Sem votos, Ciro Gomes desdenha de petistas e bolsonaristas

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Foto: Ana Paula Paiva/Valor

O diagnóstico de Ciro Gomes é impiedoso, assim como costumam ser suas palavras: “Nenhum bolsonarista explícito ganhará essas eleições, a não ser como exceção, assim como o PT também tem pouca chance de ganhar pelo Brasil afora”. Ao lado do presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, Ciro tem sido o principal articulador das alianças com o PSB nestas eleições nas principais capitais e municípios acima de 200 mil habitantes.

Em entrevista ao Valor, o ex-candidato à Presidência em 2018, ex-ministro e ex-governador, fala abertamente do que se trata: “A nossa intenção é produzir uma alternativa progressista, com o anúncio explícito de que essa alternativa não pretende antecipar as eleições de 2022, mas fazer um exercício inédito de construir um polo progressista capaz de dialogar com o centro político e de antagonizar o hegemonismo profundamente desmoralizado da burocracia do PT”. O caminho é ousado e complexo, e ele admite: “O céu não está perto nem para [João] Doria nem pra mim”, brinca.

O centro vai ganhar de forma fragmentada, afirma Ciro, confrontando-se também com as previsões pessimistas do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB) sobre a esquerda brasileira. Além de catastróficas previsões econômicas, Ciro Gomes não enxerga a permanência de Jair Bolsonaro no cargo até 2022 e assegura que o ministro da Economia, Paulo Guedes, também não permanecerá muito mais tempo. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: A aliança preferencial do PDT com o PSB, excluindo o PT, é ação deliberada?

Ciro Gomes: A imprensa tenta fazer uma leitura rápida de que a eleição municipal é uma espécie de plebiscito nacional, e não é bem assim. Entretanto, nas grandes cidades, há um voto que é mais politizado. A nossa intenção é produzir uma alternativa progressista, com o anúncio explícito de que essa alternativa não pretende antecipar as eleições de 2022, mas fazer um exercício inédito na vida brasileira, na redemocratização, de construir um polo progressista capaz de dialogar com o centro político e que seja capaz de antagonizar o hegemonismo, o vazio despolitizado e hoje profundamente desmoralizado da burocracia do PT. Então não é uma intenção malévola de isolar. Formamos um conjunto de quatro partidos: o PDT, o PSB, o PV, e a Rede. Temos alianças com o Psol, em Florianópolis e em Belém. E apoiamos o DEM em São Luís e em Salvador. Essa é, portanto, a nossa grande articulação, tentando construir, com todas as dificuldades naturais, uma grande aliança de centro-esquerda que vá, sim, valer para o futuro.

“A eleição vai dar vitória muito fragmentada à alternativa de centro, mais moderada. Cabe a nós tentar organizar isso”

Valor: Essas alianças não passam pelo PT em nenhum momento?

Ciro: Com o PT não aconteceu aliança em nenhuma capital. Basta que eu lhe diga, por exemplo, que em Fortaleza, minha terra, onde fui prefeito, governador, onde uma aliança com o PT governa o Estado, com políticas extraordinariamente bem-sucedidas, ainda assim o PT aqui saiu isolado, numa candidatura solo. Isolado de todo mundo. Fizemos tudo o que estava a nosso alcance para tentar essa aliança, apesar de todas as contradições, mas para dar conforto ao nosso companheiro, o governador Camilo Santana.

Valor: O que impediu alianças com o PT: a conduta específica do ex-presidente Lula, a insistência do PT de que tem que liderar as chapas ou a intransigência do PDT?

Ciro: Não gostaria de particularizar no Lula. Ajudei o Lula por 30 anos, isso é uma coisa que eles querem rasgar. Lula dá uma palavra e a burocracia do PT obedece. Nem sempre é tão verdadeiro. Lula foi derrotado na escolha do Jilmar Tatto em São Paulo. E olha o que aconteceu: em São Paulo, onde foi fundado, o PT está isolado. E é intransigência minha? O PT, no Rio Grande do Sul, que governou com Tarso Genro, Olívio Dutra, Raul Pont, tudo gente de primeira, o [Paulo] Paim, não teve condições de lançar candidato e está apoiando a Manuela D´Ávila, do PCdoB. Na Bahia, onde apoiamos o Rui [Costa], o [Jaques] Wagner, eles lançaram uma pessoa da Polícia Militar. Tudo bem, pode ter seus méritos, mas para nós isso é uma rendição a esse fenômeno de militarizar a política que o Bolsonaro representa. Temos que ter uma compreensão do que está acontecendo: não é mais possível disfarçar que o bolsonarismo boçal é consequência do colapso moral e econômico da governança do PT. Tenho tentado falar isso serenamente, e não é para brigar com ninguém, é pra gente tentar encontrar um caminho de reconciliação com o povo.

