Economia do Rio sofrerá sem Reveillon e Carnaval

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Foto: FABIO MOTTA

A covid-19 acertou em cheio o coração do Rio de Janeiro. Referência da cultura nacional e principal destino de estrangeiros que vem ao país em busca de lazer no país, a cidade tem nas atividades criativas e no turismo grande parte de sua base econômica. Os dois setores, no entanto, estão entre os mais atingidos pela pandemia. Após cinco décadas, o Rio não terá a queima de fogos na praia de Copacabana no Réveillon. O Carnaval também não vai ocorrer pela primeira vez desde o início do século XX. A festa chegou a ser adiada em 1912 por causa da morte do Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira. No entanto, os foliões driblaram a proibição criaram outros carnavais naquele ano.

Junto com a vida de mais de 16.000 pessoas, o vírus levou embora a principal marca cultural da cidade, o encanto das ruas. Os encontros nas esquinas, praças, botequins e mesas na calçada, quase sempre embalados pela música, não existem mais como eram antes da pandemia. Sobrou a praia, que o carioca teima em frequentar desrespeitando as regras de prevenção ao contágio da covid-19.

A bateria das escolas de samba, as rodas de samba e as caixas de som dos bailes funk estão silenciadas. Não há turistas estrangeiros, bares e restaurantes lutam para sobreviver ou fecharam as portas e os hotéis estão com baixa ocupação. O desemprego, que já era alto antes da pandemia ― índice de 13% no primeiro trimestre ― explodiu nestes setores. Antes da covid-19 chegar, eram 107.000 trabalhadores da cultura, 100.000 do setor hoteleiro e 110.000 de bares e restaurantes, cerca de 10% do total de empregados no município. O segmento cultural só não parou totalmente devido ao fenômeno das lives na internet, nem sempre remuneradas. Os hotéis já perderam 20.000 postos de trabalho e os bares e restaurantes, cerca de 9.000.

“O impacto é catastrófico porque o retorno é mais complicado para os dois setores e para os que dependem deles. O aeroporto do Galeão tem apenas um voo diário internacional”, diz o economista Luiz Gustavo Barbosa, da Fundação Getulio Vargas. Na cultura, 90% das atividades dependem da presença física e da reunião de pessoas, afirma ele. “É um setor que está respirando por aparelhos”.

Nas escolas de samba, a alegria deu lugar à apreensão. Com barracões vazios e quadras de ensaio fechadas, a sobrevivência nos próximos meses é a principal preocupação. No atual período do ano, as quadras estariam escolhendo seus sambas-enredo ou promovendo ensaios e os barracões estariam no auge da preparação para os desfiles. Na Cidade do Samba, que abriga os barracões das escolas do Grupo Especial, circulam apenas bombeiros, seguranças e garis.

A Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) diz ser impossível colocar as escolas na avenida em fevereiro sem a vacina contra a covid-19. “Quem vai comprar ingresso para assistir aos desfiles no Sambódromo sem vacina?”, indaga o presidente da Portela, Luis Carlos Magalhães. Os dirigentes das escolas decidirão em setembro se a festa será suspensa ou adiada para outro mês de 2021. “Existe a hipótese de adiar. Só é viável até maio. Depois, seria o início da preparação do Carnaval seguinte, de 2022”, diz Magalhães.

A Portela, por exemplo, perdeu 20% da sua receita sem os eventos na quadra, como as tradicionais feijoadas. A escola se valeu dos programas de redução de jornada do governo federal para manter os funcionários administrativos e os profissionais fixos dos desfiles, como mestre sala, porta-bandeira e mestre da bateria. “Estamos com zero de receita, a não ser a que vem dos sócios contribuintes e torcedores, mas que também sofreu queda”.

Profissionais como os gessistas, aramistas e aderecistas dos barracões estão sem perspectiva. “Está complicado, estou sobrevivendo com encomendas de bolos, doces e salgados e do auxílio emergencial”, conta Lilian Cristina de Jesus, que faz adereços para a escola São Clemente há 10 anos. A renda do trabalho no barracão cobria o orçamento de 5 a 6 meses do ano da artesã desde 2003. Ela conta estar com dificuldade para pagar o aluguel da casa onde mora com o filho adolescente. “Estou pagando cerca de 50% do aluguel, minha dívida está acima de 2.000 reais”, relata.

