Pesquisa diz que invermectina é danosa à saúde
Foto: Marcelo Rocha / Agência O Globo
Pesquisador da ivermectina há 25 anos, o professor de pós-graduação do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS), Marcelo Beltrão Molento, afirma que pessoas vêm “servindo de experimentação” ao consumir o medicamento para tratar de Covid-19.
O docente alerta que o uso abusivo da droga pode gerar consequências ainda desconhecidas, uma vez que as pessoas têm sido submetidas a tratamentos com doses maiores e por tempo prolongado em relação ao indicado na bula.
O vermífugo consta no kit de “tratamento precoce” contra a Covid-19. A combinação de remédios – que também inclui a cloroquina – é comprovadamente ineficaz para tratar a doença, mas mesmo assim vem sendo propagandeada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), aliados e profissionais de saúde como os que participam do grupo “Médicos pela Vida”.
Molento publicou dois artigos sobre a ivermectina – um no ano passado e outro este mês, na revista One Health – que advertem sobre os riscos do uso indiscriminado do medicamento. O primeiro deles, de agosto de 2020, é o quinto mais lido no mundo no respeitado periódico. No texto, o pesquisador alerta para graves lesões no fígado e rins, danos ao sistema nervoso central e ao aparelho digestivo.
“Até 2019, a literatura mundial jamais tinha conhecimento de uma intoxicação medicamentosa por ivermectina”, diz Molento. “A ivermectina por si só é muito segura para mamíferos. O remédio foi amplamente testado em cobaias nos anos 1980, e sempre se encontrou um ponto crítico de toxicidade com doses muito elevadas, com comprometimento do fígado, rins, intestino e cérebro. Por isso, as empresas que têm o remédio no mercado, seja para uso humano ou veterinário, trabalham com uma dose de bula muito segura, praticamente nulo”, explica.
A quantidade ideal, no entanto, não vem sendo seguida no “tratamento precoce”: uma dose que era indicada uma vez ao ano em casos de verminose vem sendo tomada uma vez ao mês, pontua o pesquisador.
“Tenho conhecimento de pessoas que tomam a cada 15 dias, e médicos que recomendam o uso contínuo há mais de 35 semanas, após o pagamento de consultas de R$ 1 mil, onde eles receitam o remédio sem nenhum acompanhamento posterior do paciente”, relata Molento.
Outra recomendação comum que vem ocorrendo, diz o professor, é de uma dose ainda maior para obesos. “Como a ivermectina tem uma distribuição fantástica no corpo, ela adere melhor no tecido adiposo, e vai sendo liberada lentamente. Não temos ideia de quais são as consequências disso para essas pessoas”.
O pesquisador salienta ainda que há uso do produto veterinário (que é injetável) por pessoas. “O medo e o desespero da população em ver quase 4 mil mortes diárias também levou a esse tipo de uso”, afirma.
No ano passado, um grupo de médicos pediu ao pesquisador que ele fosse a Brasília interceder a favor da ivermectina contra a Covid-19. Ele não foi, mas participou de discussões a pedido de entidades, e conta que presenciou um lobby grande de médicos em favor da indústria.
“O que estamos vivendo no Brasil e em toda a América Latina é uma falta de aviso sobre os riscos de intoxicação medicamentosa de forma categórica. Na página principal da Anvisa deveria constar esse alerta”, critica o professor.
Molento refuta a afirmação de que o remédio é capaz de matar o vírus. De início, diz ele, esse raciocínio não era descabido. “A ivermectina é uma das drogas mais maravilhosas desenvolvidas pelo ser humano, comparada à morfina e penicilina, pelo seu amplo espectro de ação nas células. Quando começou a aparecer a indicação com o Sars-Cov-2, não fiquei assustado, mas em uma expectativa positiva por conta da ação”, diz.
No entanto, os estudos in vitro divulgados do ano passado, que mostraram a capacidade da droga reduzir a replicação do vírus, não poderiam ser replicados in vivo, por conta da superdosagem.
Segundo o pesquisador, prefeituras de cidades que distribuíram amplamente o kit de “tratamento precoce” relataram a ele que a população que fez uso da super dose apresentou efeitos colaterais em massa como a diarreia, o que não é comum na dosagem da bula.
“Uma vez que a droga se torna tóxica ela agride vários tecidos. Na diarreia, há uma descamação das células epiteliais do intestino, o que é muito danoso para o microbioma intestinal, que é a primeira barreira contra as doenças”, esclarece.
A superdose pode causar, inclusive, danos ambientais: 96% da ivermectina, diz Molento, é eliminada no ambiente pelas fezes. “Isso vai agir na fauna e flora aquática trazendo danos ambientais que não temos ideia”.
O professor costuma fazer os alertas em suas redes sociais contra o uso da ivermectina em pacientes com Covid-19. Justamente por ser uma referência na pesquisa sobre o medicamento, ele acaba alvo de ataques. “Me chamam de comunista, maconheiro. Outro dia, um rapaz me disse no Facebook que gostaria de visitar o meu túmulo”, conta.
A ivermectina foi descoberta nos anos 1970 pelos cientistas Satoshi Omura e William Campbell – que receberam o Nobel de Medicina em 2015. O vermífugo é usado para tratar infecções causadas por vermes e parasitas em humanos e animais. Apesar de entidades como a OMS, a Associação Médica Brasileira (AMB), a Sociedade Brasileira de Infectologia e a própria fabricante do medicamento, a farmacêutica norte-americana MSD, já terem se posicionado contra o uso do remédio em pacientes com Covid-19, as vendas do produto seguem em alta.
De 2019 para 2020, o aumento de vendas de ivermectina no Brasil foi de 460%; cerca de 43 milhões de caixas foram consumidas em 2020. O preço, que antes custava em torno de R$ 12, chega a R$ 25 em algumas farmácias, que divulgam amplamente promoções do fármaco, que é vendido com receita simples. Desde setembro de 2020, não é mais exigida retenção da receita, após uma decisão da Diretoria Colegiada da Anvisa. O argumento foi de que a liberação do acesso atende quem precisa tratar verminoses e parasitoses.