Em 4 Estados, 2a onda é pior que a primeira
Foto: Ari Dias/AEN
Em 13 de novembro, antevéspera das eleições municipais, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mais uma vez, minimizou a pandemia do novo coronavírus. Na saída do Palácio do Planalto, classificou a eventual segunda onda de Covid-19 como uma “conversinha”. Em Curitiba, naquele mesmo dia, os relatórios sugeriam que de conversinha a segunda onda não tinha nada. Com a cidade sob bandeira amarela, bares lotados e comércio funcionando a todo vapor, a taxa de transmissão tinha saltado a 1,25 (ou seja, em média, cada quatro pessoas contaminavam outras cinco). De lá para cá, a situação piorou: a média móvel saltou de 737 novos casos por dia para 1.246. A segunda onda na capital paranaense já é bem mais aguda que a primeira, com a média móvel de casos 127% maior em relação ao pico inicial, registrado no município na semana de 24 de julho. Curitiba já passou dos 100 mil infectados e dos 2 mil mortos – número de óbitos praticamente igual ao do Paraguai e dezessete vezes o do Uruguai. Nesta segunda-feira (21), a taxa de transmissão no Paraná chegou a 1,35 – a mais alta do país. O estado acumula 7.271 mortes – número maior que a população de 165 de seus 399 municípios.
“A gente percebeu que as pessoas cansaram. Em março, todo mundo se recolheu, e o vírus ainda nem era comunitário em Curitiba. Depois de setembro, quando veio a primavera, o povo foi para rua e perdeu o medo do vírus. Então tem o cansaço e a perda do medo, além da questão econômica. O fim do ano é a oportunidade de ganho de muitas pessoas”, justificou a secretária de Saúde de Curitiba, Márcia Cecília Huçulak.
Curitiba não está na crista da segunda onda sozinha: a capital acompanha o movimento do estado. O Paraná é, hoje, a unidade da federação em que o vigor da nova onda é mais evidente em comparação à primeira. No primeiro momento mais agudo da doença, a média móvel de novos casos no estado chegou ao pico de mais de 2 mil novos casos por dia, na semana de 2 de agosto. O gráfico seguiu em um platô, com os novos registros caindo a partir do início de outubro. Os casos voltaram a subir. A partir do início de novembro, a média móvel saltou de menos de 1 mil para os atuais 3.039, segundo o boletim epidemiológico da última sexta-feira (17). “São nove meses de pandemia. Ao longo do tempo, ninguém imaginou que [a pandemia] pudesse se estender tanto, mas o fato é que nossas UTIs estão cheias. Vínhamos em um equilíbrio, mas os feriados e o período pré-eleitoral contribuíram para o aumento da velocidade de contaminação”, lamentou o secretário de Saúde do Paraná, Beto Preto.
Outros quatro estados – Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul – enfrentam movimento parecido: chegaram a dezembro em uma segunda onda bem definida, que já supera a primeira em número de casos. O Rio de Janeiro também observou uma alta acentuada nos novos registros diários, mas a realidade fluminense é diferente: o estado passou por diversos altos e baixos, e não por duas curvas bem definidas. O gráfico da média nacional também sinaliza que o Brasil está perto de um novo pico da pandemia, evidenciando a força da segunda onda. Apesar dos índices em ascensão, na última quarta-feira (16), Bolsonaro voltou a adotar um discurso negacionista. Em um culto de ação de graças no Planalto, ele falou em um tom que lembrava um sermão religioso.
“Quem esperava, depois de meses difíceis, chegarmos a uma situação de quase normalidade, ainda em 2020? A quem devemos tudo isso? Em primeiro lugar, a ele [Deus]. E depois a vocês, que estão aqui, os ministros incluídos”, pregou. Naquele mesmo dia, o Brasil ultrapassaria a marca de 7 milhões de pessoas infectadas e de 183,8 mil mortos – 968 óbitos registrados somente naquela quarta-feira. Na quinta-feira (17), o país voltou a superar a barreira de 1 mil mortos num único dia.
