Japão descobriu vírus “brasileiro” antes do Brasil
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No dia 10 de janeiro de 2021, o Japão notificou o Brasil de que quatro viajantes com sintomas de covid-19 que desembarcaram em Tóquio vindos do Amazonas estavam infectados com uma nova variante do Sars-CoV-2.
Segundo as autoridades sanitárias japonesas, a nova cepa continha 12 mutações, entre elas uma alteração na proteína que permite a entrada do vírus nas células humanas — e que foi observada em novas linhagens identificadas no Reino Unido e na África do Sul possivelmente mais contagiosas.
O Brasil sequenciou em tempo recorde o primeiro genoma do coronavírus que circulava no país — cerca de 48 horas após a confirmação do primeiro caso, em 26 de fevereiro.
Quase um ano depois, o país tem estrutura e pessoal qualificado, dizem os cientistas, mas não possui recursos para fazer uma vigilância genômica que acompanhe em tempo real as mutações do vírus.
O virologista Felipe Naveca, pesquisador do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), referência na análise genômica no Amazonas, onde foi identificada a variante que tem preocupado especialistas, afirma que não existe uma rotina diária de sequenciamento genético na região.
“Para fazer isso teríamos que ter uma equipe dedicada só ao sequenciamento, com automação e investimentos muito maiores do que há hoje”, diz ele.
“Caso contrário, todo o recurso acabaria em 3 meses, quando a nossa proposta é sequenciar durante o maior tempo possível e mostrar as mudanças ao longo desse tempo.”
Em paralelo ao processamento de diagnósticos de testes de PCR, também feito no instituto, a equipe sequencia 96 genomas de alta qualidade a cada duas ou três semanas.
A África do Sul, que tem cerca de um quarto da população brasileira e tem sido considerado um exemplo bem sucedido de vigilância, sequencia entre 50 e 100 genomas de coronavírus por semana.
O Reino Unido faz cerca de 10 mil sequenciamentos por semana e se prepara para dobrar esse número nos próximos meses. O país tem de longe a maior capacidade de processamento, respondendo por cerca de 200 mil entre os 400 mil genomas compartilhados por cientistas de todo o mundo na plataforma Gisaid.
Não existem dados consolidados sobre o volume sequenciado por semana no país ou a capacidade de processamento.
Existem algumas iniciativas que caminham em paralelo — uma delas é a rede genômica da Fiocruz, que conta com instituições em 11 Estados e analisa amostras de todo o país.
A chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Marilda Siqueira, que atua como Centro de Referência Nacional em vírus respiratórios junto ao Ministério da Saúde, afirma que os laboratórios da rede têm realizado sequenciamentos desde o início da pandemia — uma expertise que vem em parte da vigilância genômica do vírus influenza feita há anos pelo grupo.
Dada a gravidade da pandemia no país, entretanto, o trabalho tem muitas vezes de ser dividido com o processamento de exames diagnósticos de PCR – por isso o volume de análises genômicas é inferior ao que as equipes desejariam.
Ainda assim, ressalta Marilda, o Brasil responde por cerca de 2,4 mil dos 5 mil genomas do Sars-CoV-2 cadastrados pela América do Sul na plataforma Gisaid.
“A gente não está tão ruim assim quando se pensa em região. Temos, claro, que melhorar, e estamos buscando essa melhora.”
O esforço agora, diz ela, é para que a vigilância genômica do coronavírus seja em tempo real, para que o país conheça as variantes que circulam no território de forma mais rápida e os gestores de saúde possam “se antecipar” para tentar controlar, por exemplo, a disseminação de linhagens que sejam mais transmissíveis.
Para isso, é preciso aumentar o número de amostras sequenciadas e estruturar uma logística que garanta a análise sistemática de dados de toda as regiões do país.
A linhagem descoberta em Manaus, que tem preocupado cientistas em todo o mundo, tornou esse avanço ainda mais premente, mas o esforço para tentar ampliar a análise genômica das amostras do país é anterior, diz a pesquisadora.
Em outra frente, o Brasil conta com a ajuda de um dos 300 supercomputadores mais potentes do mundo — o SDumont, que fica no Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis (RJ).
Lá, a pesquisadora Ana Tereza Ribeiro de Vasconcelos, responsável pelo Laboratório de Bioinformática do LNCC, e sua equipe de 25 pesquisadores fazem o sequenciamento de amostras do Rio de Janeiro e de outras regiões do país.
