PT terá PM negra como candidata em Salvador
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
“Se vocês virem um veículo se aproximar ocupado por cinco ‘negões’, o que fazem?” A pergunta é feita pelo instrutor no curso de formação de oficiais na Academia de Polícia Militar e respondida imediatamente. Os alunos citam as mais diferentes técnicas de abordagem e descrevem formas de imobilização dos “suspeitos”. Uma aluna se inquieta: “Professor, por que cinco ‘negões’? E se fossem cinco ‘brancões’?” O instrutor, um oficial da Polícia Militar da Bahia, responde: “Aluna, branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão!”
A cena foi vivenciada por Denice Santiago e descrita em sua dissertação de mestrado sobre a discriminação racial nas atividades da PM. Mulher, negra, policial militar e de família pobre, Major Denice Santiago, com 49 anos, passou 30 anos na corporação. Agora, tenta mostrar que existe resistência entre policiais a esse discurso e busca driblar a rejeição de parte do PT à sua pré-candidatura à Prefeitura de Salvador.
O PT decidiu disputar com o bolsonarismo a bandeira da segurança pública e aposta na militar para tentar vencer pela primeira vez na capital baiana. Com atuação no combate à violência contra a mulher, Major Denice é vista pela direção nacional petista como uma renovação e uma das pré-candidaturas com maior potencial eleitoral. O partido desidratou-se nas eleições de 2016, ao perder 60,2% do número de municípios que comandava no país e vencer em apenas uma capital, Rio Branco.
O desafio em Salvador, no entanto, não será fácil: o principal concorrente é o vice-prefeito Bruno Reis (DEM), ex-secretário de Infraestrutura e Obras, líder nas pesquisas de intenção de voto e apadrinhado do prefeito ACM Neto (DEM).
A escolha de uma policial militar foi articulada pelo governador Rui Costa (PT), e é alvo de críticas no PT baiano. O governador tentou, inicialmente, a candidatura do presidente do Esporte Clube Bahia, Guilherme Bellitani, mas o dirigente desistiu. Rui Costa insistiu em ter um nome novo na política e atendeu ao movimento negro, que lançou em 2019 a campanha “Eu quero ela”, em defesa de candidaturas de mulheres negras para disputar a capital. Salvador tem a maior população de pretos e pardos do país (79,2% do total, segundo o IBGE), mas nunca elegeu uma negra – ou um negro – para a prefeitura.
Ao mesmo tempo, o governador buscou uma candidatura que pudesse amenizar os ataques à área de segurança, uma das mais problemáticas da gestão, marcada por denúncias de ações violentas da polícia sobretudo contra negros e pobres. Major Denice é idealizadora e ex-comandante da Ronda Maria da Penha, patrulha da PM para combater a violência doméstica contra mulheres, com boa imagem na população.
O presidente do PT de Salvador, Ademário Costa, diz que “a esquerda precisa disputar a polícia” nas urnas. “A esquerda erra ao não ver os agentes de segurança como trabalhadores”, afirma. Para o petista, a esquerda erra também ao achar que todos os policiais são apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. “A elite da polícia, que é bolsonarista, tem gênero, raça e classe social específicos: homem, branco, de classe média alta. A base da polícia é de negros, das classes C e D, da periferia, que também foram vítimas da repressão policial”, diz. “Precisamos buscar contrapontos para fazer o diálogo com a PM.”
A major reconhece que há excessos cometidos por colegas da corporação até mesmo na abordagem a suspeitos. Em seu mestrado, ao questionar PMs sobre como identificar quem é suspeito, registra descrições como: “[alguém que] geralmente [está] usando bermuda e camisa, boné escondendo ao máximo o rosto, um andar marrento, e em sua grande maioria negros e jovens.” Ao perguntar sobre quem seria abordado primeiro, se houvesse um homem branco e um negro, a maioria dos entrevistados pela major (51%) indicou que seria o negro; 49% afirmaram ser “indiferentes” à cor e nenhum indicou o branco como prioritário. Na dissertação, Denice propôs a criação de uma coordenação de direitos humanos na PM, para acompanhar os policiais e tentar mudar práticas discriminatórias.
A pré-candidata pondera que assim como existem maus policiais, há bons exemplos e cita a ação da Ronda Maria da Penha que, segundo ela, “já salvou mais de 6 mil mulheres”.
Denice é graduada em psicologia e em segurança pública, pós-graduada em gestão de direitos humanos e mestre em desenvolvimento e gestão social. Apesar de segurança não ser uma atribuição dos prefeitos, a pré-candidata afirma que o tema é uma “pauta prioritária” e que é necessário “tirar o foco da segurança e pensar na prevenção e enfrentamento da violência”, com ações voltadas aos mais pobres.
A campanha deve ser coordenada por outra negra, Fabya Reis, secretária estadual de Promoção de Igualdade Racial, que retirou a pré-candidatura no PT. Major Denice diz que sua eventual eleição será simbólica para uma cidade que “jamais elegeu uma pessoa negra” e vai abalar “os pilares” da cultura do “patriarcado e do racismo”. “Vai inspirar os mais de 80% de negros da cidade”, afirma.
