CPIs podem prender quem mente em depoimento

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Foto: JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO

A Comissão Parlamentar de Inquérito instalada no âmbito do Senado Federal para apurar a atuação da União na gestão da pandemia e a má aplicação ou desvio de recursos federais destinados aos Estados para serem empregados no combate à Covid-19 continua a causar celeuma.

Recentemente, houve pedido e ameaça de prisão em flagrante à testemunha por ter, segundo a percepção de um de seus membros, mentido sobre fatos ou se omitido e não declarado o que sabe.

O crime de falso testemunho vem definido pelo artigo 342, “caput”, do Código Penal: Diz a norma: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena. Reclusão, de dois a quatro anos, e multa”.

No que tange à CPI, deve ser aplicado o disposto no artigo 4º, inciso I, da Lei nº 1.579/1952, que dispõe: “Art. 4º. Constitui crime: “I – (…). II – fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, tradutor ou intérprete, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito: Pena – A do art. 342 do Código Penal”.

Ao fazer referência ao Código Penal no que tange à pena e por ser benéfico ao réu, aplica-se ao dispositivo normas que de algum modo o favoreçam, como a possibilidade de retratação até a prolação da sentença, conforme o disposto no § 2º do artigo 342, do Estatuto Repressivo. Reza o dispositivo: “O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade”.

O bem jurídico tutelado neste delito é a administração da justiça em seu sentido mais amplo quanto à lisura dos atos processuais ou procedimentais, posto que as conclusões da CPI serão encaminhadas ao Ministério Público, à Advocacia Geral da União e ao Tribunal de Contas, que pode ser da União, do Estado ou do Município, a depender da competência. Assim, poderá ser promovida ação ou instaurado processo perante os Tribunais de Contas, com eventual responsabilização de indiciados ou investigados na CPI.

Procura-se com a tipificação do delito buscar a verdade real dos fatos de modo a ser aplicada a justiça de forma escorreita, tanto para responsabilizar quanto para inocentar pessoas investigadas por infrações penais, civis ou administrativas.

O crime de falso testemunho pode ser cometido por algumas categorias de pessoas. A que nos interessa é a testemunha, que é toda pessoa chamada a depor em processo judicial, investigação policial, procedimento administrativo ou em juízo arbitral acerca de fatos de seu conhecimento. No caso, a testemunha presta depoimento na comissão parlamentar de inquérito, podendo ser compromissada a dizer a verdade ou não, lembrando que o Código de Processo Penal é aplicado subsidiariamente, de acordo com o Regimento Interno do Senado Federal (art. 153).

Sempre defendi ser o compromisso desnecessário para a configuração do crime de falso testemunho, uma vez que não é elemento do tipo. Quem não é obrigado pela lei processual a depor, mas se propõe a fazê-lo, mesmo que não preste compromisso, deverá dizer a verdade, sob pena de cometimento deste delito. Contudo, prevalece o entendimento de que sem o compromisso de dizer a verdade não há delito.

Nem toda testemunha presta compromisso de dizer a verdade, conforme o previsto no Código de Processo Penal. Há pessoas que sequer necessitam prestar depoimento, salvo se não for possível apurar os fatos de outro modo. E, mesmo neste caso, não prestarão o compromisso de dizer a verdade, o que ocorre com o ascendente e descendente do acusado ou investigado, dentre outros parentes (art. 206 do CPP).

Aliás, há testemunhas que são proibidas de depor por terem obrigação legal de guardar segredo, em razão de função religiosa, ofício ou profissão, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho (art. 207 do CPP).

O delito pode ser cometido quando a testemunha faz afirmação falsa, nega ou cala a verdade.

Fazer afirmação falsa é mentir sobre o que sabe; é a chamada falsidade positiva. Negar a verdade é negar um fato que realmente ocorreu; é a chamada falsidade negativa. Calar a verdade, também chamada de “reticência”, ocorre quando a testemunha esconde o que sabe e se recusa a responder as perguntas.

O fato sobre o qual a testemunha depõe deve ser juridicamente relevante e possuir potencialidade lesiva, não se exigindo a produção de qualquer resultado, por se tratar de crime formal. Ademais, a finalidade do agente é irrelevante.

Existem duas teorias a respeito da falsidade:1) objetiva; 2) subjetiva.

Para a teoria objetiva, haverá falso testemunho quando o narrado pela testemunha não espelha a verdade real.

De acordo com a teoria subjetiva, a falsidade reside no que foi exposto pelo sujeito e o seu conhecimento. É a adotada pelo Código Penal.

Deve-se considerar falso apenas o testemunho que não está em correspondência qualitativa ou quantitativa com o que a testemunha viu, percebeu, sentiu ou ouviu, conforme prega a teoria subjetiva. Assim, se uma pessoa disser ter visto os fatos e os narrado como eles efetivamente ocorreram, mas sem tê-los presenciado, haverá o delito.

