Caso Mari Ferrer expõe machismo clássico
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Após a divulgação de imagens da audiência do processo de estupro da influenciadora Mari Ferrer, o julgamento do caso, que ocorreu em 2018, voltou a repercutir nas redes sociais nesta terça, 3. Desta vez, o debate veio acompanhado da tese de ‘estupro culposo’, inexistente no Código Penal, mas atribuída à Promotoria catarinense – que se manifestou pela absolvição do empresário André Camargo Aranha, acusado pelo crime.
Nas alegações finais, apresentadas em agosto após a conclusão do inquérito, não há menção ao termo. No relatório, o Ministério Público de Santa Catarina considerou ‘duvidosa’ a situação de vulnerabilidade da influenciadora naquele dia 15 de dezembro de 2018 e entendeu que faltam provas para confirmar que o empresário tinha ‘consciência’ de que a jovem não poderia oferecer resistência a ele.
Do ponto de vista técnico, a condição da vítima é relevante uma vez que o crime imputado a Aranha é estupro de vulnerável – praticado contra menores de 14 anos ou, justamente, vítimas incapazes de oferecer resistência. Por isso, para o MP, teria havido um ‘erro do tipo’ penal. Nesses casos, o acusado ainda pode ser punido se a legislação tiver previsto a modalidade culposa do crime – inexistente em casos de estupro. Por isso, na avaliação do promotor Thiago Carriço de Oliveira, responsável pelo caso, o empresário não pode ser punido.
“Não restou comprovada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado no tocante a tal estado psíquico alegado pela ofendida após os fatos. Pelo que consta no processo, não restou comprovado que o acusado tinha conhecimento a suposta incapacidade da vítima”, diz um trecho da manifestação do MP.
A advogada Thais Rego Monteiro, especialista em crimes ligados à liberdade sexual, explica a argumentação da Promotoria.
“Reconhece-se a “conjunção carnal e atos libidinosos diversos”, mas no entendimento do promotor, não houve conhecimento do acusado acerca da incapacidade da Mariana. Por isso, o MP pediu em alegações finais a absolvição por atipicidade, fundada em erro sobre elemento constitutivo do tipo. Nesse sentido, a argumentação seguiu apontando que não há previsão legal de estupro culposo. Aqui a discussão da capitulação é relevante justamente por conta da consciência (ou não) do acusado sobre a vulnerabilidade da vítima. Muitos destacam, para discordar do MP, a dúvida que existiria acerca da vulnerabilidade da vítima, e a maior parte dos argumentos criam uma presunção de vulnerabilidade. O MP, nesse sentido, entendeu que a presunção é a de inocência, e em face da dúvida, pediu a absolvição”, analisou.
Apesar da confusão técnica sobre o ‘estupro culposo’, especialistas consultados pelo Estadão afirmam que a argumentação relacionada ao caso não é ‘inovadora’, mas sim a ‘velha história’ de, em casos de violência de gênero, a palavra da mulher ser colocada em xeque e ‘medida de acordo com sua conduta sexual e determinada ‘régua moral’.
A indicação é da professora de Direito Penal Maíra Zapater, que aponta ‘salto comparativo’ na fundamentação usada pelo Ministério Público para se manifestar pela absolvição do empresário. Isso porque, o promotor suscitou que, em casos de estupro de vulnerável envolvendo menores de 14 anos, alguns teóricos argumentam que a ‘confusão acerca da idade pode eliminar o dolo (não se pune por culpa)’. Nessa linha, Oliveira indagou se a interpretação não poderia se aplicar ao caso daquele ‘que mantem relação com pessoa maior de idade cuja suposta incapacidade não é do seu conhecimento’.
“Não é criação de uma nova tese, mas a apresentação do argumento de sempre. Ai acho que não dá para desconsiderar tudo o que o juiz parece ter levado em consideração naquela audiência, com as falas do advogado de dizer que ela tirava fotos sensuais, falar que era o ganha-pão dela. Ou seja tem todo um estereótipo que foi colado em cima da imagem dela de vítima que nada tem a ver com o crime. A relação sexual aconteceu isso é consenso, mas o que se duvida é de que ela estivesse bêbada e que o rapaz tivesse condição de perceber isso. É a palavra da vítima que esta sendo colocada em xeque”, afirma Maíra.
A indicação da professora faz referência às imagens da audiência do caso, divulgadas pelo site The Intercept, nas quais o advogado Claudio Gastão Filho, que representa o empresário André Camargo Aranha chega a dizer que Mari Ferrer tem como ‘ganha pão a desgraça dos outros’. Na gravação, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, não interrompe a fala do advogado e o promotor Thiago Carriço de Oliveira pergunta se a influenciadora não queria ‘beber uma água’.
Em determinada altura do vídeo, a jovem chegou a implorar por respeito.
“Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, pede chorando.
Na mesma linha de Maíra, a promotora Valeria Scaranse, coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, diz que o desmerecimento da palavra de vítimas em casos de violência é uma estratégia recorrente. “Há muitas ‘marianas’ espalhadas pelo nosso país”, diz.
