Ex-reitor desafia Bolsonaro após tentativa de censura

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Foto: Divulgação/UFPel

Denunciado à Controladoria Geral da União (CGU) após criticar a atuação do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia, o epidemiologista e professor da Universidade Federal de Pelotas, Pedro Hallal, promete não se calar. Em acordo com a CGU, ele assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em que se compromete a cumprir o Estatuto do Servidor Público, que proíbe “manifestações de apreço ou desapreço no recinto da repartição”, mas afirma que o episódio não vai impedi-lo de expressar suas opiniões “exatamente da mesma forma como as emitia antes desse processo”.

Ele não enxerga o TAC como uma derrota, pelo contrário, “é uma vitória contra uma investida autoritária”: “Com a assinatura, colocamos uma pedra sobre esse assunto. O que espero é que nunca mais um pesquisador brasileiro precise passar pelo que estou passando”. Em cerimônia realizada em 7 de janeiro, com transmissão pelas redes sociais, Hallal, que até então era reitor da UFPel, fez críticas ao governo e à figura do presidente Bolsonaro pelas falhas no enfrentamento à pandemia e pelo modelo adotado na nomeação de reitores das universidades federais, que nem sempre respeita a escolha feita em eleição intena nas instituições.

Hallal foi denunciado à CGU pelo deputado bolsonarista Bibo Nunes (PSL-RS), o que levou à assinatura do TAC. “Se foi uma tentativa de censura, sairá pela culatra”, diz o pesquisador. Para o cientista, os comentários feitos durante a live foram “leves”, e só se tornaram alvo de denúncia porque ele, responsável pela “maior pesquisa epidemiológica sobre covid no Brasil”, foi o autor. “Não acredito em coincidências”, afirma.

“Das 260 mil pessoas que morreram por covid-19 até aqui no Brasil, 3 de cada 4 não teriam morrido se o governo federal não tivesse políticas tão vexatórias de enfrentamento à pandemia.” Confira os principais trechos da entrevista:

O que houve de fato desde 7 de janeiro, quando ocorreu a cerimônia em que as críticas ao governo foram feitas?
No final do ano passado, a gente fez o processo eleitoral de escolha dos próximos reitores da UFPel. Eu poderia ser reeleito, e foi uma decisão pessoal de não concorrer. Fizemos uma eleição e o professor Paulo Ferreira foi eleito como próximo reitor. Do governo Fernando Henrique até o governo Temer, sempre, o presidente nomeava o primeiro colocado escolhido pela comunidade. Embora, legalmente, o presidente tenha a prerrogativa de escolher entre os três nomes da lista. FHC, Lula, Dilma e Temer usavam o bom senso e nomeavam aquele que foi escolhido pela comunidade. No começo de janeiro, saiu a nomeação da professora Isabela Andrade, que tinha sido a segunda colocada. Ela não é nossa adversária política, muito longe disso. Todos os três eram de continuidade da nossa gestão, que foi reeleita, mas sem o meu nome como candidato. Quando Bolsonaro nomeou a professora Isabela, começou um movimento de indignação, como aconteceu em outras 19 universidades até então. A partir disso, organizamos uma live – porque não poderia ser uma assembleia presencial no meio da pandemia. Resolvemos expor o que estava acontecendo e tomar uma decisão conjunta de como agir. Nessa live, teve várias manifestações. Eu fiz um discurso de 14 minutos. E, realmente, no último minuto e meio da live, eu fiz aquela manifestação que acabou viralizando. Eu disse que o presidente da República não manda na UFPel, quem manda é a própria comunidade da UFPel, e no final, usei o termo ‘desprezível’. Foi isso que a CGU acabou enquadrando naquele termo de desapreço (o Estatuto do Servidor Público proíbe manifestações de apreço ou desapreço no recinto da repartição). Um ou dois dias depois, recebi um vídeo completamente descontrolado de um deputado federal (Bibo Nunes), de 12 minutos, dizendo horrores sobre a gente. Acusando o golpe da decisão que nós tomamos, de que teríamos uma gestão compartilhada. Isso incomodou muito os setores do governo.