Paulo Roberto Santos trabalha para diversas escolas fazendo o acabamento de efeitos visuais em fantasias. O artista plástico, que costuma atuar na Beija-Flor, Vila Isabel e Mocidade, tem metade da sua renda anual originada na festa. Ele tinha começado a trabalhar como tatuador neste ano e a pandemia interrompeu a atividade. “Não sei o que vai acontecer pela frente, não sei o que fazer”, diz. Uma campanha de arrecadação de recursos foi lançada recentemente para ajudar financeiramente e com cestas básicas os cerca de 1 mil trabalhadores dos barracões, o Barracão Solidário. Idealizador da iniciativa, o carnavalesco da Estácio de Sá, Wagner Gonçalves, diz que muitos não conseguiram receber o auxílio emergencial.

Os mais de 450 blocos do Carnaval de rua decidiram que não irão desfilar em fevereiro sem vacina. O adiamento para outro mês de 2021 ainda está no horizonte e depende do andamento dos testes das vacinas e da distribuição efetiva para a população. “Existe uma força do setor hoteleiro e dos patrocinadores para que se faça. Não vejo outra hipótese que não seja virtual, talvez eventos gravados com número reduzido de participantes e sem plateia. É mais razoável”, afirma o cantor e compositor Pedro Luís, fundador do Monobloco, grande bloco precursor da retomada do Carnaval de rua carioca a partir dos anos 2000.

O Monobloco tem oficinas de percussão no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte. Conta com um grupo de cerca de 30 músicos profissionais que fazem de 100 a 120 shows no país e no exterior durante o ano inteiro. Entre dezembro e fevereiro, o número de apresentações é maior. Tudo foi suspenso. Sem o desfile de Carnaval, o bloco deve ficar sem o patrocínio habitual. Para driblar a crise, os músicos têm se reinventado. As oficinas do Monobloco passaram a ser online e reuniram os alunos das três cidades. O total de alunos passou de 350 para 200. Boa parte da equipe técnica passou a receber auxílio emergencial. Grande parte dos 30 músicos começaram a dar aulas online individualmente e outros participam de outros projetos artísticos digitais.

Pedro Luís resiste a fazer lives do bloco porque exigiria a reunião de um grupo, o que considera um risco. “A roda tem que continuar a girar, mas com responsabilidade e informação. Por trás disso, temos um governo central que flerta com a morte. Não só tem a política da morte para certa camada da população, mas tira a morte para dançar. Quem se arma e quem atira pode tomar um tiro. É uma bizarrice, uma sedução perversa”, diz. Pedro Luís tem feito lives individuais nas redes sociais para arrecadar recursos para os técnicos que trabalham com ele na carreira solo. “É um exercício de guerra”, afirma.

O bloco Caramuela, que mistura forró e samba, iria produzir seu terceiro Carnaval em 2021 e planejava abrir duas turmas de oficinas. “A pandemia nos deu uma rasteira de dois pés juntos”, diz um dos fundadores da agremiação, o músico Igor Conde. Para sobreviver, as cinco pessoas que produzem o bloco também aderiram às plataformas digitais. Dos 100 alunos presenciais, 60 migraram para as aulas na internet. “Estamos com dificuldades em fechar as contas do mês e perspectivas muito ruins. Nosso mercado vai ser o último a voltar”, diz.

O Carnaval carioca levou 10 milhões de pessoas às ruas em fevereiro deste ano, um recorde. Deste total, 2,1 milhões eram turistas. Somente nos blocos de rua, foram 7 milhões de foliões. A cidade recebeu 4 bilhões de reais em receita e a atividade hoteleira registrou ocupação de 93%. Com a pandemia logo depois, o turismo mergulhou em um cenário “devastador”, segundo o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do Rio de Janeiro (ABIH-RJ), Alfredo Lopes.