Segundo a promotora, em muitos casos de violência de gênero, a estratégia de defesa consiste justamente em desmerecer a palavra da vítima.
“Isso acontece não só em casos de estupro, mas também de agressões, feminicídios. Há muitas marianas” espalhadas pelo nosso país. Em uma sociedade machista, a violência contra a mulher é estrutural e estruturante. Esse caso expõe a nossa sociedade e a necessidade de se definir o que é estratégia de defesa e o que é ataque às vítimas, sua privacidade e intimidade devem ser preservados”, aponta.
A coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo aponta ainda que há no Brasil, várias normas que protegem a mulher. “A Constituição prevê a dignidade da pessoa humana, a Lei Maria da Penha fala em ‘direito ao respeito’ e a lei processual diz que a vítima deve ser preservada durante o processo. Esses direitos têm que prevalecer sobre o direito de defesa, sob pena de o processo se transformar em instrumento de revitimização, ao invés de um instrumento para realização da Justiça”, explica.
A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB Nacional também divulgou uma nota afirmando que o caso de Mariana não é fato isolado em julgamentos de crimes sexuais e mostra a distância que ainda existe entre os direitos das mulheres no papel e na prática.
“Os números mostram que 75% das vítimas de crimes sexuais em nosso país não denunciam. E, por mais que sejam feitas campanhas estimulando que as mulheres denunciem, esse número não mudará enquanto o sistema de justiça brasileiro não mudar estruturalmente como atua no julgamento dos crimes sexuais”, diz o texto.
A Comissão ainda frisa que a violência de gênero não pode ser usada como estratégia de defesa e que o Ministério público e a magistratura não podem praticar violência de gênero no curso do processo nem quedar omissos diante dela. “A injustiça cometida contra Mariana Ferrer também é contra todas as mulheres do Brasil. Não podemos aceitar esse tipo de postura que criminaliza a vítima”, afirmam as advogadas.
Maíra ressalta ainda que o advogado que humilhou Mari Ferrer não só pode ter ferido o Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, mas também pode ter incorrido em dano moral. Segundo a professora, o profissional não poderia ter usado sua ‘conduta’ fora do caso como elemento do processo.
“Não é elemento de prova do processo a conduta dela fora do caso. Não interessa como é a vida sexual dela. Ela não teria que responder perguntas, como ele dizer ‘ você é virgem mas você faz isso no instagram’ e ela ter que responder algo do tipo ‘quem é virgem não é freira’. Ou seja tendo que dar satisfações da sua vida sexual de como ela exerce sua sexualidade como se isso fosse elemento de prova em um processo”, aponta a professora.
A seccional de Santa Catarina da Ordem dos Advogados do Brasil notificou Cláudio Gastão da Rosa Filho para investigar possíveis desvios éticos.
A advogada e professora do IDP Mônica Sapucaia Machado defende ainda que caso de Mari Ferrer expõe o ‘machismo como estratégia processual’.
“O pedido de absolvição do Ministério Público em consonância com o vídeo publicado do julgamento nos mostra como para o Judiciário a mulher ainda é o outro. Mais do que a base de sustentação da decisão o que impressiona é o silêncio do MP e do juízo enquanto o advogado de defesa humilha a vítima, retirando sua condição sujeito de direito. Os homens desse processo autorizaram que a vítima continuasse a ser violentada”.
Criminalistas consultados pelo Estadão apontam ainda ‘omissão’ na postura dos agentes envolvidos na audiência do caso Mari Ferrer. A Corregedoria Nacional de Justiça abriu procedimento disciplinar para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos.
Para o advogado Daniel Gerber, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, falhou ao permitir que uma vítima fosse submetida a um ataque por parte da defesa. “Ataque este não previsto na lei processual penal. Não existe nenhum artigo que ordena, que regula ou que faz menção a debates entre advogado e vítima”, explicou.
O advogado Adib Abdouni diz ainda que o magistrado permitiu um ‘inescusável quadro de constrangimento e humilhação’ e que o advogado de Aranha ‘dissociou-se flagrantemente do seu dever de urbanidade’.
COM A PALAVRA, O MINISTÉRIO PÚBLICO DE SANTA CATARINA
A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado.
Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime.
Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de “estupro culposo”, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.
O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.
Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do Advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.
O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente.
COM A PALAVRA, O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA
O caso está sendo devidamente apurado em procedimento instaurado na Corregedoria-Geral da Justiça, em 30/9/2020, por meio do Ofício n. 125/2020/CGJUFR/DEV/SNPM/MMFDH, datado de 25/9/2020, oriundo da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, recebido naquele Órgão Correicional em 29/9/2020, às 18:31h. Ressaltamos que a apuração dos fatos envolvendo a conduta do advogado Claudio Gastão Filho não se encontra dentre as atribuições deste Órgão, que se restringem aos atos praticados pelos membros do Poder Judiciário.
COM A PALAVRA, OS DEMAIS CITADOS
A reportagem busca contato com os citados. O espaço está aberto para manifestações.