Sem regras, cotas eleitorais para negros podem gerar fraudes
Foto: André Rodrigues
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) decidiu, na semana passada, que partidos políticos devem dividir os recursos que recebem do Fundo Eleitoral de forma proporcional para candidatos negros e brancos. A determinação passa a valer a partir de 2022 e obriga a legenda que tiver, por exemplo, 30% de candidaturas negras, a destinar o mesmo percentual da verba recebida para este grupo. A mesma regra deve ser aplicada na distribuição do tempo de rádio e tevê da propaganda eleitoral.
No entanto, o julgamento terminou sem que fossem estabelecidas regras claras para esta cota, o que levantou temor de que se possa abrir espaço para fraudes. Um dos possíveis problemas foi, inclusive, cogitado pelo ministro Alexandre de Moraes, que afirmou que a divisão proporcional poderia gerar um efeito inverso do que se objetivava –– como um partido reduzir a quantidade de candidatos negros, ou mesmo, em uma medida mais drástica, não lançar candidatos negros para não precisar fazer a divisão proporcional.
Moraes chegou a propor uma regra de transição, obrigando a legenda a destinar, neste ano, a quantidade de recurso proporcional à quantidade de candidatos negros nas eleições de 2016. Como a medida da divisão proporcional passa a valer só a partir de 2022, a regra ficou de fora. “Preocupa-me, porém, que uma importante decisão integrativa do Tribunal Superior Eleitoral, visando contribuir para o exercício efetivo e pleno da cidadania pelos negros, e reduzir suas desigualdades de representação política em relação aos brancos, possa gerar efeitos extremamente negativos, inclusive ampliando a histórica discriminação”, avaliou o ministro.
Ele citou um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV) Direito de São Paulo relativo à eleição para Câmara dos Deputados, que mostrou que mulheres brancas candidatas receberam percentual de recursos partidários proporcional à quantidade de candidaturas em 2018. Já as mulheres negras, embora representassem 12,9% das candidaturas, receberam apenas 6,7% das verbas. No caso de homens negros, obtiveram 16,6% dos recursos partidários, ainda que as candidaturas significassem 26% do total.
Segundo este estudo, somente os homens brancos receberam mais dinheiro –– eram 43,1% dos candidatos e conseguiram 58,5% dos recursos. “Em outras palavras, houve uma reação do sistema político-eleitoral na proteção dos ‘candidatos e candidatas brancos’, principalmente em relação aos ‘homens brancos’. Se o ‘bolo’ ficou menor para os ‘candidatos homens’, a ‘fatia’ destinada aos ‘candidatos homens brancos’ foi ampliada para compensar eventuais perdas de recursos eleitorais. De outro lado, passou a existir um ‘bolo’ obrigatório para as ‘candidatas mulheres’ (30%), a distribuição privilegiou as ‘candidatas mulheres brancas’”, disse Moraes.
O ministro Og Fernandes, por sua vez, afirmou que a medida proposta pelo colega poderia aumentar a desigualdade entre as legendas. Como exemplo, ele citou o fato de o Partido Novo ter tido apenas 10% de candidatos pretos ou pardos nas eleições de 2016, enquanto o PCB teve 67%. Conforme Fernandes, impor o percentual com base nas eleições passadas seria impor uma “cota mínima, distinta e desproporcional a cada agremiação”, o que poderia gerar “um desequilíbrio na disputa eleitoral”. Para o ministro, outras questões precisam de resposta, como a eventual doação dos recursos recebidos entre negros e brancos ou as consequências da inobservância do percentual pelos partidos políticos. Ele acredita que tais lacunas seriam preenchidas por meio de resolução do TSE.
Para a professora de direito constitucional da FGV Luciana Ramos, que ajudou a elaborar o estudo da fundação, a decisão do TSE é, sem dúvida, um avanço. No entanto, o não atendimento da solicitação de cota mínima de candidaturas, pelo entendimento de que esta definição cabe ao Congresso, pode ser um limitador dos efeitos da decisão tomada pelo tribunal. Isso se dá exatamente pelo que foi exposto por Moraes: partidos que não querem viabilizar candidaturas negras podem simplesmente não colocar candidatos negros para não ter a obrigatoriedade de destinar dinheiro a eles.
“Sob este estrito ponto de vista, ou seja, a decisão, vista isoladamente, terá limitações na sua concretização. Ela precisa de outros mecanismos institucionais, como uma legislação de cotas, ou então outros incentivos, como a própria sugestão do ministro Alexandre de Moraes”, diz Luciana. E completa: “Mas foi muito importante, a despeito de suas limitações”.
