Surge a vacina do ódio

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Foto: Gabriela Biló/Estadão

Acabou a temporada do “Bolsonaro paz e amor”. A guerra das vacinas devolveu à cena política o presidente Jair Bolsonaro como ele é, insuflado pelas redes sociais no estilo “quem manda sou eu”, que havia sido arquivado após investigações do Ministério Público, da Polícia Federal e do Supremo Tribunal Federal atingirem sua família e amigos. Agora, porém, no momento em que Bolsonaro vê a Procuradoria-Geral da República como sua aliada e consegue nomear pessoas de sua mais estrita confiança para o Supremo e o Tribunal de Contas da União (TCU), o “gabinete do ódio” voltou.

O confronto do presidente com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), por causa da “vacina da China”, expôs com todas as letras que a fase de calmaria tinha sido desenhada pelo marketing do Planalto. A ordem era evitar que os conflitos se agravassem para não irritar ainda mais o Judiciário e o Congresso numa quadra em que estão em curso o inquérito das fake news, o caso Fabrício Queiroz e as diligências para apurar a interferência de Bolsonaro na PF. A denúncia foi feita em abril pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro, o ex-juiz da Lava Jato que acusou o presidente de intervir na corporação para proteger seus filhos e seguidores.

Todas essas investigações continuam, mas o presidente, hoje, está mais fortalecido. Com o apoio de partidos que integram o Centrão, e até mesmo do PT, Bolsonaro conseguiu emplacar o desembargador Kassio Nunes Marques em uma cadeira no Supremo.

Aprovado nesta quarta-feira, 21, pelo Senado, em sabatina protocolar que trocou questionamentos sérios por uma “rasgação de seda”, Marques já é visto como o magistrado que atuará como um “escudo” do Planalto na Corte. Além disso, Bolsonaro terá agora no TCU o apoio de seu braço direito Jorge Oliveira, atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, que entrará na vaga a ser aberta em dezembro com a aposentadoria do presidente do tribunal, José Múcio Monteiro.

No governo ninguém se esquece de que o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, começou quando integrantes do TCU acusaram a petista de ter cometido uma pedalada fiscal. Nos capítulos de hoje, com uma crise atrás da outra batendo à porta do Planalto, tudo foi planejado para a blindagem de Bolsonaro. E a ala ideológica do governo, estimulada pelo vereador do Rio Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho “02” do presidente, já se sente à vontade para pôr as manguinhas de fora.

Ao desautorizar o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, e cancelar o acordo para a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac, produzida numa parceria entre o laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantã, Bolsonaro se rendeu à pressão dos chamados “olavetes”. Aposentou o personagem “paz e amor” e, mais uma vez, foi contra os generais.

“Nunca houve um presidente tão cercado de traidores quanto o Bolsonaro. Será por mera coincidência que nenhum deles é um olavete?”, afirmou no Twitter o escritor Olavo de Carvalho, guru da ala ideológica, dando a senha para novos ataques aos militares da Esplanada.

 

Bolsonaro disse que Pazuello foi “precipitado” ao anunciar que “a vacina do Butantã será a vacina do Brasil” e chegou a falar em “traição” quando se referiu ao assunto. Mas, fiel a seu estilo de “morde-assopra”, assegurou depois estar tudo bem com titular da Saúde. Insuflado pelas mídias digitais, o presidente concentrou o bombardeio na direção de Doria, que poderá ser um de seus principais adversários na disputa de 2022 pelo Planalto.

“Impor medidas autoritárias é só para esses nanicos projetos de ditadores como esse cara de São Paulo aí”, disse Bolsonaro nesta quinta-feira, 22, em conversa com apoiadores, no Palácio da Alvorada. “Eu não ouvi nenhum chefe de Estado do mundo dizendo que iria impor a vacina. É um direito de cada um tomar ou não. É uma irresponsabilidade do governador, porque não existe uma vacina eficaz”, emendou, ao afirmar que Doria quer levar “pânico e terror” à população.

No dia anterior, em mais um sinal de que o “gabinete do ódio” voltava a dar as cartas, Bolsonaro lembrou a origem da pandemia do coronavírus, batizado pela ala ideológica de “vírus chinês”. O mesmo discurso é propagado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

“Bolsonaro está cometendo um ato criminoso”, reagiu Doria. “A vacina que vai nos salvar não é a ideologia. O Brasil não pode mais viver em conflagração”.

Pelo Twitter, o deputado Marcelo Ramos (PL-AM) também entrou na guerra contra os radicais que alimentam o discurso inflamado do presidente. “Bolsonaro não lidera! É liderado por uma rede de tolos que diante da morte de milhares de brasileiros grita nas redes sociais contra uma vacina que pode proteger a vida. É o populismo sanitário”, provocou Ramos.

 

Com foco nas críticas à Coronavac, a ala ideológica nem quer mais saber do escândalo protagonizado na semana passada por Chico Rodrigues (DEM-RR). Amigo do presidente, o ex-vice-líder do governo no Senado foi flagrado com R$ 33.150 na cueca em operação da PF que investiga desvio de dinheiro destinado à pandemia de covid-19. Para Bolsonaro, não há corrupção no governo. O que importa, agora, é o combate à “vacina do Doria”.

Estadão