Cerca de 90 hotéis suspenderam suas atividades em março e a ocupação atual, de apenas 28%, é composta por profissionais de saúde ou de plataformas de petróleo e de idosos. Em meados de agosto, os eventos corporativos foram liberados pela prefeitura, um pleito do empresariado do setor. “A sustentação da hotelaria do Rio são os eventos. O turismo de lazer não sustenta a ocupação porque é concentrado nos fins de semana e no verão”, diz Lopes. O empresário prevê mais de dois anos para recompor as perdas causadas pela pandemia. “O ano que vem vai ser de retomada lenta, as pessoas ainda vão tomar vacina. Muitos perderam o emprego ou tiveram a remuneração reduzida. Ninguém viaja com o dinheiro do feijão com arroz”, completa o presidente da ABIH-RJ.

Alguns hotéis voltaram a funcionar nas últimas semanas. O luxuoso Copacabana Palace reabriu no dia 20 de agosto depois de quatro meses fechado. Neste período, o hotel tinha apenas um hóspede ilustre, o cantor Jorge Benjor. O hotel mudou o foco de negócios e agora mira o morador da cidade, com pacotes de 30 horas de hospedagem.

No mês passado também foram reabertos alguns pontos turísticos, como o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a roda-gigante da zona portuária e o AquaRio, com a adoção de medidas de prevenção à covid-19. Todos estão voltados para o carioca ou o turista que vem de localidades próximas. Neste primeiro fim de semana, houve filas para visitar o Cristo e o Pão de Açúcar.

Os bares e restaurantes cariocas tentam resistir. Dos 7.000 estabelecimentos que estão abertos, após o fechamento de outros 3.000, 80% operavam no vermelho até o fim de julho, de acordo com a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes do Estado do Rio (Abrasel-RJ). A previsão é de que 30% fechem suas portas até o fim do ano por falta de crédito bancário. Endereços tradicionais da boemia estão à espera dos clientes. O centenário Bar Luiz, patrimônio histórico da cidade, manteve seus 14 funcionários. Localizado no centro, passou a fazer entregas e lançou uma campanha de financiamento coletivo nas redes sociais. A Casa Villarino, onde o músico Tom Jobim e o poeta Vinícius de Moraes foram apresentados nos anos 50, tenta sobreviver. Foi lá que se ouviu pela primeira vez o termo Bossa Nova para o gênero musical que ficou conhecido no mundo. Nas duas primeiras semanas após reabrir, o Villarino teve queda de 90% do movimento e passou a oferecer serviços de entrega e de retirada de refeições. O bar Hipódromo, reduto boêmio na zona sul, foi vencido e fechou após 75 anos de funcionamento.

Teatros, cinemas, casas de espetáculos e museus seguem fechados. Para o presidente da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR), Eduardo Barata, a situação é de “calamidade” no segmento. Nas vésperas da quarentena, 100 espetáculos teatrais iriam entrar em cartaz. “Poucos vivem de patrocínio. A maioria dos artistas vive da bilheteria e estão contando com ajuda da família e de amigos”, conta. Entre os cerca de 5.500 profissionais do segmento, entre artistas e técnicos, a maior parte recebeu o auxílio emergencial.

Agora, os artistas aguardam a liberação dos recursos através da Lei Aldir Blanc, cuja sanção presidencial foi publicada em 18 de agosto, quase dois meses após a primeira aprovação na Câmara. O mais importante da lei emergencial, segundo Barata, é a liberação de 104 milhões de reais repassados do governo federal através do Estado do Rio para espaços e micro e pequenas empresas culturais, em valores mensais que variam de 3.000 reais a 10.000 reais. Outra parte da lei prevê o auxílio emergencial específico para a cultura. São 39 milhões de reais a serem repassados pela prefeitura. No entanto, quem recebe o auxílio emergencial geral não pode ser contemplado por este benefício.

Até o momento, a única ajuda governamental concreta para a cultura foi a entrega de cestas básicas pelo governo do Estado em conjunto com a prefeitura. No teatro, foram 250 cestas, todas destinadas aos técnicos. “Até a vacina, teremos que nos reinventar, seja na internet ou em espetáculos ao ar livre com poucos artistas”, afirma Barata.

El País