Como assim?
Esse deputado gravou um vídeo usando palavras extremamente agressivas e dizendo que iria me processar, acho que tentando se blindar pela tal imunidade parlamentar. Sem isso, ele estaria processado por difamação e injúria. Ele começou a divulgar em vários lugares que iria me processar, que iria à Brasília para falar com o ministro da Justiça, ministro da Educação, com a CGU, e que garantiria que eu fosse demitido do setor público. Ameaça direta de perseguição de quem não sabe lidar com a diversidade de opiniões. Ele cumpriu com o que disse; entregou a denúncia e o processo então chegou à CGU. Não vou entrar no mérito jurídico se deveria ter sido a CGU ou não, isso não é uma discussão que me cabe. E a CGU começou a tramitar o processo. Fiquei um tempo, o que é normal, sem ter conhecimento sobre o que estava acontecendo no processo. Depois da investigação preliminar, a CGU me mandou um relatório em que ficava afastada a possibilidade de qualquer infração disciplinar grave, que era o que o deputado queria para tentar me demitir ou me afastar, e dizia que a única eventual falta funcional que eles vislumbravam, em tese, seria essa violação que acabou entrando no TAC. A CGU, neste caso, procedeu exatamente como eu procederia como gestor. Eles me procuraram e apresentaram as possibilidades. O termo de ajustamento de conduta é sem reconhecimento de culpa. Com a assinatura do TAC, o processo foi arquivado. Discuti com meus advogados, discuti com o professor Eraldo (também denunciado) e nós achamos adequado assinar o TAC. Isso não nos foi imposto, foi uma escolha nossa para gerar o arquivamento imediato do processo. A parte legal e burocrática da história termina aí. Agora, claro que a pauta central é de que isso é apenas a parte processual. No mundo real, o que importa é: Por que esse processo foi aberto? Por que foi contra mim? Tem muitos servidores públicos que no seu próprio ambiente de trabalho se manifestam de maneira muito mais crítica ao presidente da República do que o termo que eu usei: “desprezível”. O que importa é o pano de fundo disso tudo.

A CGU classificou o seu comentário como ‘infração disciplinar de menor potencial ofensivo’. Como senhor classificaria?
É papel da CGU fazer essa classificação. Se eu quisesse me defender dessa acusação, eu poderia ter mandado eles abrirem o processo. No momento que eu optei por assinar o TAC, eu quis arquivar o processo. Então, não tenho nenhuma crítica à classificação que a CGU fez. Pra mim, com a assinatura do TAC, colocamos uma pedra sobre esse assunto. O que espero é que nunca mais um pesquisador brasileiro precise passar pelo que eu estou passando.

O senhor vê esse processo como tentativa de cercear a liberdade de cátedra nas instituições de ensino?
Deixo esse julgamento para as pessoas. Agora, enquanto pesquisador, eu não acredito em coincidências. Seria muita coincidência que isso tivesse acontecido exatamente com o pesquisador que vem sendo uma das vozes mais críticas em relação à atuação do governo durante a pandemia. Então, eu não posso fazer uma afirmação direta, mas o que eu posso dizer é que as pessoas podem fazer esse julgamento. Se fosse uma tentativa de censura, sairá pela culatra. Seguirei emitindo minhas opiniões exatamente da mesma forma como eu as emitia antes desse processo, porque a minha opinião científica sobre a condução desastrosa da pandemia pelo governo federal não muda em decorrência desse episódio.

O que esse acordo vai mudar na sua conduta no ambiente acadêmico? Como serão esses próximos dois anos em sala de aula?
Eu vou continuar exercendo o meu trabalho como eu sempre fiz, desde 2005, quando eu virei servidor público, dando aulas como professor, fazendo pesquisas, tentando ajudar a sociedade brasileira, que paga o meu salário. As minhas opiniões sobre qualquer assunto relevante continuarão sendo emitidas da mesma forma. Especificamente em relação ao assunto que tanto incomoda o governo federal, eu seguirei divulgando a ideia de que 3 a cada 4 mortes que aconteceram até agora no Brasil não teriam ocorrido caso o governo federal não fosse um fracasso tão vexatório no enfrentamento da pandemia como vem sendo até hoje.

