Lafer diz que Brasil precisa recuperar credibilidade
Foto: Daniela Ramiro
Um dos signatários da carta dos chanceleres de 2020, que pedia a reconstrução da política externa brasileira, Celso Lafer é uma das maiores referências da diplomacia do País, bem como das preocupações com uma sociedade em que a philia aristotélica ocupe um lugar especial para a preservação do espaço público, a fim de que garantir o bem-estar da comunidade e o diálogo político.
Lafer superou as diferenças que o afastavam de outros chanceleres da Nova República para denunciar a gestão de Ernesto Araújo na pasta. Araújo pediu demissão nesta segunda, 29. Queria resgatar um mundo assinalado pela diversidade e pela criatividade do novo, como escreveu em A Reconstrução dos Direitos Humanos. Chanceler dos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, ele contou ao Estadão o significado de sua oposição à gestão de Araújo no Itamaraty. E também o que o País pode esperar da nova gestão. Eis a entrevista:
O artigo A Reconstrução da Política Externa Brasileira iniciou a formar o consenso em torno da necessidade de mudança no Itamaraty? Qual o impacto da gestão Araújo para nossa diplomacia, como ela se relacionava com os princípios históricos e legais de nossa diplomacia?
Havia um consenso muito grande, apesar das diferenças reais entre os que participaram dessa discussão, de que a condução da política externa, tal como vinha sendo feita pelo governo Jair Bolsonaro e pelo Araújo, não correspondia às necessidades do País. Daí a ideia de escrevermos um artigo, que reunia os chanceleres do período da redemocratização, com uma visão de que essa política não correspondia ao acervo de realizações da política externa brasileira, seja no plano bilateral, seja no plano multilateral. Nem correspondia à tradição diplomática e ao capital simbólico que ela representa, ao seu soft power. Também não obedecia aos princípios que regem as relações internacionais do Brasil, corporificados na Constituição de 1988, que respondiam a uma avaliação da sociedade brasileira de que o rumo da política externa devia obedecer à cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, à ideia da integração latino-americana, à defesa da paz e à solução pacífica de controvérsias. Enfim, ter a ideia de uma postura de abertura em relação ao mundo. E, independentemente das diferenças de tom e ênfase dos que redigiram o documento, concordamos que a política externa não representava no governo Bolsonaro uma abertura ao mundo. Para simplificar: criava muros e não mantinha em aberto as pontes que nós tradicionalmente procurávamos implementar na condução da diplomacia brasileira. Isso se traduziu em um afastamento dos nossos parceiros comerciais tradicionais, como é o caso da Europa e, em relação ao mundo latino-americano, em especial, ao Mercosul e à Argentina. Também há um distanciamento pouco diplomático em relação à China, que é um grande destino das exportações brasileiras, e em relação à Índia, que assinala essa mudança da dinâmica econômica do Atlântico para o Pacífico. Restringia-se ainda a nossa atuação no plano multilateral, seja no âmbito das Nações Unidas seja em outras instâncias, como a Organização Mundial do Comércio. E havia um alinhamento com o governo Trump, cujo America First e visão unilateralista o governo Bolsonaro e o chanceler Araújo endossaram, o que limitava ainda mais o escopo da atuação de nossa diplomacia.
De que forma isso acontecia?
Eu sempre procurei definir a política externa como uma política pública, o que passa por uma apropriada avaliação das nossas necessidades internas e também uma adequada avaliação das nossas possibilidades externas. Em síntese: tal como estava sendo conduzida pelo governo Bolsonaro, capitaneada pelo Ernesto Araújo, ela não respondia às nossas necessidades internas de comércio, de interação com nossos parceiros e, no campo dos valores, não servia a uma área da maior importância, como é o meio ambiente e a sustentabilidade, onde o Brasil é uma grande potência. Nenhum dos grandes problemas do ambiente se resolve sem uma ação construtiva do Brasil. Nós tínhamos um soft power acumulado desde a Rio 92, onde exercemos um papel construtivo na inserção desse assunto na pauta internacional. Vislumbrar o tema do meio ambiente como sendo algo que se contrapõe à soberania nacional não era a maneira apropriada de ver o assunto, pois cuidar da sustentabilidade é sempre um tema, em primeiro lugar, do nosso interesse. Descumprir as regras e facilitar o desmatamento ilegal e o garimpo não atendia à necessidade interna do Brasil. O agronegócio é importante, não em razão do desmatamento ou da busca de novas áreas, ele é eficiente pela inovação científica e tecnológica que hoje o caracteriza e tem a sua origem na Embrapa, que é a contribuição do conhecimento ao nosso desenvolvimento.
Mas de que forma isso prejudicava o Brasil?
A nossa avaliação era de que, quanto mais o governo levasse a política externa nessa linhas, mais ele conduziria uma inadequada inserção internacional do Brasil, que redundaria em custos para a vida brasileira, os quais afloraram com a maré montante de críticas à política externa brasileira. Estas foram além daqueles que naturalmente sempre estiveram dedicados à matéria e passaram a atingir a sociedade brasileira como um todo. O agronegócio teve as suas preocupações. No capítulo de Saúde não preciso mencionar o tema das vacinas e a atitude do Brasil na Organização Mundial da Saúde, na pouco utilização que fizemos da covax facility, assim como na OMC. Nós acabamos nos opondo à proposta da Índia e à da África do Sul em matéria de patentes, o que vai contra o que foi a atuação do Brasil na época da Rodada Doha, na declaração de Saúde Pública. Com isso, nós diminuímos o nosso espaço. Ernesto Araújo, como chanceler, declarou que estava à vontade em ser pária internacional. Na verdade, ele executou fielmente esse empenho de tornar o Brasil um pária internacional.