Valor: O governador Flavio Dino (MA) disse que a esquerda dividida deverá perder em todas as capitais. O senhor concorda?

Ciro: A nossa vida não é fácil. Há um ano e pouco 70% do eleitorado votou num boçal, bandido, fascista, chefe de quadrilha como Bolsonaro. É o pior tipo de bandido que eu já conheci na política brasileira. Se a gente não entender as razões desse voto de ódio, simplesmente não vamos nos reconciliar com o povo brasileiro. Talvez esse seja o equívoco do Flavio Dino. Em São Luís, a terra dele, resolveu abrir mão de lutar e está ali em cima do muro, apoiando, ou desapoiando, três candidatos. Nós não: resolvemos ir para a luta e deixar o povo arbitrar essas diferenças. Marcio França (PSB) é competitivo em São Paulo; a Marta Rocha (PDT) é competitiva no Rio, a antípoda de toda essa politicagem imunda, que infelizmente o PT apoiou durante os últimos 15, 20 anos, com Sergio Cabral, Eduardo Cunha. A esquerda deve ganhar no Recife, em Fortaleza _ tomara. É um equívoco do Flavio Dino essa indicação. Embora o grande debate não seja propriamente esse.

Valor: A chave que deverá ser virada nesta eleição então é a do polo progressista?

Ciro: Candidato bolsonarista explícito não ganhará eleições, a não ser como exceção. Esse será um sinal. Estou dando um palpite. Vamos começar o debate agora. E acho que o PT também tem pouca chance de ganhar as eleições pelo Brasil afora. Vejo em Recife uma chance, mas a condição de segundo turno para o PT é muito hostil. Lula diz que não assina o manifesto onde está o Chico Buarque, a fina flor da intelectualidade brasileira, porque não é Maria vai com as outras, e em seguida ele vai confraternizar com Renan Calheiros? Essa coisas vão cobrando um preço. O povo não é idiota.

Guedes vai ser demitido daqui a pouco, mas a responsabilidade por tudo isso é do senhor Jair Messias Bolsonaro”

Valor: Essa eleição sob a pandemia será totalmente atípica. Considerando sua experiência pregressa, e a de 2018, como imagina que vai ser o papel das redes sociais?

Ciro: Vai ter relevância muito grande porque o legislador brasileiro teima em não se precaver das aberrações, apesar das péssimas lições que tivemos. Teríamos obrigação de termos avançado em uma legislação, e não o fizemos. A internet é a um só tempo uma maravilha e uma tragédia. Democratiza as possibilidades de comunicação, mas ao mesmo tempo é o universo das “fake news”, da manipulação de mentiras, de difamação, destruição de reputações. E a Justiça brasileira permanece impotente. Vai ser uma campanha agravada daquilo que conhecemos tragicamente em 2018. Vai ser o inferno da Justiça Eleitoral. E pode ser que essa bala trocada diminua a credibilidade dessa ferramentaria de “fake news”. Pode ser. Mas vamos assistir uma tragédia em matéria de desqualificação do debate na internet. Está aí o Bolsonaro, que fez o que fez com dinheiro estrangeiro e o TSE nem sequer julga. Isso evidentemente é uma deformação do sistema de justiça brasileiro.

Valor: A popularidade de Bolsonaro no Nordeste, com a distribuição de auxílio emergencial, inauguração de obras, confronto a governadores, será consistente?

Ciro: Bolsonaro não virou um presidente popular. Isso é mentira, é uma versão que convém ao [Paulo] Guedes e à sua agenda. O que aconteceu com Bolsonaro foi que ele diminuiu a veloz degradação que fazia dele o presidente de pior avaliação entre todos os eleitos da redemocratização pra cá. Ancorou em torno de 35%, 37%. Qual explicação? É o emprego que está bombando? É a qualificação dos serviços públicos que está bombando? É a saúde dos brasileiros que melhorou? Não. Quando a pandemia se instalou no Brasil, 110 milhões de brasileiros já estavam ganhando R$ 413 por cabeça por mês. É a pior década econômica da vida brasileira. Aí de repente o camarada passa a receber R$ 600, sem precisar ir trabalhar, para enfrentar o pânico da pandemia. Fica revelado o limite da política compensatória do lulopetismo. E a segunda grande questão é que o petismo está envelhecendo. Ninguém acredita mais que o Lula vai ser o candidato. Essa é a mentira que foi pregada em 2018. Pode até ser que ele consiga. Lula, como pessoa, está ficando muito distante da memória popular, especialmente porque nós temos 70% dos eleitores brasileiros com menos de 45 anos. E a vida anda.

