Primeiras decisões de indicado ao STF serão emblemáticas
Foto: Ramon Pereira/Ascom-TRF-1
Caso o desembargador Kassio Marques seja aprovado pelo Senado para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), como tende a acontecer, um de seus primeiros testes deve ser a análise de uma série de pedidos que buscam reverter prisões preventivas consideradas ilegais pelo seu antecessor, o ministro Celso de Mello, que deixa a Corte hoje.
Marques pode se ver em uma situação paradoxal ao examinar esses processos. Por um lado, terá a oportunidade de mostrar a sua inclinação jurídica em matéria penal – ele é considerado um garantista, ou seja, mais sensível aos direitos de defesa dos investigados, com propensão a votar pela suspensão das preventivas.
Por outro, pode abrir uma crise com o governo que o indicou, já que os casos dizem respeito a delitos como tentativa de homicídio, tráfico de drogas e roubo – os chamados crimes violentos, os quais o presidente Jair Bolsonaro prometeu combater durante a campanha eleitoral.
Na semana passada, o voto do ex-decano conduziu o entendimento de que prisões em flagrante não podem ser transformadas em preventivas sem prévio requerimento do Ministério Público (MP) ou das autoridades policiais. O resultado, unânime, foi a última “vitória” de Celso de Mello em julgamento colegiado antes da sua aposentadoria.
A regra que proíbe a conversão por iniciativa própria da Justiça foi uma inovação trazida pela Lei Anticrime. Embora tenha entrado em vigor em 24 de janeiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda vem relativizando esse entendimento.
Desde o início do ano, foram pelo menos dez acórdãos em que se permitiu o ato “de ofício” dos magistrados de primeira instância, conforme levantamento feito pelo advogado Marcos Pippi, especialista em Garantias Constitucionais do Processo Penal, a pedido do Valor.
Em setembro, a Sexta Turma do STJ decidiu que a conversão do flagrante em preventiva à revelia da polícia ou do MP é possível “em situações excepcionais” – como quando é preciso garantir a ordem pública.
Os ministros levaram em conta o fato de, em razão da pandemia, não ter havido audiência de custódia – iniciativa que garante ao preso em flagrante o direito de ser imediatamente ouvido por um juiz. Era justamente nesta ocasião em que o MP ou a polícia apresentavam ou não o requerimento para converter o flagrante em prisão preventiva.
O advogado Marcos Pippi destacou que, mesmo com a decisão que sobreveio do Supremo, o STJ ainda é livre para decidir de modo diferente. “Pode ser que haja uma revisão, mas isso não afeta casos já decididos. Agora, cabe às partes, no caso os advogados, manejar os recursos para buscar o melhor resultado ao cliente, acionando o STF contra a prisão ilegal”, disse ele.
Um desses casos já chegou ao STF por meio de um habeas corpus distribuído à relatoria do ministro Dias Toffoli. Ele é um integrante da Primeira Turma, que pode fixar uma jurisprudência oposta à da Segunda.
A divergência entre os colegiados costuma levar ao caminho do plenário, para que o tema seja julgado pelo quórum completo e para que se chegue a uma conclusão definitiva, dando mais segurança jurídica aos procedimentos das prisões.
Não há consenso nem dentro do próprio MP. Alguns procuradores entendem que a Lei Anticrime impede a decretação de medidas cautelares por iniciativa própria do juiz, mas que isso não engloba a conversão do flagrante em preventiva.
“É uma questão de interpretação que ainda está em debate, sendo possível encontrar posições fundamentadas de ambos os lados. De todo o modo, fica clara a importância de se realizar a audiência de custódia, ainda que por videoconferência”, disse ao Valor a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.
Na sessão da semana passada, Celso de Mello apontou justamente que “a ausência da audiência de custódia é causa geradora da ilegalidade da própria prisão em flagrante, com o consequente relaxamento da privação da liberdade da pessoa sob poder do Estado”.
Nos bastidores do STF, a votação unânime não foi vista como coincidência. Como possivelmente o ex-ministro fique vencido no julgamento, ainda não concluído, sobre a possibilidade de Bolsonaro depor por escrito, esse tema foi escolhido como a sua “grand finale” na Segunda Turma. Colegas citaram o “simbolismo” de o acórdão do ex-decano poder pacificar uma controvérsia jurídica travada entre as duas Cortes superiores.
Para a advogada Ludmila Groch, a decisão reforça que no processo penal é necessário um “juiz imparcial, que não atue sozinho”. Ademais, “prisões preventivas têm fundamentos específicos, que devem ser analisados com cautela, e não indistintamente, como ocorria na conversão por ofício.