Do início da pandemia até o momento, foram feitos cerca de 400 sequenciamentos, um número bem abaixo do que a cientista gostaria.
O principal gargalo, diz ela, é verba.
“Estrutura física o Brasil tem, pessoal qualificado, também — trabalhamos em rede genômica há 20, 30 anos”, afirma. “A gente precisa de mais recursos para custeio, para comprar reagentes e ter acesso às amostras das diferentes regiões do país.”
Os reagentes usados no processo de sequenciamento são importados — e passaram a custar bem mais com a desvalorização do real nos últimos meses.
Antes disso, entretanto, a vigilância genômica já havia sido impactada pelos cortes sucessivos que o orçamento da Ciência e Tecnologia vem sofrendo no país pelo menos desde 2016.
“E vigilância genômica é algo que tem de ser constante, a ideia é antever o que vai acontecer”, pontua Ana Tereza.
A BUROCRACIA BRASILEIRA PARA APROVAÇÃO E LIBERAÇÃO DE RECURSOS
O virologista Fernando Spilki, professor da Feevale, diz que o Brasil tem condições de “recuperar o terreno perdido” nessa área daqui para frente, com a liberação de recursos para pesquisas relacionadas à covid-19.
Ele está à frente da rede Corona-ômica BR MCTIC/Finep, um grande projeto de sequenciamento do Sars-CoV-2 que começou a ser desenhado em fevereiro do ano passado e recebeu a primeira parte do financiamento — que vai chegar no total a cerca de R$ 10 milhões — entre setembro e outubro.
A demora para liberação de recursos, segundo ele, não é exclusividade do momento atual, mas “a rotina do pesquisador brasileiro”.
A rede conta no momento com 14 instituições associadas, com 30 bolsistas CNPQ e mais uma centena de pesquisadores. Um dos objetivos é mapear as linhagens do coronavírus que estão circulando em algumas regiões do país e entender o significado prático de algumas mutações.
Comentando sobre o esforço dos cientistas do país na área de vigilância genômica do coronavírus, o virologista acrescenta que a nova variante que circula em Manaus foi detectada primeiro no Japão e não no Brasil “por uma questão de horas”.
Ele se refere ao trabalho dos cientistas do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (grupo Cadde), que publicaram dois dias depois da notificação das autoridades japonesas um estudo preliminar em que detalhavam a variante.
O grupo, que também tem se dedicado a acompanhar por meio da análise genética a evolução do coronavírus, é coordenado pela imunologista Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da USP, que também esteve à frente do primeiro sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2 realizado no país, em fevereiro de 2020.
Já o Japão não está entre os 10 países que mais têm feito sequenciamento do genoma do vírus em proporção ao total de infectados, mas tem realizado uma política de vigilância epidemiológica ativa em seus aeroportos na tentativa de evitar um aumento explosivo no número de casos da doença.
A grande maioria dos aeroportos conta há meses com “estações de quarentena”, para onde são enviados os viajantes com diagnóstico positivo para covid.
O país realiza testes em massa nos turistas e residentes que chegam do exterior — daí a razão por que identificou com rapidez a variante que circula no Amazonas.
O Brasil, por sua vez, não faz vigilância epidemiológica ativa nos aeroportos. As medidas estão mais rígidas desde o dia 31 de dezembro, quando o país passou a exigir dos passageiros de voos internacionais um comprovante de diagnóstico negativo da doença de até 72 horas antes do embarque.
Antes disso, contudo, havia protocolos para casos suspeitos, mas, como se sabe, uma grande quantidade de casos de covid-19 é assintomática.
O Reino Unido realiza hoje o maior número diário de sequenciamentos do genoma do coronavírus e tem uma estrutura única, que conta com o trabalho direto de cerca de 400 pessoas.
O diretor de estratégia da força-tarefa, batizada de Covid-19 Genomics UK Consortium (COG-UK), Ewan Harrison, conta que a equipe vai muito além dos cientistas e envolve uma grande operação logística, em que caminhões transportam diariamente amostras do vírus coletadas em todo o país para os 16 hubs de sequenciamento.
A história começou em 4 de março, diante da preocupação entre especialistas em genomas de patógenos com a rápida expansão da covid-19 no país.
Menos de duas semanas depois, após dias seguidos de reuniões, o grupo formalizou uma proposta e a apresentou ao governo e a organismos de fomento.