Qual o significado dessa mudança na chancelaria para a relação do Brasil com as demais nações? Como isso pode ser entendido pelos observadores estrangeiros e qual o papel de Ernesto Araújo nessa história?
Quem conduz a política externa, de direito e de fato, é o presidente, com a colaboração do seu chanceler. E, naturalmente, o Ernesto Araújo conduziu a política externa alinhado com os rumos que o presidente Bolsonaro procurou imprimir ou, pelo menos, aos de grupos expressivos que o apoiam, aos quais ele dá atenção, o assim chamado grupo ideológico, para o qual a política externa do Ernesto, chancelada pelo presidente, respondia. O que eu vejo no momento atual do Brasil? Vejo uma insatisfação com esses rumos, com os quais o presidente têm dirigido o País. Essa insatisfação aparece em vários campos. Do ponto de vista da Saúde, nós sabemos qual é o grau de insatisfação que levou à saída de Eduardo Pazuello do ministério e da movimentação grande que essa saída tem como lastro, que vem da posição do Congresso e dos governadores, dos prefeitos e de uma insatisfação da sociedade com a continuidade de uma pandemia que não parece encontrar no governo federal o encaminhamento apropriado. A manifestação recente da carta escrita e subscrita por um grupo muito expressivo de empresários e economistas explica esse tipo de situação. Nós mencionamos aí o documento que os chanceleres escreveram. Mas há também manifestações dos antigos ministros da Educação, da Saúde e do Meio Ambiente. De maneira que há um crescendo de manifestações de insatisfação com os rumos que o governo manifesta e que têm uma dimensão simbólica. E esta dimensão é importante, pois a percepção da realidade afeta a realidade.
Qual será, então, o efeito de um novo chanceler?
É difícil obter uma percepção externa mais construtiva. Não adianta substituir seis por meia dúzia. Não adianta substituir o Ernesto Araújo por alguém que seja mais comedido ou mais razoável, mas que não simbolize uma mudança significativa, Por isso essa escolha é tão decisiva. Nós já tivemos os percalços que acompanharam a substituição do Pazuello pelo novo ministro da Saúde. O novo ministro da Saúde tem pela frente o desafio de que ele é uma pessoa com credibilidade interna e internacional. Mas ele não a tem automaticamente. Há uma expectativa, e é preciso que ele a confirme. O novo ministro das Relações Exteriores, se não for uma pessoa que simbolicamente assinale essa mudança, não recuperará a credibilidade internacional do Brasil. Pode ajudar a diminuir o desgaste, mas não vai mudar a percepção generalizada que existe hoje.
Como explicar às pessoas a importância de se reconstruir a política externa, ao menos, por razões pragmáticas?
Creio que existe uma agenda da opinião pública e ela vai responder à percepção sobre os problemas do País. No momento, a coisa mais óbvia são as vacinas: por que não adquiriu antes, por que não se preocupou com o tema e por que isso leva ao isolamento do Brasil? Dou outro exemplo: o agronegócio tem manifestado, com razão, uma preocupação grande com a percepção de que ele não atende às exigências de sustentabilidade. Se há um setor que está tendo um desempenho econômico importante é o agronegócio e para ele continuar a desempenhar esse papel é preciso que tenha credibilidade internacional. E, para que ele a tenha, precisa ser ajudado pela postura do País. O mesmo digo eu em relação aos investimentos no Brasil. Hoje em dia, de uma maneira crescente, os fundos insistem que haja critérios de sustentabilidade para apoiarem os investimentos em um setor. Em um setor que eu conheço bem, que é o de celulose e papel, isso é muito claro. Envolve naturalmente a ideia do que é uma produção sustentável, que não gera desmatamento e se baseia em reflorestamento em áreas apropriadas etc. Também hoje em dia, mais do que nunca, o que facilita ou dificulta os fluxos comerciais é o regime regulatório. Nós precisamos estar atentos a isso, pois se não isso tudo reduzirá nossa capacidade de inserção internacional com problemas para a vida econômica e social do Brasil.
Uma das coisas que têm notabilizado o governo, é a diplomacia paralela levada a cabo por Eduardo Bolsonaro nas suas relações com regimes, como os da Polônia e da Hungria e forças políticas da extrema-direita ao redor do mundo. De que forma isso provoca confusão e ruídos para a execução de uma política externa do País?
Olha, provoca na medida em que o Trump não foi reeleito. A única base maior que tinha o governo Bolsonaro e essa democracia paralela era a benevolência do Trump em relação a essas movimentações. Ela desaparece com o fim do que ela representou e nos deixa em uma posição muito desconfortável, pois, afinal de contas, sem demérito para a Hungria, para Polônia e para alguns países fundamentalistas do arco árabe isso não ajuda a nossa respeitabilidade de maneira nenhuma. Nós estamos em um mundo muito complicado, onde existe uma grande tensão de hegemonia representada pela aspiração de ascensão da China e pela dificuldade dos Estados Unidos de lidarem com essa ascensão. Porque nós estamos situados na América do Sul, mais distantes dos focos de tensão internacional. Isso nos dá uma certa liberdade para atuar de acordo com os nossos interesses, o que significa, por exemplo, em relação aos EUA e a China, ter boas relações com ambos. E não ter de fazer opções excludentes. Da mesma maneira, estará aberto em relação à Índia e à Europa. Nesse sentido, o capítulo que eu mencionei a você do soft power, do capital simbólico do Brasil, é muito importante. Essa diplomacia paralela conduzida pelo filho do presidente com a complacência do Ernesto Araújo só aumentou ainda mais a erosão do nosso capital simbólico. Quer dizer: nós estamos jogando fora recursos de presença internacional acumulados em troco de nada, em troca de uma desconectada visão ideológica do mundo.
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