Aglomerações tornam América do Sul epicentro da pandemia
Foto: Ernesto Ryan/Getty Images
Mais de um ano depois da chegada da Covid–19 à América do Sul, países da região apresentam uma explosão no número de casos da doença nas últimas semanas. A situação foi classificada como a mais alarmante no mundo pela diretora-geral da Opas (Organização Pan–Americana da Saúde), Carissa Etienne, no dia 7 de abril. “Em nenhum lugar as infecções são tão preocupantes como na América do Sul”, disse a executiva da Opas, agência de saúde que atua como escritório da Organização Mundial da Saúde (OMS) no continente.
Atualmente, a América do Sul é a região com o maior número proporcional de novos casos diários. A virada aconteceu no último dia 6, quando o continente chegou a 256 novos casos diários por milhão de habitantes, enquanto a Europa, até então líder, tinha 250, segundo a plataforma Our World in Data.
A América do Sul também apresenta o pior cenário do mundo quando se considera a média móvel de mortes em um intervalo de sete dias. A diferença assusta: na última segunda-feira (12), a média móvel de mortes da região beirava a marca de dez para cada milhão de habitantes – a da Europa, a segunda pior, estava abaixo de cinco.
Em contraste com a aceleração da pandemia, a região tem somente 3% da população totalmente vacinada. Para se ter uma ideia, a Europa tem quase 6% e a América do Norte lidera com 13%, mesmo com a inclusão de países da América Central e do Caribe.
Até Chile e Uruguai, que vacinaram, respectivamente, cerca de 37% e 22% de suas populações com ao menos uma dose, vêm atingindo marcas inéditas nas mortes e contágios diários pelo coronavírus.
Na sexta-feira (9), o Chile superou pela primeira vez a marca de 9 mil novos contágios em apenas um dia. Já o Uruguai registrou, na segunda-feira (12), o número recorde de 71 mortos pela Covid.
Mas o que explica a situação da região? Para especialistas ouvidos pela CNN, há uma soma de fatores. Sem uma redução eficiente da mobilidade, por exemplo, as medidas de distanciamento e isolamento são precárias ou praticamente inexistentes. A desigualdade social e a falta de auxílio financeiro por parte dos governos também são elementos da equação.
“A única solução para a pandemia é a vacina, e, até lá, paciência e confinamento. No Cone Sul, a paciência se esgotou antes de a vacina ter produzido a imunidade”, diz o cientista político argentino Andrés Malamud, pesquisador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, em Portugal.
É nesse sentido que, na avaliação de Malamud, se veem os reflexos da desigualdade social e da falta de apoio dos governos. “Na América Latina, o alto grau de informalidade exige que muitos setores da sociedade saiam para trabalhar”, diz.
“Funcionário público não tem problema, mas empregados privados, trabalhadores informais e desempregados não podem ficar isolados sem receber nenhum tipo de compensação financeira”, afirma o cientista político.
Miriam Saraiva, professora de relações internacionais da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisadora sobre integração sul–americana e Mercosul, avalia ainda que, por uma questão de “cultura política”, os governos sul–americanos tendem a não conseguir convencer os cidadãos a tomar os cuidados necessários para o controle da pandemia.
“Os governos não têm capacidade de enquadrar suas próprias sociedades, [de fazer com] que haja um pensamento coletivo, que cada cidadão se sinta obrigado a ter um determinado comportamento”, pontua. “Isso é uma questão de cultura política, que não se pode criar da noite para o dia, e aqui na América Latina faz falta”, afirma.
Um desafio a mais para a América do Sul é lidar com a enorme extensão de fronteira seca entre os países – o que, para os especialistas, torna praticamente impossível que um país da região consiga vencer, sozinho, a batalha contra o coronavírus.
“Essas iniciativas de fechar fronteiras, de dizer ‘ah, o vírus vem daí’, não adiantam. Entre Uruguai e Brasil, existem ruas que separam a fronteira. Como você vai fechar?”, questiona a professora Miriam Saraiva.
No Uruguai, os piores indicadores da pandemia estão na região norte, perto da fronteira com o Brasil. O governo uruguaio permitiu a vacinação de brasileiros na fronteira – mas, por enquanto, a medida vale apenas para quem já tem a dupla cidadania.
Para Saraiva, é preciso haver ações coordenadas regionalmente para o combate efetivo do coronavírus na América do Sul, inclusive por se levar em conta as novas variantes do vírus. Como possíveis medidas, ela cita o intercâmbio de experiências, iniciativas e até de insumos entre cientistas e os governos dos países.
“Um país pode se sair bem sozinho se for uma ilha, como a Nova Zelândia. Na América do Sul, não há isolamento possível e nem cooperação suficiente”, avalia o cientista político Andrés Malamud.
Mais adiantados na vacinação, Uruguai e Chile mostram que somente a aplicação de doses não é o bastante para conter a pandemia.
Se recentemente o Uruguai atingiu a marca de mais de 1 milhão de vacinados com ao menos uma dose de imunizante contra a Covid–19, por outro lado os contágios diários e o número de mortes não param de crescer. Segundo a plataforma Our World In Data, o país entrou nos últimos dias para o ranking dos 10 países com mais casos novos de coronavírus por dia a cada 100 mil habitantes.
Gonzalo Moratorio, virologista e pesquisador responsável pelo Laboratório de Evolução Experimental de Vírus do Instituto Pasteur de Montevidéu, afirma que é necessário “ajudar o plano de vacinação diminuindo os contágios”. “Não estou sugerindo nenhum regime de confinamento, de quarentena obrigatória, mas apenas reduzir muito mais a mobilidade do que foi feito até agora”, pontua.