O acordo também prevê a participação em um curso de ética no serviço público. Como será isso?
Isso é padrão dos TACs, há essa exigência de, no período de um ano, fazer esse curso de 20h sobre ética pública, o que é superbom para nós, servidores. Eu posso fazer isso em qualquer universidade. Vai ser uma ótima oportunidade para discutir conceitos sobre liberdade de expressão, liberdade de cátedra, todas essas questões envolvendo o mundo da universidade. Será uma ótima oportunidade para aprofundar algumas das questões que estamos vivenciando no País.

Por que o senhor considera a assinatura do TAC como uma vitória?
Porque nós estávamos diante de uma ação completamente de exceção, que representa o momento que a gente vive no Brasil. Num momento de exceção como esse, um processo que jamais poderia ter existido, poderia ter um desfecho surpreendente. Então, a gente entendeu que tendo a possibilidade de arquivá-lo imediatamente era mais seguro pelo momento de exceção vivemos. No limite, o deputado que me denunciou queria me demitir do serviço público. E nem uma advertência eu recebi. É uma vitória contra uma investida autoritária, que saiu derrotada.

Ainda sobre o TAC, o que pode acontecer se o senhor infringir o acordo?
Caso eu infrinja o acordo, o que obviamente eu não tenho nenhuma intenção de fazer, a CGU abriria um processo administrativo disciplinar, aí eu poderia me defender e argumentar, exercer direito à ampla defesa e ao contraditório. Mas – quero reforçar -, durante toda minha carreira, jamais cometi infração disciplinar e pretendo seguir não cometendo durante o restante da minha vida pública, que deve se encerrar lá por 2050. Não tenho qualquer intenção de infringir nenhuma regra do código de conduta profissional.

Durante a sua vida acadêmica, já teve conhecimento sobre algum caso como esse?
Não vi, mas ouço falar muito, desde criança, especialmente pelos meus pais, de momentos na história do País em que não se podia criticar o governo. Pelo que entendi, já aconteceram momentos na história do País em que criticar o governo era proibido. Eu não era nascido, mas meus pais me falam bastante de uma época do País que não se podia criticar o governo. Do contrário, a gente recebia retaliações, perseguições. Mas desde que entrei no serviço público, nunca tinha visto nada parecido com isso.

A crítica feita pelo senhor em janeiro se relaciona com a condução da pandemia por parte do governo. A reação por parte do deputado e a abertura do processo foram situações exageradas?
Deixo o julgamento para aqueles que nos leem. Minhas críticas não são nada exageradas, em alguns momentos são até leves demais. Se estivéssemos num país um pouco mais avançado do ponto de vista da democracia, a sociedade jamais aceitaria o que está acontecendo neste momento, no qual todas as medidas baseadas em evidências científicas estão sendo boicotadas pelo governo federal. Somos um país que não faz testagem em larga escala, que não faz rastreamento de contato, que não pratica o distanciamento social adequadamente, cujo chefe de Estado desestimulou a população a se vacinar. Então, essa sabotagem das medidas básicas de enfrentamento à pandemia faz com que 170 mil pessoas tenham morrido. Das 260 mil pessoas que morreram por covid-19 até aqui, 3 de cada 4 não teriam morrido se o governo federal não tivesse políticas tão vexatórias de enfrentamento à pandemia. Então, minhas críticas certamente não são exageradas, até porque elas são corroboradas por outros pesquisadores do País. A atuação do deputado, se é exagerada ou não, é óbvio que outros deputados não utilizam seus respectivos mandatos para fazer denúncias contra adversários políticos do governo.

