Policiais antifascistas denunciam perseguições após dossiê
Foto: Júlia Barbon / Folhapress
Ao analisarem um dossiê do Ministério da Justiça sobre profissionais da segurança pública antifascistas, em julgamento nesta semana, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram a prática ilegal e alertaram para o risco de perseguições políticas no serviço público. Contudo, policiais envolvidos no movimento antifascista e citados no relatório de inteligência do Ministério da Justiça afirmam que já sofrem retaliações nas suas corporações.
O GLOBO recolheu relatos de episódios na Polícia Rodoviária Federal (PRF) e em Polícias Civis e Militares do país. Os agentes são alvos de investigação policial, demissão de cargo de confiança, sindicâncias administrativas, exclusão em seleção para instrutores de cursos de formação ou transferência para a reserva. Os integrantes do grupo chamado “policiais antifascismo” atribuem esses fatos à participação no movimento, monitorado pelo governo federal.
O dossiê sobre os antifascistas lista mais de 500 policiais e atribui a eles um risco de violência, inclusive com a possibilidade de atuação de “black blocs” em eventuais protestos contra Bolsonaro — apesar de não haver qualquer relato nesse sentido.
Nos estados, a atuação dos policiais antifascistas também é alvo de vigilância e de ações de investigação e exclusão de promoções na carreira. Para esses policiais — a maioria fala na condição de anonimato por temer mais represálias —, trata-se de perseguição e retaliação. Eles relatam pressão dos próprios colegas de farda, mais alinhados ao bolsonarismo. De acordo com um estudo recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 41% dos PMs de baixa patente no país são bolsonaristas, e 12% endossam pautas mais radicais, como o fechamento do Congresso e do STF.
Na Polícia Rodoviária Federal, uma policial foi exonerada de um cargo de confiança na Superintendência da Bahia — chefe do setor de análise técnica, o equivalente a uma assessoria jurídica — menos de um mês depois de assinar o manifesto mais robusto até agora dos policiais antifascismo.
O texto, elaborado por sindicalistas da área de segurança pública, tornou-se público em 5 de junho, e leva mais de 500 assinaturas de policiais rodoviários, federais, civis, militares, bombeiros, peritos, papiloscopistas e agentes penitenciários. Em 2 de julho, a policial foi exonerada da função de confiança, exercida há mais de um ano e meio. “A nomeação e exoneração são atos discricionários do superintendente regional”, diz a PRF, por meio da assessoria de imprensa.
Uma quantidade expressiva de policiais rodoviários, 42, assina o manifesto. Duas semanas depois da divulgação, a PRF encerrou um processo de seleção de instrutores para seus cursos de formação, uma atividade que remunera bem os policiais, com o equivalente a um salário extra. Pelo menos quatro policiais que assinaram o manifesto e já tinham sido instrutores em anos anteriores não foram chamados — os agentes veem motivação política na decisão. Também há relatos de retenção de indicação de nomes de policiais antifascistas para comissões regionais da PRF, como a de valorização da mulher.
Segundo a instituição, a seleção de instrutores “se deu de forma isonômica a todos que compõem o quadro de docentes da instituição”. “Houve ressalvas apenas em casos de processo disciplinar, grupo de risco para Covid e de não possuírem carga horária suficiente e capacidade técnica para a disciplina”, afirma a PRF, que também nega “retardo” na composição de comissões.
No Paraná, um líder local dos policiais antifascismo foi aposentado pela PM, antes dos 30 anos de idade, após publicar textos críticos a Bolsonaro. Martel Alexandre Del Colle diz que começou a ser transferido entre unidades a partir do momento em que ficou mais ativo nas redes sociais, criticando programas institucionais das PMs, como os voltados ao combate às drogas.
No ano passado, após uma internação por depressão, foi aposentado por invalidez, passando a receber um terço do salário. Ele responde a processos administrativos disciplinares, um deles por ter “demorado” a aceitar uma transferência, segundo o policial. A mudança era retaliativa, diz.
A PM diz que a aposentadoria precoce foi definida a partir de uma perícia médica. “A PM do Paraná, com efetivo superior a 20 mil homens, cumpre o comando constitucional de liberdade de manifestação e pensamento, só submetendo ao devido processo legal os militares que, em tese, cometerem crime militar ou transgressão disciplinar”, diz, por meio da assessoria de imprensa.
— Respondo a dois processos, um deles com desdobramento na esfera criminal. Os processos buscam me excluir em definitivo da PM, o que me impediria, por exemplo, de fazer concurso para a Polícia Civil — afirma Del Colle.