Em 2018, os partidos passaram a ter que destinar 30% dos fundos Eleitoral e Partidário a candidatas. Luciana salienta que, durante a elaboração do estudo da FGV, foi possível observar que, apesar da importância desta política de destinação de recurso para as mulheres, as que mais receberam foram as candidatas brancas. Comparando a corrida para uma vaga de deputado federal de 2018 com a de 2014, o cenário mudou: se, antes da regra, seis anos atrás, os candidatos que mais receberam recursos foram homens brancos, homens negros, mulheres brancas e, por último, mulheres negras, depois da regra, há dois anos, as mulheres brancas ultrapassaram os homens negros.
“Precisamos fazer ajustes pensando num política interseccional, com outros marcadores de diferenças, como raça, classe social, que tragam outras perspectivas ao Legislativo. A decisão (em relação aos recursos a mulheres) foi importante, mas que mulheres são essas? Poucas são negras. De 77 na Câmara, só 13 são negras”, disse.
A advogada Samara Ohanne, especialista em direito eleitoral, defende que o Parlamento se aprofunde no tema e o regulamente. “O Congresso tem mais autonomia e competência para definir as regras de cotas para negros, e o TSE preencheria apenas as lacunas. A decisão de destinar verbas do Fundo Eleitoral e tempo de rádio e tevê sem um percentual mínimo de candidatos negros poderia diminuir ainda mais a participação dos negros, visto que os partidos, para não conceder recursos e tempo de propaganda, simplesmente não dariam vaga a essas candidaturas”, destaca.
O TSE fala em regulamentação, mas já existe um movimento dentro do Congresso para definir as regras por meio de um projeto de lei. Os parlamentares querem se adiantar e decidir antes do Tribunal para moldarem o cenário político. As alegações são de que essa competência é exclusiva do Poder Legislativo e a Corte eleitoral usurpou suas atribuições ao firmar cotas no fundo eleitoral e no tempo de propaganda nos veículos de comunicação.
Cientista política e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernanda Barros remete a decisão do TSE à efervescência dos protestos antirracistas que, segundo ela, criam um “humor” favorável à agenda da população negra. “É um progresso grande para os negros, para o movimento negro, no sentido de representatividade no pleito eleitoral”, afirma.
A decisão do Tribunal Superior Eleitoral deu-se no âmbito de uma consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ). Dos quatro pontos solicitados, a parlamentar pedia reserva de vagas a candidatos negros, com destinação de, no mínimo, 30% do Fundo Eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral em rádio e tevê a candidaturas de negros. No pedido de reserva de vaga, ministros entenderam que decisão cabe ao Congresso. Em vez de estabelecer um percentual mínimo do fundo, o colegiado decidiu pela divisão proporcional.
No julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre divisão de verbas com candidatos negros, o ministro Og Fernandes chamou a atenção para o fato de que, no processo de registro de candidatura, a cor deve ser definida por autodeclaração. Em concursos públicos e universidades, as vagas destinadas para o público negro são preenchidas por este critério, no entanto, as acusações de fraude colocam em debate a eficácia desta política afirmativa.
Professora de direito constitucional da Fundação Getulio Vargas, Luciana Ramos afirma que o único mecanismo adequado é a autodeclaração, e que, se fraudes forem encontradas, o importante é combatê-las. “Não é por isso que a medida (de cotas, ou divisão igualitária de recursos) vai deixar de existir”, afirma. Luciana explica que o próprio sistema deve se fiscalizar, com opositores que ficarão observando os outros candidatos e denunciarão no caso de fraude.
Para ela, o grande problema é a falta de “braço” do TSE para fazer a fiscalização necessária. Assim, o que ajuda para que esse processo não seja mais distorcido, segundo Luciana, são os grupos organizados, como o movimento negro, que devem atuar denunciando desvios –– tanto fraude na autodeclaração quanto nas legendas que não lancem candidatos negros.
Já a deputada Silvia Cristina (PDT-RO) sugere regras para evitar ilegalidades. “É necessário ter uma regulamentação. É possível até que candidatos brancos se declarem negros para obter parte da verba. Em 56 anos de pleito, eu sou a segunda do estado de Rondônia a alcançar o cargo. Então, quanto tempo demora para que uma mulher, especialmente negra, cheguar a esse posto? E olha que nós, negros, somos maioria da população”, ressalta.
Silvia destaca os entraves que teve para alcançar a vida política sendo negra e mulher. “Nós, mulheres, já temos dificuldades a mais, e a cor, a raça, infelizmente, mesmo no século XXI, ainda é alvo de preconceito. Sou uma das poucas negras do Norte que conseguiram um cargo tão importante, a nível federal, nas eleições. Essa decisão do TSE foi um olhar de valorização. Eu realmente comemorei muito”, exulta. (RS e ST)