Tráfico e milícias influem fortemente em eleições
Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Faltando pouco mais de dois meses para as eleições municipais, Ministério Público, Justiça Eleitoral e autoridades de segurança reconhecem um desafio enorme na tentativa de identificar e impedir o direcionamento de votos pelo crime organizado. Segundo um relatório da Polícia Civil do Rio, um a cada sete locais de votação no estado fica em área sob influência de tráfico ou milícia. Em meio à pandemia da Covid-19, que trouxe obstáculos para o acesso a saúde, emprego e alimentação em bairros e favelas onde lideranças criminosas estão estabelecidas, especialistas alertam para um “terreno fértil” à proliferação de candidaturas ligadas ao poder paralelo.
O relatório da Polícia Civil, assinado pelo subsecretário de Planejamento e Integração Operacional, Felipe Curi, foi enviado em agosto ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin no âmbito da ação que limitou operações policiais em favelas na pandemia. Na sua argumentação, Curi alegou que restrições à polícia “podem interferir no processo eleitoral, dificultando campanhas”. O argumento não foi analisado no voto de Fachin, acompanhado pela maioria do plenário do STF, que decidiu permitir operações apenas em “situações excepcionais” para “não colocar em risco ainda maior a população”.
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Segundo a procuradora regional eleitoral do Rio, Silvana Battini, as restrições causadas pela pandemia podem deslocar substancialmente as campanhas para o ambiente virtual, exigindo formas de monitoramento que vão além da presença física de agentes e do MP. Para Silvana, a cooperação das polícias será importante para orientar a fiscalização em áreas críticas.
A chamada Coalizão Eleitoral, formada por autoridades eleitorais e de segurança, apontou 637 locais de votação em áreas dominadas por tráfico ou milícia em 2018. Segundo o último relatório da Polícia Civil, o estado tem hoje 672 locais de votação cercados pelo crime. Neles, vivem 1,9 milhão eleitores, 15% do eleitorado total do estado.
— O enfrentamento pode se dar no registro da candidatura, impedindo que pessoas enquadradas objetivamente na Lei da Ficha Limpa sejam candidatas, e no acompanhamento desses candidatos em áreas críticas. Para isso, há uma cooperação intensa entre o MP e as autoridades de segurança, e contamos também com a colaboração dos partidos. Trata-se de uma eleição que terá desafios inéditos. Nunca vivemos uma situação como essa, numa combinação de pandemia com o acirramento da violência no estado — afirmou Silvana.
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Vários partidos já apresentaram suas nominatas, com até 77 vereadores. O PSL em Belford Roxo, por exemplo, aprovou em convenção o nome do ex-presidente da Câmara Municipal Márcio Cardoso Pagniez, o Marcinho Bombeiro, como pré-candidato a um novo mandato. O ex-vereador, de 51 anos, foi denunciado pelo Ministério Público (MP-RJ) sob acusação de ser o mandante da morte, em 2017, de dois jovens usuários de drogas. Segundo a denúncia, Marcinho, que renunciou ao mandato e foi preso em outubro, integrava uma milícia com atuação em Belford Roxo. Nos bairros em que o grupo criminoso tem influência, ele chegou a ter em 2016 quase 40% dos votos em algumas seções eleitorais, segundo levantamento do GLOBO com dados do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ).
Em grupos de WhatsApp, a candidatura de Marcinho foi celebrada por integrantes do PSL: “Marcinho Bombeiro vem com tudo outra vez, TJ (estamos juntos)”. Caso a campanha não se concretize por problemas com a Justiça Eleitoral, interlocutores afirmam que o grupo político de Marcinho terá como “carta na manga” a candidatura de um parente, opção para manter sua influência na Câmara. A defesa de Marcinho não se pronunciou. Já o PSL estadual informou que não interfere em nominatas.
Candidato a prefeito de Belford Roxo, o vereador Cristiano Santos (PL) é outro nome com ligações com o crime organizado. Ele é irmão do traficante Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, chefe de uma facção criminosa que foi preso em 1996 e condenado em 2009 a 36 anos de prisão. O traficante cumpre pena no presídio federal de Catanduvas (PR). Cristiano chegou a ser preso em 2006, acusado de ser o sucessor de seu irmão no controle do tráfico nos complexos do Alemão e da Penha. Ele negou a acusação.
Cristiano foi o 10º vereador mais votado na atual legislatura, com 2.567 votos. Mais da metade, segundo a Justiça Eleitoral, obtidos em seções de bairros como Jardim Bom Pastor, Jardim Gláucia e Redentor, em áreas disputadas por duas facções do tráfico de drogas da capital. Em 2018, quando concorreu a deputado estadual, ele teve mais de 30% dos votos em algumas dessas seções. Cristiano afirma que “único envolvimento com Márcio é de irmão, algo que não nego e nem tenho vergonha, até porque ele paga por todos os crimes que foram acusados e comprovados.”
No Rio, o PM Alex Beraldo, citado no relatório final da CPI das Milícias de 2008, se licenciou para concorrer a vereador. Beraldo tentou se candidatar pelo PT, mas seu nome gerou resistência por ter aparecido no documento como integrante da organização chefiada pelo ex-deputado Natalino Guimarães e pelo ex-vereador Jerônimo Guimarães, o Jerominho. Carminha Jerominho, sua filha, será candidata a vereadora pelo PMB.
Outro citado na CPI das Milícias, o ex-vereador Luiz André Ferreira da Silva, o Deco, que passou três anos preso sob acusação de homicídio e formação de quadrilha, lançou seu filho, Daniel Carvalho, candidato a vereador no Rio. Sem anunciar o partido, Deco afirmou mas redes que o filho “vai nos representar com responsabilidade”.
Em Maricá, na Região Metropolitana, o sargento da PM Wainer Teixeira Júnior apresentou candidatura a vereador pelo PSD. Wainer foi condenado a cinco anos e três meses de prisão em sentença que cita envolvimento com a milícia na cidade, mas foi posto em liberdade em março. Em nota, a defesa de Wainer informou que ele foi “acusado injustamente” e que “não há prova alguma contra o mesmo, salvo a citação ao nome em ligações telefônicas de terceiros ainda obtidas de forma irregular”.
A defesa de Wainer também informou que o sargento, cujo partido está coligado ao atual prefeito de Maricá, Fabiano Horta (PT), busca “o progresso, crescimento da cidade e combate ao tráfico dando assim a tranquilidade esperada pelo cidadão”. Em 2017, Wainer chegou a ser preso sob acusação de receber propina do tráfico quando servia no 7º Batalhão de Polícia Militar, em São Gonçalo.
Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio (UFRRJ), a dificuldade de articulação do poder público para garantir o atendimento de necessidades básicas da população na pandemia abre espaço para que o crime organizado amplie suas fileiras eleitorais.
— Esses grupos controlam serviços que passam a ser moeda de troca para uma população abandonada, desassistida, em áreas degradadas economicamente. Quem vai ter grana para fazer campanha no cenário atual é a milícia — diz Alves.