Médico que fez aborto legal em criança diz que foi o certo

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Foto: Lucas Pacífico/CB/D.A Press

O caso de uma menina de apenas 10 anos do Espírito Santo que precisou ser levada a Recife para poder interromper uma gravidez fruto de estupro praticado pelo próprio tio provocou grande repercussão nacional. A polêmica foi iniciada por grupos religiosos no domingo (16/8), que protestaram quando a criança deu entrada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, para fazer o aborto, amparada no que rege a legislação brasileira.

O tio da criança, de 33 anos, é suspeito de abusar da menina desde que ela tinha seis anos. Ele foi indiciado pela Polícia Civil pelos crimes de ameaça e estupro de vulnerável. Enquanto ele permanece foragido, o aborto da menina, confirmado nesta segunda-feira (17/8), virou alvo de manifestações em todo o país, ganhando tom ideológico. Religiosos se manifestaram contra a interrupção da gravidez. A criança segue em observação. Expectativa é que ela volte para casa no máximo até quarta-feira (19/8), segundo informações do hospital.

Durante o domingo, no dia em que a menina chegou ao hospital para passar pelo procedimento médico de interrupção da gestação, grupos se manifestaram na entrada do local e tentaram impedir a entrada do médico responsável pelo procedimento na unidade de saúde, dirigindo a ele gritos de “assassino”. Ontem, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou um artigo no qual um bispo de Rio Grande (RS) condena o ato. “A violência do estupro e do abuso sexual é infame e horrenda, mas a violência do aborto provocado em um ser inocente e sem defesa é tão terrível quanto. Ambos são crimes”, escreveu o bispo.

O alvo é o obstetra Olímpio Moraes Filho, diretor médico do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), de Recife, que aceitou receber a vítima para realizar o procedimento autorizado em juízo. O médico foi “excomungado duplamente” pela Igreja Católica, uma delas por fazer o mesmo procedimento, mas em uma menina de 9 anos de Alagoinha (PE), também estuprada e grávida de gêmeos.

“Antes, eu tinha de lidar apenas com o arcebispo. Agora, também, tenho de lidar com os políticos; a bancada religiosa praticamente não existia e, agora, fazem uma pressão mais sentida. A realidade só tem piorado”, diz Olímpio, em entrevista ao Correio. Questionado sobre a possibilidade de mais uma excomunhão, numa espécie de trindade às avessas, o obstetra dá de ombros, como quem pega emprestado dose extra de paciência: “minha preocupação é apenas a de fazer o certo”.

O médico ressaltou que o pesadelo vivido pela menina do Espírito Santo não é incomum: “O que chama a atenção é que nos dois casos (no de agora e no de Alagoinha), a imprensa teve acesso ao caso e se fez polêmica. A realidade do dia a dia não tem essa atenção”.

Olímpio está certo. Em 2018, 21.172 bebês nasceram de mães entre 10 e 14 anos. Os dados são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), gerido pela Secretaria de Vigilância em Saúde em conjunto com as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Na última década de publicação, de 2009 a 2018, foram registrados os partos de 26.126 mães com idades entre 10 e 14 anos, em média, por ano. Entre as mães com 15 a 19 anos, a média anual saltou para 509.576.

Parte dessas crianças e adolescentes se torna mãe por ter sido vítima de estupro. A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. De acordo com dados tabulados pela BBC News Brasil no Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, o Brasil registra, em média, seis internações por abortos diárias em meninas de 10 a 14 anos. Apenas em 2020 já foram registradas 642 internações do tipo.

Diante da polêmica, o vice-presidente Hamilton Mourão se manifestou. “O nosso Código Penal é claro, em casos como esse o aborto é mais que necessário, é recomendado. Como é que uma menina de 10 anos de idade vai ter um filho e vai criar um filho?”, disse à BBC News Brasil.

A psicóloga clínica Irce de Carvalho diz que, além de mudanças no corpo, uma gestação traz alterações psicológicas. No caso da menina do Espírito Santo, há o agravante de ela estar sofrendo complicações sociais e familiares devido aos quatro anos do abuso. E, agora, teve outra marca: o aborto. “Se um adulto, que já tem consciência para lidar com isso, desenvolve algumas dificuldades psicológicas, uma criança precisará fazer um longo acompanhamento psicológico, um longo processo de formação, para que consiga recomeçar a vida.”