Naquele momento, alguns críticos ao projeto argumentavam que os coronavírus mutavam menos do que muitos outros, como o influenza e o HIV, e que o esforço, portanto, seria uma perda de tempo.
Parte deles não imaginava, entretanto, que o vírus infectaria milhões de pessoas, o que acabou abrindo portas para a ocorrência de uma série de mutações.
“Quando o vírus se replica, quando faz uma cópia de si mesmo (de seu material genético), ele ocasionalmente comete erros”, explica o microbiologista Ewan Harrison, ligado à Universidade de Cambridge e ao Covid-19 Genomics UK Consortium.
“Quanto mais vírus circulando, maior a probabilidade de isso acontecer. Quanto mais longas as infecções, maiores as chances de o vírus desenvolver uma mutação.”
Naquele momento, o consórcio obteve um financiamento de 20 milhões de libras (cerca de R$ 147 milhões) e acabou de ver aprovado um aporte adicional de 12 milhões (R$ 88 milhões), que será usado em parte para expandir a capacidade de sequenciamentos por semana para 20 mil e, posteriormente, para 30 mil.
“Nós nunca fizemos o sequenciamento genético de um patógeno nessa escala, em tão curto período de tempo. O que temos visto é a evolução em ação”, acrescenta Harrison.
“Isso só reforça o fato de que precisamos manter o número de casos sob controle, temos que manter as medidas para tentar conter o vírus — usar máscaras, manter o distanciamento social, a higiene das mãos”, completa.
No caso da variante identificada no país, o cientista conta que o consórcio foi notificado no início de dezembro sobre um aumento súbito de casos em Londres e no sudeste do Reino Unido. A partir daí, os pesquisadores foram buscar no banco de genomas amostras daquela região para entender se havia algo diferente.
Foi aí que descobriram a B117, que tem 24 mutações, 13 que afetam a espícula, que está associada à entrada do vírus na célula do hospedeiro. Há indicativos de que as mutações tenham tornado essa cepa mais contagiosa, mas não há indícios de que ela leve a quadros mais graves de covid-19.
A virologista italiana Marta Giovanetti, que desde 2016 realiza pesquisas no Brasil e tem se dedicado à vigilância genômica do Sars-CoV-2 aqui, ressalta que o modelo britânico é um ponto fora da curva.
Para ela, a resposta do Brasil foi mais interessante do que a de seu país, que só mais recentemente passou a sequenciar mais genomas e a “produzir mais conhecimento”.
“A gente viu que as regiões mais afetadas (na Itália) geraram genomas na ordem de centenas. Isso não descreve a realidade do que aconteceu, não permite realizar algum tipo de inferência”, afirma.
“Isso foi um pouco diferente no Brasil — lógico que poderia ser bem melhor”, completa.
Assim como a variante identificada no Reino Unido e na África do Sul, a encontrada em Manaus apresentou mutações nos genes que codificam a espícula, a proteína que permite a entrada do vírus nas células humanas — e que pode indicar um aumento na transmissibilidade do vírus.
Os dados analisados indicam que ela surgiu entre novembro e dezembro, diz Naveca, do Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia). O pesquisador espera aumentar o número de sequenciamentos para identificar se a nova linhagem está circulando em todo Estado e, em caso positivo, com qual frequência. Por enquanto, não há dados sobre a circulação da variante no restante do país.
Para Naveca, por mais que a evolução do vírus seja esperada, a nova cepa encontrada no Reino Unido, na África do Sul e, agora, no Brasil chamam atenção.
“Elas acumularam muitas mutações em pouco tempo, acima do que a gente estava vendo até o momento.”
Ainda assim, as razões por trás da explosão no número de casos no Amazonas ainda precisam ser melhor estudadas, diz o pesquisador, já que a explicação pode ser multifatorial.
Além da variante que pode ser mais contagiosa, a região entrou em novembro na temporada de vírus respiratórios, com o “inverno amazônico”, e ainda reduziu o distanciamento social no período de festas.
Por isso, o cientista faz um apelo aos brasileiros para que sigam as recomendações para tentar evitar a disseminação do vírus no país.
“O vírus mutante não atravessa a máscara, não resiste à lavagem das mãos com água e sabão, ao uso de álcool gel. A transmissão também é evitada com o distanciamento social.”
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