Escritor polonês diz que faltou Brasil em livro sobre democracias em risco

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Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

No prefácio da edição brasileira de “Crises da Democracia”, o polonês Adam Przeworski lamenta não ter incluído o Brasil na obra. “O Brasil não aparece neste livro como um país onde a democracia possa estar em crise. Isso acontece porque, quando redigi sua versão original, eu acreditava firmemente na solidez das instituições políticas brasileiras.”

O livro foi publicado nos EUA em setembro de 2019. Fosse hoje, o respeitado cientista político da New York University, autor de importantes estudos sobre a democracia, teria inserido o país no rol dos que enfrentam o que ele chama de “autoritarismo furtivo”, ao lado de Hungria, Índia, Polônia, Venezuela, Turquia, e, em menor grau, Estados Unidos.

No autoritarismo furtivo, tal como em qualquer governo autocrático, os governantes tentam “incapacitar possíveis resistências, que variam caso a caso, mas costumam incluir os partidos de oposição, o sistema judicial e a mídia, bem como as ruas”.

Nesse autoritarismo dissimulado, no entanto, não há mudanças abruptas, não se destacam “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo Tribunal Federal, não se cassam direitos políticos de opositores nem se planta um censor nas Redações dos jornais.

Em vez disso, os aspirantes a autocratas tentam se perpetuar no poder usando instrumentos do próprio regime democrático, o que confere a eles verniz de legitimidade.

Há ações incrementais, como mudanças de fórmulas eleitorais, novas exigências para poder votar, intimidação da oposição e imposição de restrições a ONGs, além de transferência de poder do Legislativo para o Executivo, restrição da independência do Judiciário, uso de referendos para superar barreiras institucionais, reformas constitucionais, aparelhamento partidário da máquina estatal e pressão jurídica e financeira sobre a mídia.

“Se acontecer aqui, não vai acontecer de uma vez… Cada passo poderá até ser ofensivo, mas não alarmante… Não haverá um ponto único e cataclísmico em que as instituições democráticas sejam demolidas… Os passos rumo ao autoritarismo nem sempre serão claramente ilegais”, escreve Przeworski, citando um advogado constitucionalista que analisa a situação nos EUA.

“É difícil identificar um ponto de inflexão em meio aos acontecimentos: nenhuma nova lei, decisão ou transformação isolada parece suficiente para fazer soar o alarme; só depois que acontece é que percebemos que a linha que separa a democracia liberal de uma democracia falsa foi atravessada: momentos decisivos não são vistos como tais quando vivemos neles”, diz outro advogado citado no livro.

Przeworski analisa democracia e eleições há décadas. É autor de estudos que mostraram que a probabilidade de sobrevivência da democracia aumenta acentuadamente quando a renda per capita do país é alta. Também mostrou que o crescimento econômico é muito mais lento em países não democráticos, desfazendo o mito de que ditaduras são benéficas para a economia.

Dentro da safra recente de livros que analisam o enfraquecimento da democracia, e, em certos casos, preveem o fim desse sistema, o de Przeworski é o que mais se dedica a tentar entender as causas para a ascensão do autoritarismo furtivo e a apontar que, na verdade, esse quadro é um sintoma de que o sistema atual tem falhado em suprir as necessidades das pessoas.

O principal combustível do declínio democrático, segundo o cientista político, é a estagnação da renda e o aumento da desigualdade, que leva a um desgaste na crença do progresso material. As pessoas ficam desiludidas, certas de que seus filhos estão em pior situação financeira do que elas estavam.

A polarização profunda e a crescente hostilidade entre grupos ideológicos diferentes são outros fatores importantes. “As vitórias de Bolsonaro e Trump mostram que, quando estão desesperadas, como pacientes terminais, as pessoas vão atrás de qualquer remédio, agarram-se a sejam quais forem as possibilidades de salvação. Mesmo quando oferecidas por impostores que vendem curas milagrosas”, escreve Przeworski.

Ele também aponta para sinais importantes do retrocesso democrático: rápido desgaste das legendas tradicionais, com fragmentação partidária; avanço de siglas e atitudes xenofóbicas, racistas e nacionalistas, além do declínio do apoio à democracia em pesquisas de opinião pública.

O prognóstico não é animador. Se as pessoas não se derem conta rapidamente de que há uma escalada autoritária, ela pode se tornar irreversível. À medida que esse processo avança gradualmente, a oposição fica impossibilitada de ganhar eleições —ou de assumir, se ganhar; as instituições não conseguem atuar como freios e contrapesos ao Poder Executivo, e imprensa e protestos são reprimidos.

Segundo Przeworski, isso ocorreu na Turquia sob o AKP e o presidente Recep Tayyip Erdogan, na Venezuela sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Hungria sob o Fidesz, partido do primeiro-ministro Viktor Orbán, na Polônia sob o PiS (Partido da Lei e Justiça), na Índia sob o premiê Narendra Modi e nos Estados Unidos sob o presidente Donald Trump.

“A não ser que o povo reaja desde o início contra atos do governo que possam ter efeito cumulativo no desgaste da democracia, ela irá se desmanchando aos poucos”, diz. Fica o alerta.

Folha