Valor: O PT tem a visão de que a eleição municipal será plebiscitária. O senhor disse que não crê em vitórias do bolsonarismo e nem no petismo. Será a chance do centro?

Ciro: A preço de hoje, não tem bolsonarista boçal ganhando eleições em nenhuma capital, a não ser Fortaleza, onde eu acredito que perderá feio, vamos ver se Deus ajuda. Cadê o bolsonarismo boçal em São Paulo? Estilhaçou-se em 10 picaretas, cada qual mais deformado. [Celso] Russomanno está tentando surfar nessa onda, mas não é propriamente bolsonarismo raiz. Quem está liderando a pesquisa é o [Bruno] Covas (PSDB), e o Márcio França (PSB) chegando, com muita competitividade. Cadê o bolsonarismo boçal no Rio? O que estamos vendo é Eduardo Paes (DEM), a Marta Rocha (PDT), a Benedita da Silva (PT), o [Marcelo] Crivella (Republicanos), que surfa no bolsonarismo. Mas Crivella é fenômeno antecedente ao Bolsonaro e está muito desmoralizado. Duvido que ganhe. Onde está o bolsonarismo boçal em Florianópolis, Rio Grande do Sul? Não estou vendo. Também não estou vendo o PT.

Valor: O que poderá sair resultar desse diálogo progressista após essa eleição? O senhor citou o caso de Salvador, diálogo com o DEM.

Ciro: Os americanos têm uma expressão que precisamos achar o equivamente aqui no português. Não podemos imaginar as coisas sem pensar se são wishful thinking. Ou seja, é um pensamento-desejo. Me dê a vênia de que eu não sou um neutro observador da cena brasileira, mas um militante do centro da luta. A minha análise é de que o Brasil vai dar um sinal. Não é de exaustão desses extremismos, que são Bolsonaro e lulopetismo, e vai dar uma vitória muito fragmentada a essa alternativa centro à esquerda, mais moderada. Cabe a nós, lendo essa tendência do eleitorado, tentar organizar isso. Não é tarefa fácil. Porque repare: se o Doria, que era bolsonarista, e agora está surfando em outra, ganha em São Paulo, vocês da imprensa vão dizer: foi o grande vitorioso da vida brasileira. O céu não é perto nem para o Doria e nem pra mim. Nós temos que fazer um esforço grande para dar conteúdo prático a essa tendência que eu sinto no eleitorado, de mandar os extremos irem brigar lá fora e tentar construir um caminho assentado numa ideia concreta. E que dê uma resposta à crise econômica devastadora que estamos vivendo no Brasil. Você tem um quadro enorme de deteriorização: R$ 1 trilhão de déficit primário. E essa gente nem sequer põe em debate. Estamos perdendo o prazo da anterioridade. Algumas providências estratégicas não poderão mais ser tomadas para 2021. São loucos, criminosos e irresponsáveis.

Valor: Quais providências? E para ficar claro: essas responsabilidades seriam da equipe econômica?

Ciro: A equipe econômica, para mim, é o presidente da República. Esse papo furado do Bolsonaro é isso, ele é o bonzinho e o Guedes é o mal. Guedes vai ser demitido daqui a pouco, mas a responsabilidade por tudo isso é do senhor Jair Messias Bolsonaro. Ele que nomeou o posto Ipiranga e ele é o responsável pelo que acontece no Brasil. Sobre o princípio da anterioridade: nós vamos manter a alíquota de Imposto de Renda mais regressiva do mundo? Quando eu fui ministro da Fazenda, os salários acima de R$ 500 mil pagavam alíquota de 35%, e os abaixo de R$ 3 mil pagavam alíquota menor de 10%. Por que não fazemos isso agora? Vamos fazer pente-fino nas renúncias fiscais? Tem sentido um país com R$ 1 trilhão de déficit fazer renúncia fiscal para locadora de veículos, como a Localiza? Isso só para dar um exemplo caricato do bolsonarismo boçal. Vamos permitir que o Brasil não cobre imposto sobre lucros e dividendos empresariais? Nós vamos deixar os grandes patrimônios, acima de R$ 20 milhões, sem pagar uma alíquota de meio ou um ponto percentual, como o mundo inteiro está fazendo como forma de equilibrar as contas explodidas pelo enfrentamento da pandemia? Estou dando exemplos práticos, do que têm que ser feito. Vamos fazer uma CPMF tirando R$ 5 mil de isenção por CPF e vincular isso ao serviço da dúvida, para dar um sinal de longo prazo para a sustentabilidade da dívida? São coisas que eu tomaria como providências ou colocaria em debate.

Valor: Esse debate, em tese, teria que estar na reforma tributária.