O Chile, apesar de ser o país com índice mais alto de vacinação na América do Sul, não conseguiu conter o crescimento acelerado dos casos. Na sexta (9), o país registrou mais de 9 mil novos casos em 24 horas, um recorde desde o início da pandemia.
Assim como Moratorio, Jaime Labarca, médico infectologista e chefe do departamento de doenças infecciosas da PUC-Chile (Pontifícia Universidade Católica do Chile), destaca que contar apenas com a vacinação como forma de controlar a pandemia não parece ser suficiente.
No Uruguai, a vacinação teve início somente no fim de fevereiro de 2021, em meio a protestos de diferentes setores políticos e científicos que se queixavam da demora nas negociações do presidente Luis Lacalle Pou para obter os imunizantes. À época, os casos de coronavírus já começavam a aumentar no país. A estratégia do governo, no entanto, foi manter o discurso pela “liberdade responsável” dos uruguaios, mantendo bares, restaurantes e shoppings abertos, e apostar principalmente na vacinação.
No cardápio de vacinas usadas, estão a do laboratório Sinovac – idêntica à CoronaVac, porém importada da China; a da Pfizer, usada principalmente para imunizar profissionais da saúde e idosos; e, em menor proporção, a AstraZeneca, recebida por meio do consórcio Covax Facility.
Nas ruas de Montevidéu, é comum ver pessoas sem máscara. Encontrar alguém usando a máscara do modelo PFF–2, que oferece maior proteção contra o vírus, é praticamente impossível na capital uruguaia.
“O que aconteceu foi um relaxamento extremo da população, foi o cantar da vitória antes do tempo. Houve também um afastamento das autoridades nacionais, com relação à comunidade científica, no que diz respeito à tomada de decisões”, afirma Gonzalo Moratorio.
Em março, uma equipe de cientistas – Moratorio entre eles – confirmou a circulação de novas variantes do coronavírus no Uruguai, entre elas a brasileira P.1, relacionada a uma maior capacidade de transmissão e de infecção dos mais jovens. Organizações de médicos e cientistas já alertam para o risco de colapso do sistema de saúde no país.
No Chile, o infectologista Jaime Labarca descreve um cenário que também se desenhou em outros países: o crescimento de casos ligado à alta mobilidade da população durante o verão. No caso chileno, após meses de uma quarentena mais rígida em 2020, o governo do presidente Sebastián Piñera resolveu flexibilizar as medidas no início deste ano. “Algumas áreas do país tinham poucos casos. Muita gente viajou entre Santiago e a costa, contribuindo para a circulação do vírus”, afirma.
Labarca também ressalta que, como o país está vacinando grande parte da população com a vacina do laboratório chinês Sinovac, é preciso esperar um intervalo de 15 dias após a administração da segunda dose para considerar que uma pessoa esteja, de fato, imunizada. Assim como o Uruguai, o Chile também administrou doses da Pfizer, direcionadas prioritariamente aos profissionais da saúde.
No início de abril, em meio à alta nos casos, o governo chileno voltou a adotar medidas mais duras e fechou novamente as fronteiras. “Somente agora houve suspensão de viagens internacionais. Antes, em plena pandemia, as pessoas foram de férias para o Brasil, para Miami. Também é preciso definir melhor quais serviços são de fato essenciais e aumentar a fiscalização”, sugere o infectologista.
A Argentina registrou recorde no número de infectados diários por dias seguidos na semana passada: foram mais de 24 mil novos casos confirmados na sexta-feira (9).
No mesmo dia, entraram em vigor novas medidas de restrição no país, anunciadas pelo presidente Alberto Fernández, que tamb??m foi infectado pelo vírus, em meio à escalada de contágios. Fernández decretou um toque de recolher noturno, da meia–noite às 6h, e determinou o fechamento de bares e restaurantes após as 23h.
Em toda a região metropolitana de Buenos Aires, apenas trabalhadores considerados essenciais, como os profissionais de saúde e de educação, podem fazer uso do transporte público. As medidas valem pelo menos até o dia 30 de abril.
Apesar de ter sido o primeiro país da região a dar início à vacinação, ainda em dezembro do ano passado, com a vacina russa Sputnik V, o ritmo da campanha na Argentina é considerado lento – apenas 8,99% da população recebeu ao menos uma dose até o dia 7 de abril, de acordo com os dados da plataforma Our World In Data.
Paraguai quase teve ruptura política
No Paraguai, a situação é ainda pior: apenas 0,64% da população foi vacinada com ao menos uma dose até a mesma data. A gestão da pandemia no país – que vivenciou o colapso de hospitais e a falta de remédios e insumos para tratamento dos infectados – foi o estopim para uma série de protestos contra o governo da presidente Maria Abdo Benítez, do Partido Colorado, em março.
Em meio à crise, a oposição articulou um pedido de impeachment contra Benítez, mas a proposta acabou não prosperando no Congresso, graças a um acordo costurado dentro do Partido Colorado, com a ala liderada pelo ex-presidente Horacio Cartes.
“O impeachment não é mais um risco no curto prazo, mas fica a perspectiva caso a situação da pandemia volte a piorar e, por algum motivo, essa metade do Partido Colorado [liderada por Cartes] se coloque contra Benítez”, avalia Miriam Saraiva, da UERJ.
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