Para infectologistas e especialistas em gestão da saúde, o comportamento do Paraná e dos outros quatro estados nas duas ondas bem definidas está diretamente relacionado a um fator: o relaxamento das medidas restritivas e de isolamento social. Ao longo da primeira onda, essas políticas foram determinantes para que a pandemia não ganhasse força e para que houvesse o achatamento da curva. Essas políticas, no entanto, foram relaxadas ou suprimidas “cedo demais”, quando o número de casos e a taxa de transmissão ainda eram expressivos – principalmente, no período pré-eleitoral. Logo, a curva voltou a subir, dando início à segunda onda, que já partiu de um patamar elevado.
“Não se aguardou que o número de casos estivesse em um nível realmente baixo. Aí, quando começou haver a liberação do isolamento, partimos para uma nova ascendência, a partir de um basal mais alto. Portanto, a transmissão se dá mais rapidamente. A gente se empolgou com a descida”, disse o médico infectologista Moacir Pires Ramos. “A vacina está quase aí. Não era para ter isso. Esses óbitos que estão ocorrendo eram totalmente evitáveis, a partir das medidas de controle. Os gestores adotaram um discurso de negação no período da eleição. Houve o afrouxamento das medidas de distanciamento e de isolamento, e o vírus voltou a circular. Mesmo com a ascensão, as medidas adotadas foram muito soft”, avaliou Adriano Massuda, professor da Fundação Getulio Vargas, ex-pesquisador de Harvard e ex-secretário de Saúde de Curitiba.
O relaxamento era tão evidente que até autoridades se viram em eventos com aglomeração. Na noite de 15 de novembro, assim que foi finalizada a apuração confirmando sua reeleição em primeiro turno, o prefeito de Curitiba, Rafael Greca (DEM), participou de uma festa em um de seus comitês de campanha. Uma foto e um vídeo divulgados pelo portal Plural mostram dezenas de pessoas celebrando a vitória de Greca, corpo a corpo, muito próximas uma das outras. O prefeito aparece em uma foto, sem máscara, em uma espécie de palco improvisado. Àquela altura, vigorava o Decreto 1490, publicado oito dias antes, que estabelecia que o distanciamento mínimo em espaços de reuniões, como convenções e congressos, deveria ser 1,5 metro.
Na última semana, o Grupo de Pesquisa Sociologia e Políticas Sociais, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), divulgou um estudo em que correlaciona as medidas de isolamento social com a evolução da pandemia em Curitiba e nos oito municípios mais populosos da região metropolitana. Os pesquisadores elaboraram uma linha do tempo, em que cruzam as datas de decretos que determinam medidas de restrição ou de afrouxamento com o número de casos e óbitos até agosto. A conclusão é de que a curva se mostrou mais aguda após o relaxamento de políticas preventivas. A prévia da segunda parte – com os dados até dezembro – segue pelo mesmo caminho.
“Não houve uma ação coordenada entre toda a região metropolitana de Curitiba. Cada um fez do seu jeito. E quando cada um tenta acertar sozinho, todo mundo erra. O que se percebe é que cada vez que se flexibiliza, quinze dias depois temos alta dos casos. Por que não está pior? Basicamente, porque os professores e servidores públicos estão trabalhando de casa. Senão seria o caos”, disse a professora Maria Tarcisa Silva Bega, coordenadora do grupo de quinze pesquisadores. “A ideia de federação também não funcionou. O governo federal não só se omitiu como atrapalhou estados e municípios. Houve uma escolha pela morte, de um governo genocida”, acrescentou.
Em 2 de dezembro, o governo do Paraná instituiu o toque de recolher entre as 23 horas e as 5 horas. Proibiu confraternizações ou eventos presenciais com mais de dez pessoas – excluídas da contagem crianças ou adolescentes de até 14 anos. Na última quinta-feira (17), o decreto foi prorrogado até 28 de dezembro. O objetivo da Secretaria de Saúde do Paraná é de que a medida dê um alívio ao sistema de saúde, cuja taxa de ocupação de UTI adulto gira em torno de 90% nas regiões Leste (onde estão Curitiba e região metropolitana), Oeste e Noroeste. Em 13 de dezembro, chegou a haver fila de espera de 81 leitos – 13 para UTI e 68 para enfermaria – na rede estadual.
