Extrema-direita se infiltrou nas Forças Armadas e nas polícias
Foto: Julio Cortez/AP
Durante toda a Guerra Fria, os comandantes de Forças Armadas e de órgãos de segurança do Ocidente viviam preocupados diante da influência comunista em suas unidades. Diziam que o problema era ter em um posto-chave algum oficial identificado com as ideias do inimigo em razão do risco para a segurança de suas forças. A situação seria pior em caso de guerra em sociedades divididas, como a italiana, onde um embate com o Pacto de Varsóvia podia facilmente reacender o conflito civil que o país conhecera nos anos finais da 2.ª Guerra Mundial.
No Brasil, o medo da infiltração comunista e da constituição de células do PCB no Exército se nutria da lembrança da rebelião de 1935 e do impacto do caso do capitão Carlos Lamarca, do 4º Regimento de Infantaria. Os relatórios periódicos de informação produzidos pelos generais Tamoyo Pereira das Neves e Sérgio Augusto de Avellar Coutinho nos anos 1980 mostram o grau de preocupação com a agitação nos quartéis e a vigilância mantida pelo Centro de Informações do Exército (CIE).
O relatório de fevereiro de 1989, assinado por Coutinho, fazia um balanço sobre a participação de militares da ativa e da reserva nas eleições municipais de 1988. Ele mostrava que 40 oficiais e praças haviam se apresentado aos eleitores – 18 da ativa, entre os quais o capitão Jair Bolsonaro. Com o atual presidente, outros 21 oficiais haviam se candidatado (nove da reserva). Para o general Coutinho, o quadro mostrava que a política sensibilizava pouco os militares da ativa, onde haveria “certa imunidade para aliciamento político”. “Entretanto, estes dados não indicam a impossibilidade do aliciamento ideológico, que pode estar ocorrendo clandestinamente dentro e fora dos quartéis.”
A afirmação do general era seguida por informações sobre o ataque ao quartel do 23.º Regimento de Infantaria Blindada, em La Tablada, na Argentina, onde um grupo esquerdista liderado pelo guerrilheiro Enrique Gorriarán Merlo tentou tomar a unidade. Entre os assaltantes estava a brasileira Aldira Pereira Nunes, uma das 39 pessoas mortas na ação. O movimento comunista era vigiado e monitorado pelos militares. E as manifestações de grupos de esquerda continuaram a ser alvo de vigilância de militares da inteligência, como demonstrou em 2016 o trabalho do capitão William Pina Botelho, o Balta.
Na Europa e nos Estados Unidos outro tipo de infiltração preocupa chefes militares e políticos: a de ativistas de extrema-direita. Eles são hoje o principal perigo para a democracia em países como Alemanha, Espanha e Estados Unidos. Foi isso que levou a Alemanha a dissolver uma companhia do Comando de Forças Especiais (KSK), uma tropa de elite das Forças Armadas alemãs. A medida foi anunciada pela ministra da Defesa do país, Annegret Kramp-Karrenbauer, em razão do envolvimento de integrantes da unidade com extremistas da direita alemã.
As Forças Armadas e as polícias alemãs mantêm investigações permanentes sobre a possível radicalização de seus integrantes. No caso da companhia dissolvida, seus homens organizaram uma festa de despedida para um comandante na qual fizeram a saudação nazista. Em 2017, o governo alemão colecionava 391 investigações sobre infiltração da extrema-direita no Exército. No mesmo ano, o Alternativa para a Alemanha (AfD, partido da extrema-direita, obteve 12,6% dos votos e se tornou a 3ª maior bancada da Câmara baixa, o Bundestag, com 94 deputados.
No começo de dezembro, o Ministério da Defesa espanhol enviou ao Ministério Público cópias de mensagens de um grupo de WhatssApp de militares do país nas quais se discutia um golpe. Em novembro, 73 deles haviam enviado uma carta ao rei Felipe VI declarando se oporem ao governo espanhol, liderado pelo socialista Pedro Sánchez. Entre as mensagens, havia uma do major-general Francisco Beca: “Não há outra opção senão começar a fuzilar 26 milhões.” O grupo foi denunciado por outro militar, que acusou os colegas de serem franquistas influenciados pelo Vox, o partido da extrema-direita espanhola, que obteve 15% dos votos na última eleição e fez 52 parlamentares.
