Caso Nubank explica racismo empresarial no Brasil

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Foto: Antonio Milena/VEJA

De “não vou nivelar por baixo”, passando por “acabei me expressando mal” e chegando ao “erramos” da alta administração. A trajetória da crise de imagem envolvendo Cristina Junqueira, co-fundadora do Nubank, quando disse no programa Roda Viva, da TV Cultura, na semana passada, que a instituição não podia nivelar por baixo no momento da contratação de negros, revela uma realidade que não é exclusividade do Nubank: os líderes empresariais podem demonstrar despreparo para tratar questões polêmicas e acabar revelando racismo inconsciente. Se não são especialistas no assunto, imagina criar políticas de inclusão de fato efetivas que não busquem apenas surfar numa onda do momento, com orçamento mirrado.

A fundadora da empresa Sharp, Monique Evelle, que faz letramento racial em empresas, ou seja, alfabetiza as pessoas sobre o tema, diz que, de cada dez empresas em que dá treinamento, em oito os líderes não participam do curso. No Nubank, no ano passado, foi exatamente assim. Junqueira chegou a fazer a abertura do evento em que Evelle iria falar, mas foi embora alegando estar com a agenda cheia. Nenhum outro líder estava presente. A consultoria Think Eva e a ONG interligada Think Olga, que também dão treinamento sobre assuntos de diversidade e inclusão em empresas, têm o mesmo diagnóstico: os líderes pouco participam e dos que participam fisicamente a maioria fica ocupada, com a mente em outro lugar ou no celular. E, se for falar de orçamento, então….

O Nubank divulgou neste domingo uma carta assinada pelos três fundadores, entre eles Cristina Junqueira, assumindo que erraram e prometendo que, em novembro, vão anunciar os “números do compromisso” que estão assumindo para montar uma “agenda real com ações concretas e ambiciosas de transformação na área de diversidade racial”. Na carta, os executivos disseram que ficaram acomodados com o progresso dos primeiros anos de vida da empresa, que se refletia em estatísticas relativas à igualdade de gênero e LGBTQIA+, mas que mascarava a necessidade de posicionamento também na pauta antirracista. Na entrevista do Roda Viva, Junqueira justamente se gabou de muitos números sobre diversidade. Disse que a fintech tem em seus quadros mais de 40% de mulheres e 30% de LGBTQI, percentuais muito mais elevados do que em qualquer startup. Na sexta-feira, VEJA pediu dados ao Nubank quanto ao número de negros e mulheres que trabalham na empresa e em cargos de liderança, mas não recebeu respostas. De últimos dados públicos divulgados pelo Nubank, é possível, no entanto, encontrar que, dos cinco novos executivos contratados para o alto comando da instituição, todos são homens. Nenhum negro. Nenhuma mulher.

A questão racial no Nubank foi a que dominou o noticiário, mas as falas de Cristina Junqueira revelam que a instituição, apesar de se apresentar como uma empresa revolucionária que está mudando a forma como cliente se relaciona com o banco, ainda adota discursos que são condenados também quando se fala de gênero. Questionada, por exemplo, sobre que dicas ela daria para que seja quebrada a hegemonia masculina no mercado financeiro, Junqueira não titubeou: a mulher tem de ser melhor. “Em condições iguais, o mundo vai favorecer um homem. E o que vou falar para minhas filhas, falo para minhas sobrinhas, minhas irmãs e falo para todas as mulheres que trabalham comigo: Não estejam em condições iguais. Sejam melhor…. Não é justo. Mas eu não tenho tempo de o mundo se tornar igual para minha carreira avançar… Tentei nunca estar em posição de igualdade. Sempre à frente”. Questionado para essa reportagem se essa cultura era adotada oficialmente dentro do Nubank, o banco não respondeu.

“É exaustivo e adoecedor”, diz Monique Evelle sobre líderes mulheres ou negros ou LGBTQI+ que estão sozinhos nas estruturas das empresas. “Você olha para o lado e não tem ninguém. Não tem o equilíbrio”. Sem o equilíbrio, a tendência é de as pessoas se moldarem à cultura da empresa em que trabalham e aí a meritocracia é uma questão que perpassa todas as outras em torno da desigualdade. “Acreditar que é só lutar e estudar…num país com 200 milhões de habitantes. Em que 5% somente fala inglês (Junqueira mencionou que é preciso inglês para trabalhar no Nubank)… e quem não conseguiu é por que não lutou?”, defende.

A diretora de impacto do Think Olga e Think Eva, Maíra Liguori, diz que crises como estas trazem uma grande oportunidade para uma executiva como Cristina Junqueira: a de se tornar uma voz que lidere um movimento de mercado. A exemplo do que faz Luiza Helena Trajano, da Magazine Luiza. Poucas semanas antes, a empresa varejista se viu numa polêmica sobre racismo, por ter criado um programa de trainees exclusivamente para negros com o objetivo de incluí-los em cargos de liderança. Trajano esteve no mesmo Roda Viva e o efeito de imagem foi totalmente diverso do que aconteceu com Junqueira, até porque a empresa já tinha tomado uma atitude em relação à inclusão. Não é de hoje que Luiza Trajano está preocupada com questões de diversidade, inclusão e com as mulheres. Liguori conta que, quando a Magazine Luiza investiu num programa para mulheres vítimas de violência, a empresária chamou vários empreendedores para um café da manhã para dividir a experiência e entregar uma cartilha com tudo o que ela aprendeu. Isto é ser uma líder de um movimento de mercado. “É preciso abrir espaço para quem está vindo não ser oprimido”, diz Liguori.

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Empresas como o Nubank ou Magazine Luiza que estão na casa e nos celulares de milhões de brasileiros, tratar de inclusão nos dias de hoje não é mais opção, mas condição para que os negócios cresçam em um país em que metade da população é negra ou parda. Não à toa as ações da Magazine Luiza dispararam quando ela anunciou o programa de trainees, apesar do movimento contrário que quis taxar o programa de “racismo reverso” contra o branco. No caso do Nubank, uma enxurrada de consumidores “cancelou” a empresa não só nas redes sociais como também cancelaram literalmente suas contas bancárias. Mas, para seguir no caminho da inclusão e com isso beneficiar seus próprios negócios, os líderes precisam estudar, na visão das duas especialistas. Entender do assunto, das origens do racismo estrutural, da desigualdade de gênero, do preconceito e da desigualdade social. Os líderes empresariais precisam dar o exemplo e ter orçamento e agenda para tratar do assunto. Delegar o tema para funcionários que muitas vezes sequer possuem essa função em suas atividades coloca em risco a reputação da própria empresa e a sua imagem junto a consumidores que pretende atingir. E lembrar que racismo é crime. E se o líder errar? A dica das especialistas é que tem de respirar, chamar pessoas que entendam do assunto, aprender, entender o erro e tomar atitudes. No caso do Nubank, a empresária teria errado na entrevista ao Roda Viva, não respirou ao pedir desculpas no dia seguinte escrevendo que tinha se expressado mal, avaliam. Mas o rumo foi corrigido quando o assunto ganhou o devido cuidado dentro da instituição. O Nubank contratou o Instituto Identidades do Brasil, especializado em questões raciais, para ajudá-los na travessia, assumiu o erro e se diz disposto a tomar atitudes ainda mais relevantes. A lição serve para muitas empresas e seus líderes.

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