Desde 27 de novembro, Curitiba está sob bandeira laranja – ou de uma bandeira laranja “light”, como definem especialistas. O comércio de rua e shoppings estão abertos (exceto aos domingos), assim como restaurantes, feiras e cinemas. Os bares foram fechados, mas a prefeitura permitiu que funcionassem como restaurantes: com os clientes atendidos sentados. Em 14 de dezembro, a Câmara aprovou um projeto de autoria do vereador Pier Petruziello (PTB), líder do prefeito, que classifica as academias de ginástica como serviço essencial. Com isso, esses estabelecimentos, que chegaram a ser fechados ao longo da pandemia, continuam funcionando livremente.
Mesmo em meio à nova onda, flagras de aglomerações e de transporte público lotado têm se tornado comuns, além de outros casos de maior repercussão. Em 11 de dezembro, por exemplo, um evento de patinação promovido pela filha do deputado estadual Coronel Lee (PSL), em Cascavel, Oeste do Paraná, foi encerrado pela Polícia Militar (PM), após denúncias. Em Londrina, Norte do Estado, uma noiva pediu à Justiça autorização para realizar sua festa de casamento, para 120 pessoas, argumentando que os serviços já tinham sido pagos – mais de 23 mil reais. O pedido foi negado e o juiz Marcos José Vieira assinalou que “o interesse da coletividade em ver observadas as medidas de contenção do novo coronavírus” deve prevalecer sobre o interesse particular.
Em meio ao maior fluxo nas ruas e aos episódios de furo ao distanciamento, os agentes públicos têm feito apelos à colaboração da população. “O comércio está aberto. O pedido é que todo comerciante seja um fiscal desse processo. Se as lojas ficarem cheias, podem ser focos de doenças para outras pessoas”, disse Beto Preto. Márcia Huçulak também tem dado declarações recorrentes, apontando a responsabilidade da população pelo relaxamento nos cuidados de isolamento. Questionada se as medidas não têm sido insuficientes para conter a disseminação do vírus, a secretária de Curitiba comparou a conjuntura a um pássaro de duas asas, em que uma delas é a saúde e a outra, a economia.
“A gente tentou fazer que o nosso pássaro equilibrasse essas duas asas e voasse”, disse. “Tem a turma do lockdown, que quer que feche tudo em casa. Em geral, são aqueles da ‘vida ganha’, que está com seu salário, fazendo home office. É bem fácil pra essa turma dizer para sociedade que fique em casa. Desculpe, mas eu sou bem direta. Agora, para a diarista, para o garçom do restaurante, para a moça do shopping, é muito difícil. Para eles, é ‘a vida como ela é’”, acrescentou.
Sem citar especificamente Curitiba ou o Paraná, os especialistas em saúde, por sua vez, criticam gestores públicos que terceirizam à população a responsabilidade pelo aumento do contágio. Massuda vê esse comportamento generalizado em todas as esferas públicas, mas também na iniciativa privada. Ele lembra a declaração do empresário Junior Durski, da rede Madero, que no início da pandemia disse que “o Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”. “O empresariado também tem uma visão negacionista. Mas ao invés de falar grosso com o empresariado, o poder público fala grosso com a população”, disse. “O poder público é o único agente que tem poder de decisão perante o coletivo. Transferir a responsabilidade é tentar se eximir da culpa. O presidente faz isso”, observou.
“A população está esgotada, mas não tem obrigação de dominar a questão técnica. As instituições têm que orientar a população e tomar as medidas com base na ciência e com vistas à preservação da população. Eu entendo o embaraço do gestor público em relação à economia, mas no ponto que está, estamos falando de milhares de vidas”, disse Pires Ramos. “Eu espero que a História pelo menos cobre a responsabilidade das pessoas pelos fatos, no futuro”, completou.
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