ele tenha agido na emoção ou sob efeito de algo, mas será que depois que melhorou não refletiu sobre o que fez? O que um filho vai falar para ele? Que ele tentou matar uma mulher?

Não dá. Não tenho o que falar sobre essa pessoa. Eu quero justiça. Aconteceu comigo e não quero que aconteça com mais ninguém.

*A comerciante agredida prefere se manter anônima por medo de represálias da polícia

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