A escolha da major gerou uma rebelião no PT e entre aliados, por ser um nome militar e sem vínculos com a sigla. Petistas afirmam que o partido tinha outras quatro pré-candidaturas – duas de mulheres negras-, e poderia apoiar a pré-candidatura da deputada Olívia Santana, liderança do movimento negro.
Sob pressão, o PT fez prévia em abril, mas não abriu a votação aos filiados e apenas 45 delegados votaram. Filiada um mês antes da escolha, Denice ganhou com 71% dos votos. O lançamento da militar é visto como exaltação à política de segurança estadual, que é contestada e poderá gerar desgastes ao partido na eleição.
O governador, no entanto, evita falar sobre a escolha para não criar mal-estar entre outras pré-candidaturas de sua base. Procurado pelo Valor, não quis comentar nem sobre Denice nem sobre segurança.
A Bahia é o terceiro Estado com maior número de mortos por policiais. Foram 716 mortes em 2019, segundo o Monitor da Violência. Em 2018, o número foi ainda maior: 749 óbitos. No país, a letalidade policial só é maior no Rio e em São Paulo.
Um dos problemas da gestão Rui Costa na segurança deu-se no começo do primeiro mandato do petista, em 2015, com a chacina do Cabula – mesmo bairro onde Major Denice mora. Policiais militares executaram 12 jovens negros e a ação foi elogiada pelo governador, que comparou os PMs a artilheiros em frente ao gol. O governo alegou que os jovens planejavam um assalto a banco e foram mortos em confronto com PMs, mas o Ministério Público concluiu que foi uma execução por vingança e não houve confronto. Os policiais envolvidos na chacina continuam trabalhando normalmente. Em seu mestrado, ao falar sobre o “confronto”, Major Denice cita que “diversas organizações sociais” indicaram “um extermínio da população (negra e jovem), não somente uma operação policial militar” nesse caso.
Na Bahia, a taxa de homicídios de jovens negros é quatro vezes a de jovens brancos, segundo estudo da Rede de Observatórios de Segurança.
Para o professor da UFBA Joviniano Neto, especialista em Segurança Pública, há duas culturas em conflito na PM: a do autoritarismo, que gera um alto grau de letalidade, e do “pacto pela vida”, voltada para a prevenção da violência. “Em todo o país, é difícil controlar a polícia. O autoritarismo e a prática militarizada vêm desde a ditadura e não são adequados. Mas, muitas vezes, são apoiados pelo senso comum”, diz.
A tentativa de aproximação do PT da Bahia com a PM não é recente. Em 2001, o partido apoiou a greve de policiais contra o governo César Borges (PFL). Na época, os então deputados petistas Jaques Wagner, Walter Pinheiro e Nelson Pellegrino foram chamados pelo governo federal, de Fernando Henrique Cardoso, para ajudarem a construir uma saída para o impasse. A aproximação, no entanto, foi mais pela oposição ao governo e pela reivindicação de melhores condições de trabalho aos PMs do que por ideologia.
Um dos líderes do motim, pastor Sargento Isidório foi eleito pelo PT na eleição seguinte, em 2002, como deputado estadual. Integrante das bancadas da “bala” e da “Bíblia”, Isidório passou pelo PSB e PDT, mas também pelo conservador PSC, e tornou-se um dos políticos mais populares do Estado. Conhecido como “ex-gay” e “doido”, em 2018 foi eleito deputado federal pelo Avante com a melhor votação da Bahia e atualmente aparece em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto para a Prefeitura de Salvador. “Não sou de esquerda nem de direita. Sou representante de uma classe popular, negro, da periferia”, diz.
O pastor e militar afirma que “lamentavelmente teve que deixar o PT” e faz uma série de elogios ao governador Rui Costa. “Ele é meu amigo. Um exemplo de homem sério, íntegro e que serve de modelo aos petistas”, afirma. Apesar da boa pontuação nas pesquisas e de dizer que “sonha em ser prefeito”, o parlamentar não descarta retirar a pré-candidatura e apoiar o PT. “Não tenho a vaidade de ser prefeito. Deus já me deu mais do que eu mereço”, diz. “Mas não vou desistir porque estou isolado. Tem que ter um critério”, afirma. “Se outro pontuar melhor, qual o problema de apoiá-lo?”
Apesar dos acenos à base militar, a relação do PT com policiais enfrentou desgastes ao longo das quatro gestões consecutivas do partido na Bahia, com greves de PMs. Uma das mais longas foi em 2012, no governo Jaques Wagner, com cerca de uma centena de homicídios registrados durante o motim.
Um dos críticos da ligação política do PT com a polícia é o ex-ministro Juca Ferreira, que comandou a Cultura nas gestões Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Ferreira diz que a escolha é uma exaltação à PM, apesar de o programa do PT defender a desmilitarização da polícia. “Não vejo com simpatia essa politização da polícia. A PM tem o monopólio das armas, é uma instituição para manter a ordem. Quando se mistura com a política, enfraquece a instituição”, diz Ferreira, que postulou a vaga de pré-candidato pelo PT. O ex-ministro diz “não ser otimista” sobre a chance de vitória da major. “Quando uma candidatura responde mais a um conceito de marketing do que a um projeto político, fica difícil convencer a população a mudar”, avalia.