Em 28 de abril, um inquérito foi instaurado na Polícia Civil do Rio Grande do Norte para investigar a atuação de 23 policiais antifascistas, a partir de um relatório anterior do Ministério Público (MP) estadual. A portaria que instaurou o inquérito cita ainda que a direção da Polícia Civil encaminhou o documento do MP à Corregedoria da Secretaria de Segurança Pública, onde um processo foi aberto.
O relatório do MP local reproduz nomes, fotos, endereços e postagens dos policiais em redes sociais com críticas a pessoas contrárias ao isolamento social durante a pandemia de Covid-19. Para o MP, ao usar expressões como “brigada antifascista”, disposta a “mandar um recado” a manifestantes integrantes de uma carreata anti-isolamento, o movimento pode ter se constituído em uma atividade paramilitar. Os policiais, então, passaram a ser investigados não somente pelo MP, mas também pelo sistema de polícia que integram. A reportagem questionou a Polícia Civil do estado sobre o inquérito, mas não houve resposta.
O policial civil Leonel Radde, que atua na Polícia Civil no Rio Grande do Sul, é um dos poucos que falam abertamente sobre as sindicâncias a que responde, atribuídas por ele a sua participação no movimento. Radde está licenciado do cargo de agente do Departamento de Homicídios em Porto Alegre; ele é pré-candidato a vereador pelo PT e já foi candidato em 2018 a deputado estadual. Segundo ele, as sindicâncias o acusam de usar a instituição para “estimular a violência”. Procurada, a Polícia Civil do RS não respondeu.
— Eu já fui chamado pela direção do departamento para me dizerem que minha atuação no movimento impediu duas promoções. E também já ouvi de gente da área de inteligência que eu era monitorado, que se houvesse algum deslize iriam me “derrubar” — afirmou o policial.
Um artigo do Código Penal Militar, uma lei de 1969, vem sendo usado para embasar processos de investigação sobre a atuação de policiais antifascistas. O artigo é o 166, que trata de “publicação ou crítica indevida”. Ele veda críticas aos superiores ou a “assunto atinente à disciplina militar”, sob pena de dois meses a um ano de prisão.
O código foi decretado a partir de atribuições definidas no AI-5, de 1968, o ato institucional que deu início à fase mais sombria da ditadura, com fechamento do Congresso, censura, tortura e assassinatos de opositores políticos.
Entre as Polícias Militares (PMs), há regulamentos disciplinares que exigem autorização prévia para manifestações de policiais. Na Polícia Rodoviária Federal (PRF), não existem normas internas que proíbam manifestações políticas por parte dos servidores, segundo informou o órgão ao GLOBO, por meio da assessoria de imprensa.
“É livre a manifestação do pensamento, e posicionamentos pessoais não refletem, necessariamente, o posicionamento institucional”, disse a instituição.
Para Robson Rodrigues da Silva, coronel da reserva da PM no Rio, ex-chefe do Estado-Maior da corporação, antropólogo e pesquisador no Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio (Uerj), o artigo do Código Penal Militar é “notoriamente” inconstitucional:
— Este código surgiu na ditadura, antes da Constituição de 1988. O artigo 5º da Constituição prevê a liberdade de expressão. Quem fala, arca com o que fala. É uma liberdade com responsabilidade.
Silva diz que um grupo de policiais não pode ser investigado apenas por se manifestar como antifascista:
— Conceitualmente falando, o fascismo é proibido pela própria Constituição. Se não houver cometimento de crime, apologia criminosa, o movimento está dentro desse conceito de liberdade de expressão com responsabilidade.
O coronel da reserva afirma que, quando um policial manifesta suas preferências por partidos e políticos, acaba sendo antiprofissional, especialmente se leva essa preferência para sua atuação nas ruas. Isso já aconteceu, diz Silva, em manifestações contra o presidente Jair Bolsonaro, quando PMs usaram de força excessiva para reprimir manifestantes.
O raciocínio também pode se aplicar aos antifascistas, caso exista “uso político” do movimento, na visão do coronel. Apenas a defesa da causa e o nome — antifascismo — não podem representar o que o pesquisador chama de “intoxicação ideológica”. Para ele, isso ocorreria entre alguns policiais bolsonaristas que levam suas posições para a atuação nas ruas.
— Um tendencionismo na atuação do policial é um sinal de que ele não entendeu seu papel constitucional e republicano — afirma o coronel da reserva.