Prefeitos eleitos lidarão com apagão no transporte público
Foto: Reuters
Com prejuízos acumulados de R$ 7,18 bilhões até outubro e demanda ainda reduzida a patamar entre 40% e 60% da média histórica nas capitais e regiões metropolitanas — após chegar a 20% nas primeiras semanas da crise do coronavírus —, o setor deve buscar junto ao poder público o reequilíbrio de contratos na rodada de reajustes tarifários que tem início em janeiro.
O provável aumento de tarifas deve acontecer num momento em que os brasileiros estarão com o orçamento apertado pelo fim do auxílio emergencial, desemprego recorde e inflação em alta.
Em 2013, também primeiro ano de mandato de prefeitos, o reajuste de passagens de ônibus foi o estopim para a onda de protestos que combaliu a popularidade da classe política e criou o caldo de cultura para o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) dois anos depois.
Em 2021, o aumento de casos e de internações em meio à pandemia deve ser um entrave a mobilizações massivas como as de 2013, avaliam analistas políticos.
Mas, para o setor de ônibus e especialistas em transporte público, a pandemia agravou o quadro de desequilíbrio financeiro do setor e deveria ser usada como uma oportunidade para que o modelo de geração de receitas baseado principalmente no pagamento de tarifas pelos usuários seja rediscutido.
“O setor já vinha desequilibrado antes da pandemia, com uma queda acentuada do número de passageiros transportados nos últimos cinco anos, da ordem de 26%”, destaca Otávio Cunha, presidente-executivo da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos).
Segundo o representante do setor, essa perda de usuários nos últimos anos se deveu a fatores como a forte alta da inflação durante o governo Dilma — com o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) superando os 10% em 2015 —, que resultou em reajustes tarifários elevados; o aumento acentuado do desemprego em meio à crise econômica iniciada em 2014; além da perda de velocidade dos ônibus devido ao aumento dos congestionamentos.
Um outro fator para a perda de passageiros foi o avanço do transporte por aplicativos.
“O transporte sob demanda começou a concorrer com o transporte público nas pequenas distâncias, exatamente nas áreas onde há grande concentração de demanda”, diz Cunha.
“Essas viagens curtas nas regiões centrais ajudavam a equilibrar a rede de transporte público, porque as linhas de grandes distâncias — aquelas vindas das periferias — normalmente são deficitárias, mas são socialmente necessárias.”
Em meio ao quadro de perda estrutural de passageiros e desequilíbrio financeiro do sistema, veio a pandemia. E, com ela, uma queda inicial em março de 80% das viagens realizadas, que vem se atenuando ao longo dos meses.
No entanto, entre setembro e outubro, a média de redução das viagens ainda estava entre 50% e 60% nas capitais e regiões metropolitanas, segundo dados da NTU. Ao mesmo tempo, o setor teve que manter a oferta de ônibus elevada, para garantir o cumprimento das exigências de distanciamento social impostas pelas normas sanitárias.
Neste cenário, até outubro, 13 operadoras de ônibus já interromperam atividades no país, seja através de suspensão temporária ou de encerramento permanente de operações. Em quatro casos, o poder público precisou assumir a operação dos serviços. E, apenas entre as empresas associadas à NTU, quase 6 mil postos de trabalho foram fechados.
Uma ajuda de R$ 4 bilhões prometida pelo governo ao setor em maio foi aprovada pelo Senado apenas em meados de novembro (PL 3.364/2020) e ainda aguarda sanção presidencial.
Segundo a NTU, a injeção de recursos será fundamental para as empresas pagarem o 13º dos funcionários este ano, do contrário, o pagamento poderá ser postergado para 2021, o que tem potencial para gerar paralisações de trabalhadores.
O setor não vê perspectivas de recuperar sua demanda histórica devido a diversos fatores: a exigência de menor lotação dos ônibus; a redução de circulação imposta pela pandemia; a perspectiva de uma atividade econômica deprimida ainda por um período longo; e a adoção do home office de maneira permanente por diversas empresas.
“Temos certeza absoluta de que isso não volta mais”, diz Cunha. “O setor de transporte público terá que conviver com uma demanda mais rarefeita.”
Frente a esse quadro, os operadores de ônibus urbanos trabalham para enviar ao governo federal ainda em dezembro uma sugestão de reestruturação do transporte público no pós-pandemia.
