Má imagem do Brasil dificulta saída da crise

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Foto: AFP / Carl DE SOUZA

O desgaste da imagem do Brasil no exterior pode trazer mais dificuldades para a recuperação econômica e para a redução do desemprego no país. A demora do governo para importar da China os insumos necessários à produção de vacinas contra a covid-19 é o sinal mais dramático de um processo crescente de isolamento internacional. Especialistas se dizem preocupados com as consequências concretas da falta de rumo da economia, da desorganização da resposta brasileira à pandemia e de uma política externa contaminada por princípios ideológicos.

Uma série de episódios ocorridos apenas neste mês ilustra bem esse cenário, como o anúncio do fechamento de três fábricas da Ford no Brasil, após um século da companhia no país; e os ataques do presidente francês, Emmanuel Macron, à importação da soja brasileira. Outro fato importante foi a divulgação, pela organização internacional Human Rights Watch (HRW), de um relatório que acusa o presidente Jair Bolsonaro de ter tentado “sabotar” as ações de combate à crise sanitária (leia Saiba mais).

Toda essa pressão ocorre no momento em que o país precisa, com urgência, gerar emprego e renda, ante um contingente de 14,1 milhões de desempregados (taxa recorde de 14,3%, no 3º trimestre de 2020). O atraso na chegada dos insumos para as vacinas contra a covid-19 pode aprofundar ainda mais esse quadro, já que a imunização da população tem sido apontada por especialistas como crucial para a retomada da economia.

As dificuldades diplomáticas com a China na questão dos insumos são reflexos de sucessivas agressões proferidas contra o país asiático por autoridades brasileiras, no contexto da política do Itamaraty de se alinhar ideologicamente com o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. O republicano deixou o governo no último dia 20, e a posse do atual inquilino da Casa Branca, o democrata Joe Biden, representa uma guinada radical na diplomacia dos EUA. A preservação ambiental, prioridade da nova administração americana, por exemplo, deverá ser mais um fator de pressão sobre o Brasil.

Ex-embaixador brasileiro em Londres e Washington, Rubens Barbosa, que atualmente preside o Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), com sede em São Paulo, recorda que a imagem do país só esteve tão desgastada, como agora, nas décadas de 1970 e 1980, durante a ditadura militar (1964-1985).

“Eu vi esse desgaste, nas décadas de 70 e 80, em relação à política ambiental. Houve o mesmo fenômeno: era a destruição da Amazônia”, relembra. “E, naquela época, havia um problema com os ianomâmis, na fronteira da Venezuela. Houve mortes lá. Então, houve uma campanha internacional contra o Brasil por causa do tratamento dado aos ianomâmis e por causa das queimadas, da destruição da floresta e do garimpo. Exatamente a mesma coisa (que acontece hoje)”, diz.
Segundo o embaixador aposentado, “os militares, que estavam no governo aqui, inventaram aquela coisa de ‘integrar para não entregar’, porque havia a questão da soberania”. “Foi exatamente igual, uma cópia do que é hoje. Fizeram a Transamazônica, enfim, tudo isso que a gente viu que eles fizeram. Agora, nós estamos vivendo o mesmo problema”, constata. “Como é que a gente vai recuperar a credibilidade? Como o próprio vice-presidente (Hamilton Mourão) falou, o Brasil perdeu a credibilidade, e a nossa narrativa, aqui, tem de ser ajustada”, emenda, acrescentando que a questão ambiental deveria ser um dos focos principais da política externa brasileira.

Ele afirma, também, que o Brasil já começou a “sentir efeitos concretos da percepção externa do que estamos fazendo aqui, nesses dois últimos dois anos”, em relação à política de meio ambiente. O governo tem sido acusado, dentro e fora do país, de promover um desmonte das estruturas de fiscalização ambiental, favorecendo os índices recordes de desmatamento da Amazônia e de outros biomas.

“Para você ter uma ideia da situação, supermercados britânicos e suecos estão ameaçando boicotar produtos agrícolas brasileiros se o Brasil não mudar de posição, segundo a percepção deles. Eles veem, pelas notícias que circulam, a destruição da Amazônia, desmatada, queimada, destruída; garimpo; índio maltratado”, frisa. “Então, essa percepção deles é de que o Brasil não está cumprindo os acordos internacionais nem está cumprindo a legislação brasileira, que proíbe tudo isso na Amazônia.”

Outro fator preocupante, segundo ele, é a discussão, no Parlamento europeu, de um projeto que proíbe os países da União Europeia (UE) de importarem produtos oriundos de áreas devastadas, uma iniciativa também em curso na Grã-Bretanha, que deixou o bloco recentemente.

Ainda como parte desse cenário, é cada vez mais remota a possibilidade de a UE ratificar o acordo de livre comércio que assinou com o Mercosul, em junho de 2019, após 20 anos de negociação. Segundo estimativas da equipe econômica do governo brasileiro, esse pacto tem potencial para trazer um ganho adicional de R$ 500 bilhões ao Produto Interno Bruto (PIB) do país, em um prazo de 15 anos.

A ratificação do acordo dependerá, porém, da percepção europeia sobre o cumprimento, pelo Brasil, dos compromissos ambientais firmados desde 1992 e também de fiscalização e repressão de crimes no desmatamento, nas queimadas e no garimpo na Amazônia.
Mais recentemente, a UE comunicou aos países-membros do Mercosul, como condição para levar adiante o acordo, sua intenção de assinar uma declaração conjunta definindo compromissos sociais e ambientais em ambos os blocos. A ideia é reforçar a confiança dos países europeus quanto à posição do Mercosul, em especial do Brasil.

Em abril de 2019, um grupo de 600 cientistas publicou, na prestigiosa revista Science, uma carta pedindo que a União Europeia condicione as negociações comerciais com o Brasil à maneira com que o país protege os direitos humanos e o meio ambiente. Um dos signatários é o brasileiro Tiago Nogueira Pimenta dos Reis, pesquisador de política ambiental da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Procurado pela reportagem, ele comentou sobre os desdobramentos verificados desde então.

“Não houve avanço real em termos de renegociar o acordo (com o Mercosul). No entanto, vários países-membros da UE retiraram seu apoio ao acordo publicamente, e alguns parlamentos nacionais passaram moções desaprovando e declarando que não vão ratificar o acordo”, relata. “Minha opinião é que não será ratificado até o Brasil mostrar medidas e políticas reais com resultados concretos, no mínimo, reduzindo o desmatamento, que só aumenta. Não há viabilidade política na Europa para aprovar isso. Se o Brasil conseguir acabar com o desmatamento, o que provavelmente só ocorrerá num próximo governo, o acordo deverá sair da gaveta.”

Sobre outros fatores verificados nesse período, Tiago Reis relatou que “tem havido boicotes a frutas brasileiras, que não têm nada a ver com desmatamento, e à carne brasileira, esta, sim, bastante responsável”.

O pesquisador também destacou que um exemplo bastante ilustrativo da situação de isolamento enfrentada pelo Brasil é o fato de o país não ter sido convidado para participar da Cúpula do Clima das Nações Unidas, realizada em dezembro, com a presença de cerca de 80 chefes de Estado e governo.
“A imagem do Brasil é péssima. Nunca foi tão ruim. Talvez, tenha sido pior nos governos militares, mas havia menos acesso à informação do que hoje. Portanto, qualitativamente, podemos dizer que nunca a imagem do Brasil esteve tão ruim no mundo e, entre as diversas causas dessa péssima imagem, a política ambiental brasileira é uma das principais”, conclui. (JV)

Correio Braziliense

 

 

 

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