Apesar de, “teoricamente”, o corpo feminino estar pronto para uma gestação a partir de quando ela começa a menstruar, “esta menina, ao engravidar, pode sofrer sérias condições durante o período gestacional”. É o que alerta a ginecologista Silandia Freitas, do Hospital Universitário de Brasília. Entre os perigos, há o maior risco de doenças hipertensivas gestacionais, maior risco de diabetes gestacional, parto prematuro, entre outros.

A militante bolsonarista Sara Giromini, a Sara Winter, usou as redes sociais para divulgar o primeiro nome da menina de 10 anos estuprada pelo próprio tio. Apesar de a publicação ter sido apagada, juristas afirmam que ela pode ter ferido ao menos quatro artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código Penal. As informações da vítima estavam protegidas por sigilo de Justiça.

A divulgação de dados da vítima de estupro aconteceu no domingo, pela conta de Sara no Twitter. Na ocasião, a extremista publicou a identidade da criança e o endereço do hospital que faria o procedimento para interromper a gravidez, previsto em lei. Ela também chamou o médico responsável pela unidade, Olímpio Moraes Filho, de “aborteiro”.

Sara não foi a única a divulgar informações sobre a criança. A Justiça do Espírito Santo atendeu pedido da Defensoria Pública do Estado e deferiu liminar no domingo, determinando que o Google, o Facebook e o Twitter retirassem, num período de até 24 horas, “informações divulgadas em suas plataformas sobre a menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada em São Mateus”. O juízo estabeleceu multa diária de R$ 50 mil em caso de descumprimento.

Para o advogado Rogério Fontele, “no momento, a intimidade e honra da criança que sofreu o crime são mais importantes que o direito de expressão. Por isso, não há violação ao direito de expressão, quando é proibido divulgar qualquer informação sobre o caso”, explica.

Sara pode responder nas esferas criminal e cível por causa da exposição da menina. Para a advogada Cecilia Mello, ex-juíza federal e especialista em direito penal e administrativo, só do ECA ela poderia ser enquadrada em mais de um delito.

“O artigo 17 estabelece o direito ao respeito, que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da identidade”, salienta a jurista.

A outra infração cometida seria ao § 1º do artigo 247, segundo a especialista. A legislação proíbe exibir, total ou parcialmente, qualquer ilustração de criança ou adolescente, que se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir a identificação do jovem. A pena prevista é de multa de três a vinte salários — ou o dobro, em caso de reincidência.

Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o advogado criminal Fernando Castelo Branco afirma que, em tese, Sara também poderia responder por constrangimento ilegal e incitação de crime. Os delitos são previstos nos artigos 146 e 286, respectivamente, do Código Penal.

“O constrangimento teria sido gerado para os médicos, querendo proibi-los ou ameaçando-os a não fazer algo que a própria lei permite”, explica o advogado. Neste caso, a pena prevista é de três meses a um ano de prisão. Já a incitação, com pena de três a seis meses ou multa, seria por divulgar o nome do hospital e incentivar a ida ao local para impedir que o procedimento fosse realizado.

Chefe do movimento “300 do Brasil”, Sara Winter já responde a inquérito sobre atos antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal (STF), motivo pelo qual chegou a passar nove dias presa neste ano. (FS* e MN)

De acordo com o médico Olímpio Moraes Filho, o procedimento de interrupção da gestação, pelo qual ele foi responsável, teve início no domingo. “Ontem (domingo) mesmo foi procedido o óbito fetal, então não tem mais vida, o feto. E hoje (ontem) vamos proceder com o esvaziamento, que é para causar contrações para expulsão do feto. E esperamos, a partir de amanhã (hoje), em algum momento, que ela tenha condições de alta”, afirmou. Questionado sobre o estado de saúde da menina, o médico disse que ela está bem. “Ela está bem, com apoio psicológico, assistência social e a avó. Está tendo algumas contrações, cólicas, mas está bem”, afirmou. De acordo com a equipe responsável, a instituição optou pelo tipo de procedimento menos invasivo possível.

Correio Braziliense