Nos Estados Unidos, a infiltração de grupos da extrema-direita ligados ao presidente Donald Trump voltou ao debate depois da facilidade com que os extremistas invadiram e vandalizaram o prédio do Capitólio. Havia a suspeita de que policiais e militares de folga tivessem participado da ação. Uma das vítimas fatais da baderna foi a trumpísta e veterana da Força Aérea Ashli Babbit, morta pela polícia no ataque. Nos EUA não existe – como na Alemanha – um controle permanente nas forças policiais e nas militares para lidar com o fenômeno.
No Brasil, a infiltração da extrema-direita nas forças policiais e nas Forças Armadas é promovida pelo bolsonarismo. O guru Olavo de Carvalho ofereceu seus cursos online de graça a policiais e a militares. Enquanto alguns militares ainda se preocupam com movimentos sociais e organizações não governamentais, os quartéis são invadidos a partir da base pelo radicalismo bolsonarista, primo-irmão do extremismo trumpista. Em São Paulo, as polícias mantém um acompanhamento da ação de grupos de ódio e de extremistas. A Polícia Civil, por meio de uma delegacia, e a PM pelo Departamento Político de seu Serviço de Inteligência.
O foco, porém, ainda é o antigo extremismo, aquele de grupos punks e skinheads ou neonazistas. Há, porém, novas facções. Eles se articulam na internet e divulgam suas ideias, como o QAnon, cujos membros participaram do assalto ao Capitólio, onde cinco pessoas morreram – entre elas o policial Brian Sicknick, que tentava conter os vândalos. O grupo se transformou em um centro irradiador de radicalismo e teorias conspiratórias em todo mundo. Não há notícia ainda que a Contrainteligência ou as Corregedorias da Polícia tenham aberto investigações para apurar a infiltração desses extremistas em suas fileiras. O mesmo vale para as Forças Armadas.
Esses grupos podem encontrar um terreno fértil na simpatia que o radicalismo bolsonarista desperta entre policiais e militares. É ele que explicaria a razão pela qual um policial militar se preocupa em fotografar a Kombi da Pastoral dos Povos de Rua, da Arquidiocese de São Paulo, no que foi compreendido como uma tentativa de constranger os assistentes sociais que distribuíam pães a moradores de rua, no sábado, dia 9, na Praça Princesa Isabel, no centro. Em vez de se dedicar a reprimir traficantes na vizinha cracolândia, o policial gastou seu tempo e o dinheiro dos impostos do contribuinte com o qual é pago para controlar os agentes da pastoral. Talvez a turma dos direitos humanos seja mais perigosa do que os bandidos do PCC.
Essa conivência com o extremismo também estava no policial que abraçou uma manifestante bolsonarista que carregava um taco de beisebol em uma passeata na Avenida Paulista em vez de apreender o objeto e identificar a suspeita. Ou ainda no policial que se sentiu à vontade para postar em suas redes sociais que ia descer a borracha em manifestantes contrários a Bolsonaro em São Paulo. Denunciado, o policial foi afastado do trabalho naquele dia. Foi pouco. Um policial sem isenção e partidário não serve para a defesa da sociedade e da democracia. Torna-se braço-armado de uma facção extremista que ameaça o País com baderna igual à americana nas eleições de 2022.
O mais grave na desatenção das forças de segurança em relação aos extremistas de direita é o fato de que, nos últimos anos, eles passaram a disputar com grupos islâmicos a primazia das ações terroristas ao redor do mundo. Em 2011, um deles matou 77 pessoas em um acampamento de jovens na Noruega. Em 2019, outro assassinou 51 pessoas na Nova Zelândia. Nos Estados Unidos, supremacistas brancos foram responsáveis por massacres em uma igreja em Charleston, em 2015, em uma sinagoga em Pittsburgh, em 2018, e em um supermercado em El Paso, em 2019. Os alvos eram muçulmanos, negros, judeus e hispânicos. Antes da eleição nos EUA, o FBI desbaratou um plano de extremistas para sequestrar a governadora democrata de Michigan, Gretchen Whitmer.
Não adianta dizer que a democracia não está em perigo no Brasil, se a ideia que alguns dela têm é meramente instrumental. A oposição não pode desempenhar apenas um papel simbólico, e a alternância de poder não deve ser tratada como ameaça ou risco de anomia. Achar que o perigo vem de um comunismo internacional que não existe mais ou de uma Guerra Fria do século passado é uma luta contra moinhos de vento, enquanto outra ameaça – real – deixa uma fila de cadáveres mundo afora. Se os chefes militares e policiais querem manter a política fora dos quartéis, devem começar a se preocupar com a infiltração da extrema-direita em suas organizações. Ela pode arrastar o País ao caos em nome dos delírios de terroristas que pretendem entregar o poder a promotores de badernas armadas.
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