Como o senhor avalia a autonomia das universidades no governo Bolsonaro?
Em primeiro lugar, a autonomia das universidades vem sendo atacada de maneira muito grosseira desde o começo desse governo. O maior desses ataques é expresso na nomeação dos reitores que não foram eleitos pela comunidade. No momento que o governo sinaliza para uma comunidade que os seus processos eleitorais não servem para nada, porque é isso que o governo está sinalizando, ataca frontalmente a autonomia universitária. Esse tem sido o principal ataque, algo que não acontecia nos governos Temer, Dilma, Lula e FHC. Todos eles respeitavam as escolhas das comunidades. O segundo foco de ataque à autonomia é quando o orçamento é cortado de forma tão dramática como vem sendo feito nos últimos anos. Desde o governo Dilma, no governo Temer e no governo Bolsonaro, nesses três governos, nós tivemos de nos mobilizar para lutar contra ataques ferozes contra nosso orçamento. Porque, claro, quando não há orçamento para tocar suas atividades básicas, a autonomia vai para o saco. Depois, tem a terceira linha de ataque, que o STF, felizmente, barrou, que era sobre a tentativa de ataque à liberdade de cátedra. Que era a tentativa de censurar o que pode e o que não pode ser dito dentro de sala de aula.

As críticas, tanto sobre a pandemia quanto a escolha de reitores, se diferem de outras feitas em ambiente acadêmico?
Obviamente que não. O que difere é o autor dessas críticas. O autor das críticas é o coordenador da maior pesquisa epidemiológica sobre covid no Brasil, é autor do artigo na Lancet, o maior periódico científico no mundo, mostrando o vexatório enfrentamento brasileiro da pandemia. A única diferença é o autor. Não acredito em coincidências.

Acredita em perseguição?
Esse julgamento eu deixo para quem nos ler. Mas não deve ser coincidência.

Em fevereiro, em ofício enviado às universidades, o Ministério da Educação (MEC) chamou de “imoralidade administrativa” as manifestações políticas em ambiente acadêmico. Como o senhor avalia este texto?
Em primeiro lugar, acho que é importante diferenciar o meu caso e do professor Eraldo desse ofício do MEC. São coisas completamente diferentes. A nossa manifestação não foi nem acusada de ter caráter político partidário. São assuntos muito relacionados, mas distintos. Essa manifestação do MPF, de 2019, foi requentada pelo MEC e reenviada às universidades, ela é absolutamente desnecessária. Existe uma legislação no País, existe o código do servidor público, que expressam aquilo que pode e o que não pode, o que está dentro da liberdade de cátedra, o que não está, o próprio STF, recentemente, tomou uma decisão por unanimidade, sobre a livre manifestação nas universidades. Dito isso, acho que essa manifestação enviada pelo MEC às universidades é absolutamente desnecessária e, como tudo que envolve o MEC desde o primeiro dia da gestão do atual presidente, ela é mais um tiro no pé. Basicamente ela traz um assunto que já está superado e gera toda uma repercussão negativa. Se houvesse o mínimo de racionalidade, nem sequer teria sido enviado esse ofício, pois, ele só causou danos ao MEC e nenhum benefício. Com exceção da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), o restante do MEC tem sido um retumbante fracasso durante a gestão Bolsonaro.

O senhor acredita que a vigilância do governo sobre as instituições de ensino está se intensificando?
Existe uma coisa formal do termo vigilância e existe uma coisa sutil. Sinceramente, antes da pandemia, o clima não estava um horror. Não está. O que a gente tem observado concretamente é vários casos de alunos apoiadores do governo atual fazendo filmagem de aulas para tentar constranger a liberdade de cátedra. A gente viu aquele movimento na época em que muitas universidades ofereciam cursos para tratar do impeachment da presidente Dilma, vimos um movimento partindo do MEC de tentar inviabilizar a realização desses cursos. Acho que essas são as situações mais notórias. E a terceira para mim, é a escolha dos reitores, porque essa é uma forma central de fazer qualquer tipo de interferência.

Estadão 

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