A testemunha depõe sobre fatos percebidos por seus sentidos e, dependendo de uma série de circunstâncias (ângulo de visão, dinâmica dos acontecimentos, choque psicológico, medo etc.), pessoas podem ver o mesmo fato de maneiras diversas em seus aspectos periféricos. O que deve ser verificado são os aspectos principais de um depoimento, uma vez que os secundários em muitas vezes são observados de forma diferente pelas testemunhas.

A testemunha não dá sua opinião sobre o ocorrido. Ela narra fatos percebidos por seus sentidos. Quem dá seu parecer sobre algo é um técnico, um perito e não uma simples testemunha, cujo entendimento subjetivo sobre algo é despiciendo.

A consumação do delito de falso testemunho ocorre no encerramento do depoimento.

Contudo, nem por isso a ação penal pode ser iniciada, uma vez que até a prolação da sentença no processo em que o falso foi cometido poderá haver a retratação.

Ocorrerá a extinção da punibilidade da testemunha mentirosa ou reticente (CP, art. 107, VI) se antes de proferida a sentença no processo em que ocorreu o ilícito, ela se retrata ou declara a verdade. Na retratação, a testemunha volta atrás do que disse e fala a verdade.

A retratação precisa ser integral e voluntária. Exige-se que seja feita no processo em que o falso testemunho foi cometido e antes de proferida a sentença. Se extrajudicial, deve ser ratificada naqueles autos.

O importante para que ocorra a extinção da punibilidade do sujeito ativo é que a verdade sobre os fatos seja reposta e que não haja prejuízo para a apuração da verdade real. É o “prêmio” para aquele que resolve colaborar com a Justiça, mesmo que coercitivamente.

Em decorrência da possibilidade de retração, há várias posições no que tange ao início da ação penal.

1ª) o início da ação penal somente poderá ocorrer após a prolação da sentença no processo em que o falso testemunho ou a falsa perícia foi cometido, pois até lá pode haver a retratação;

2ª) a ação penal pode ser proposta e, inclusive, julgada antes da prolação da sentença no processo em que o falso testemunho ou a falsa perícia foi cometido, uma vez que a falta de retratação não é pressuposto ou elemento do crime;

3ª) a ação penal pode ser proposta antes da prolação da sentença no processo em que o falso testemunho ou a falsa perícia foi cometido; porém, se o depoimento foi proferido em processo penal, as ações devem correr juntas em virtude de conexão;

4ª) a ação penal pode ser iniciada antes, mas deve-se aguardar a prolação da sentença no processo em que o falso testemunho ou a falsa perícia foi cometido para que não haja decisões conflitantes e possibilite a retratação. Tem a nossa preferência.

Com efeito, por tudo que foi exposto, sendo possível a retratação até a prolação da sentença, não se faz possível a prisão em flagrante delito. Muito embora o crime se configure e consume quando do fim do depoimento, havendo a possibilidade de retratação a qualquer hora antes da sentença, não é razoável que a pessoa seja presa em flagrante, muito embora a ação penal possa ser promovida, mas o julgamento ficará na dependência da prolação da sentença no processo em que o falso testemunho foi cometido, posto que, até lá, pode haver a retratação, que importará na extinção da punibilidade da testemunha.

Aplicando a mesma regra à CPI por analogia, poderá haver a retratação até a apresentação do relatório conclusivo pelo relator, o que, do mesmo modo, desautoriza a prisão em flagrante da testemunha, que minta, negue o cale a verdade.

A analogia poderá ser aplicada quando inexistir no ordenamento jurídico ato normativo que regule uma dada situação fática. Consiste na aplicação de uma disposição legal a caso concreto não regulado normativamente, mas com fundamento comum e relevante.

Para aplicação da analogia são necessários os seguintes requisitos: a) inexistência de ato normativo que regule o caso concreto; b) existência de norma legal que regule caso semelhante; c) fundamento comum relevante entre os casos (regulado e não regulado).

Não é fonte de direito, mas forma de autointegração da lei para suprir as lacunas que possam existir na legislação. Em matéria penal só poderá ser invocada em favor do acusado (in bonam partem) em virtude do princípio da reserva legal.

Como as normas que regem as comissões parlamentares de inquérito não tratam especificamente da retratação no caso de falso testemunho e se aplica às instaladas perante o Senado Federal o Código de Processo Penal, que é o veículo formal de aplicação do Código Penal, parece-me razoável que norma penal favorável ao investigado, indiciado ou acusado por este delito seja aplicada por analogia, como no caso da possibilidade de retratação até a apresentação do relatório conclusivo pelo relator.

Concluindo, havendo a possibilidade de retratação da testemunha até a apresentação do relatório conclusivo, não é possível a sua prisão em flagrante. Neste caso, cópia dos elementos de prova necessários serão remetidos à Polícia Judiciária ou ao Ministério Público para a apuração dos fatos.

*César Dario Mariano da Silva, procurador de Justiça – SP. Mestre em Direito das Relações Sociais. Especialista em Direito Penal. Professor universitário. Autor de vários livros, dentre eles Manual de Direito Penal, Lei de Execução Penal Comentada, Provas Ilícitas, Estatuto do Desarmamento, Lei de Drogas Comentada e Tutela Penal da Intimidade, publicados pela Juruá Editora

Estadão

 

 

 

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