Ciro: Essa gente mente de um jeito… Não existe uma única proposta de reforma tributária acontecendo no Brasil. Tem duas propostas no Congresso, que não passam, que são de mera simplificação do ICMS. Não passa por que? Porque não querem resolver a contradição conceitual de que o Brasil tem um sistema com crédito na origem, e que se não for discutida a forma de se compensar isso, quebra São Paulo, o Rio, Minas e o Rio Grande do Sul, que já estão quebrados. Olhe as bobagens que o Guedes está falando. É de uma indigência técnica, ele e a equipe dele, que me assusta. Comecei dialogando, achando que um cara que veio de Chicago poderia ao menos conversar. O Guedes não entende absolutamente nada. A unificação do PIS-Cofins super onera serviços no Brasil. Sabe quando é que passa isso no Congresso? Nunca. Valor: Como o senhor imagina o impacto da pandemia nas eleições?

Ciro: Essa viculação de das faces da mesma moeda, saúde pública/emprego e renda, na minha opinião serão os temas centrais deste debate eleitoral. [O auxílio emergencial] vai cair agora para R$ 300 e mais de seis milhões de pessoas são banidas do cadastro, e você começa a estressar brevemente desemprego recorde, informalidade recorde… Enfim, há 20%, ou 30% do eleitorado que é boçal e aceita as maluquices do Bolsonaro, que não precisa de vacina porque tem cloroquina. Mas a maioria esmagadora sabe que Bolsonaro é um idiota, um genocida. E essa maioria vai pedir propostas concretas de saúde e de emprego.

Valor: Existe algum plano gestado desta frente progressista, apontando caminhos para o país?

Ciro: Nossas fundações dialogam permanentemente, independente de nossas quezilas eleitorais ou diferenças políticas. Quero iluminar essas diferenças não é por qualquer tipo de rancor. Volto a dizer: a intenção é buscar um caminho de reconciliação do pensamento progressista brasileiro com o nosso povo. Acho que 15% da direita brasileira saiu do armário e isso está de bom tamanho. Mas o resto a gente precisa reconciliar, precisamos dar caminho para o povo voltar, substituir esse populismo de direita ou de esquerda, que é a mesma coisa.

Valor: Márcio França disse que vai procurar o voto BolsoFrança, ou Françanaro em SP. Qual distância manterá do bolsonarismo?

Ciro: Márcio é candidato a prefeito da maior cidade da América do Sul. Ele tem que procurar o voto de todos os paulistanos, todos mesmo. Vai imaginar agora o prefeito de São Paulo que não dialoga com o presidente? Isso só existe na cabeça mequetrefe de certa esquerdinha boboca que infelizmente viceja no Brasil. O Márcio tem história, sempre militou no Partido Socialista Brasileiro. Era o homem de confiança do doutor Miguel Arraes. E alguém acha, honestamente, que nessa altura da vida o Márcio França vai mudar de rumo? Ele está apenas querendo dizer para o paulistano: olha, eu sou capaz de dialogar com quem quer que seja. Se o Márcio tivesse o menor sinal, o mais remoto, de conciliação com Bolsonaro, nós não o apoiaríamos.

Valor: O senhor dialoga com alguém do PT?

Ciro: A esmagadora maioria. Só quem me insulta é essa burocracia corrompida do PT. Eu sou amigo do Tarso Genro, do Olívio Dutra, do Raul Pont, do Paulo Paim, para começar, no Rio Grande do Sul, do Eduardo Suplicy, Rui Costa e Jaques Wagner. Sou amigo de Wellington Dias, no Piauí. Sou amigo, eleitor e admirador de Camilo Santana no Ceará. Sou amigo dos Viana, no Acre. Essa gente é porque não tem moral nem respeito por ninguém. Com quem eu não quero mais andar são os ladrões, os picaretas, os mentirosos, os bandidos do PT.

Valor: O senhor acha que Bolsonaro termina o mandato?

Ciro: Duvido muito. É um palpite mero, mas com raiz em duas constatações. A primeira: só três presidentes no Brasil moderno concluíram seus mandatos: Juscelino, Fernando Henrique e Lula. Características básicas: uma extraordinária capacidade de diálogo, articulação, cooptação e até de suborno dos oponentes, até na conta de certo abuso, como aconteceu com Fernando Henrique e Lula. Bolsonaro é o oposto, é o brigão. Ele desce nos Estados insultando governadores, etc. Segundo: o colapso econômico brasileiro não tem precedente na história. O baronato brasileiro, quem manda no país, sabe muito bem o que estou falando e e sabem que é verdade. Na hora em que o Guedes sair, tudo vai se revelar. E isso não demora a acontecer.

Valor Econômico