“Os ônibus hoje são financiados por passageiro transportado, com algumas exceções, caso de São Paulo e Brasília, em que o setor é em parte subsidiado pelo poder público”, observa Cunha, destacando ainda que a taxa de ocupação considerada pelos órgãos públicos para cálculo da tarifa é de seis passageiros por metro quadrado no horário de pico, o que não poderá se manter na nova realidade.
Assim, a NTU deve propor ao governo que a remuneração do setor seja feita pelo custo de operação, com o risco de demanda ficando a cargo do poder público, tendo como contrapartida o cumprimento de metas de qualidade pelas empresas.
A entidade reivindica ainda a desoneração da cadeia produtiva do transporte; que o poder público arque com as gratuidades para idosos e estudantes, hoje rateadas entre os usuários que pagam a tarifa cheia na maior parte do país; e que o financiamento do setor possa contar com fontes de recursos extra tarifárias, como um aumento da taxação para usuários de transporte individual.
Para Luis Antonio Lindau, diretor de cidades do instituto de pesquisas WRI Brasil e um dos fundadores da Anpet (Associação de Pesquisa e Ensino em Transportes), esse último ponto é o mais importante para um redesenho do setor de ônibus urbanos no pós-pandemia.
“Num cenário em que poucas são as cidades que destinam subsídios ao transporte coletivo, urge começar a discutir as externalidades negativas do automóvel privado, começar a cobrá-los e transferir isso para um fundo que possa ajudar a remunerar o transporte coletivo.”
O especialista destaca que as grandes cidades do Norte global têm nas receitas extra tarifárias o principal componente de geração de recursos, diferentemente do Brasil.
“Não existe país no mundo desenvolvido que é tão permissivo com o automóvel”, diz o especialista. “Como no passado se criou a tarifa única, em que os passageiros de linha curta acabam pagando pelos passageiros de linha longa, agora é preciso encontrar um novo equilíbrio para o financiamento do transporte público, chamando novos atores para a mesa, incluindo o automóvel nessa captação de receitas extra tarifárias.”
Rafael Cortez, cientista político da Tendências Consultoria, avalia, no entanto, que o ambiente político é desfavorável para as mudanças regulatórias sugeridas pelos especialistas. “Essa não é uma agenda prioritária para o governo em 2021, cuja pauta deve ser dominada pelas questões fiscais”, diz o analista.
Assim, a bomba deve mesmo cair no colo dos prefeitos eleitos. Mas Cortez não acredita que uma possível onda de reajustes tarifários resulte em protestos massivos como os de 2013.
“Ainda que exista um descontentamento forte, as restrições impostas pela pandemia devem evitar mobilizações mais significativas, especialmente se seguirmos na tendência atual de aumento de casos e internações”, afirma, lembrando ainda que, em 2013, os protestos foram inflados pelo descontentamento com os gastos públicos para a realização da Copa do Mundo no Brasil e pelo início de uma rejeição ao governo petista.
Em São Paulo, berço dos protestos naquele ano, o prefeito reeleito Bruno Covas (PSDB) disse em entrevista no programa Roda Viva (em 23/11) que não deverá ser necessário um reajuste das tarifas de ônibus no município em 2021, devido à inflação baixa — até outubro, o IPCA acumulava alta de 3,92% em 12 meses e a expectativa do mercado é de que o indicador encerre o ano com avanço de 3,54%, segundo a mediana do boletim Focus, do Banco Central.
Os subsídios ao setor esse ano devem, no entanto, chegar a R$ 3,1 bilhões, superando em R$ 850 milhões o orçamento previsto, conforme nota técnica do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.
Segundo Fabio Romão, analista de inflação da LCA Consultores, cada 10 centavos de aumento nas tarifas de ônibus de São Paulo gera um incremento de 0,015 ponto percentual no IPCA, índice oficial de inflação do país. Quanto ao Rio de Janeiro, o acréscimo é de 0,006 ponto.
Para 2021, Romão espera uma alta de 3,6% do IPCA, considerando como hipótese aumentos nos ônibus urbanos de São Paulo (+4,7%) e do Rio de Janeiro (+6,2%).
Outras casas de análise já veem a inflação até mais alta no ano que vem. A MB Associados, por exemplo, projeta avanço de 3,8% do IPCA em 2021, enquanto o Credit Suisse já fala em uma inflação em alta de 4% no próximo ano, acima da meta de 3,75% estabelecida pelo CMN (Conselho Monetário Nacional).
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