EUA, Canadá e Uruguai atraem peregrinos das vacinas
Foto: Lev Radin/Pacific Press/LightRocket via Getty Images
O continente americano está configurado, em tempos de pandemia, exatamente de acordo com as profundas desigualdades que carrega. Enquanto a América do Sul segue a apresentar números alarmantes de contágio e óbitos de Covid-19, os países ricos e desenvolvidos da América do Norte ostentam sobras de vacinas e recordes de cidadãos imunizados a cada dia. A América Central, por sua vez, ainda oferece pouso em resorts paradisíacos para quem quer atravessar de um extremo a outro – com a exceção de Cuba, que tem um ritmo próprio de desenvolvimento científico.
Nesta série de quatro reportagens da CNN sobre os deslocamentos que as pessoas vêm fazendo em busca de vacinas, trazemos aqui as histórias de pessoas que viajaram aos Estados Unidos, ao Canadá e ao Uruguai. Há um caso de férias em Miami com quarentena em Punta Cana; há outro de um pulinho na esquina, de Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, a Rivera, no Uruguai.
Destino: Estados Unidos:
O dia de ir à igreja é sagrado para o brasileiro André Helene, 38 – mas não por motivos religiosos. De férias em Miami, o gerente de vendas deposita sua fé na ciência e vai ao templo apenas para tomar a segunda dose da vacina da Pfizer. “A primeira tomei dentro de uma unidade de uma rede farmacêutica”, conta.
O gerente comercial desembarcou em Miami depois de cumprir a “penitência” de pelo menos 14 dias em Punta Cana, onde conheceu muitos estrangeiros fazendo a mesma via sacra. Como os Estados Unidos mantêm as fronteiras fechadas para quem chega do Brasil, Reino Unido, África do Sul e outros países, a única forma de entrar em território americano é cumprindo uma quarentena obrigatória em uma nação “isenta” do bloqueio.
Nesse contexto, México, Panamá e República Dominicana são os destinos mais cobiçados por brasileiros por questões financeiras, logísticas e geográficas.
“No total, passei 15 dias em Punta Cana e agora fico um mês em Miami”, diz Helene. Antes de embarcar rumo aos EUA, o brasileiro conta que teve de preencher um formulário específico da companhia aérea. “Uma das questões era se eu havia visitado o Brasil nos últimos 14 dias, e eu pude dizer que não. Entrei com o visto de turismo mesmo, e não tive problemas na imigração”, explica. No total, Helene dedicou cerca de 45 dias e R$ 30 mil para cumprir toda a jornada, que transcorreu sem nenhum problema.
“Já em Punta Cana pude fazer o cadastro online e agendar minha vacinação para quarta-feira usando o endereço do meu Airbnb. Mas cheguei na segunda-feira e vi que a farmácia ao lado da minha hospedagem estava vacinando”, conta. “Fui até lá e, de novo, usei o endereço do Airbnb e disse que era um ‘residente temporário'”, afirma.
Já o empresário paulistano Abel (nome alterado a pedido do entrevistado), 55, conta que sua experiência e a de sua namorada foi um pouco diferente. “Uma amiga que mora em Miami precisou ir até o posto de vacinação com comprovantes de residência e interceder por nós”, diz.
O casal também chegou à Flórida depois de se isolar por mais de 14 dias, mas no México. “Passamos uma parte desse período na Cidade do México, uma parte em Tulum e outra em Cancun, de onde pegamos o voo para Miami”.
Como o casal havia se programado para passar apenas cinco dias na cidade americana, a única opção possível de imunização seria a vacina da Janssen, desenvolvida pela Johnson & Johnson, que requer apenas uma dose.
Por isso, antes mesmo de embarcar, o empresário já havia pedido ajuda nas redes sociais. “Postei em um grupo do Facebook para brasileiros que moram em Miami onde poderia tomar essa vacina da Janssen”, lembra. “Muita gente se mostrou solícita, mas teve quem achou ruim eu ir com visto de turista e querer ‘escolher’ a vacina. Até apaguei o post”, afirma Abel.
Mesmo com a desaprovação de uma parte dos conterrâneos, o casal desembarcou nos Estados Unidos no dia 31 de março e, no dia 2 de abril, conseguiu a tão sonhada vacina – que veio na famosa “xepa”. “Demos muita sorte, porque a equipe da campanha de vacinação não queria nos vacinar por conta da falta de comprovante de residência. Mas depois do apelo da nossa amiga, que mora mesmo lá, pudemos esperar pelas eventuais sobras. Eu fui o penúltimo da fila e minha namorada, a última”, afirma.
Abel manteve em segredo a vacinação para evitar qualquer tipo de crítica. “Não fiz nada de errado, porque eu fiquei até o final e esperei minha vez; não roubei a vacina de ninguém. Se tivesse que fazer tudo de novo, eu faria”.
Ele agora tenta convencer a irmã a trilhar o mesmo caminho: pagar pedágio de duas semanas em um país aceito pelos Estados Unidos e rumar ao norte para se vacinar. O empresário diz ainda que reservou 25 dias para a sua epopéia, mas que é impossível calcular o investimento financeiro, porque usou créditos pendentes de outras viagens, milhas e contou com a hospedagem de amigos na Flórida.
Com ou sem a ajuda de conhecidos, o que não dá é para escapar de certas burocracias, como a quarentena obrigatória e a apresentação de um visto válido para cruzar a fronteira. O mais comum é o visto de turismo, cuja retirada ou renovação está lenta no Brasil, com agendamentos disponíveis nos consulados do país apenas para 2022. Brasileiros com cidadania americana ou residência permanente são isentos desses trâmites.
Seja a passeio ou a trabalho, a vacinação no país de Joe Biden, que imunizou 49,01% de sua população com ao menos uma dose, está cada vez mais facilitada – o que seduz não apenas os brasileiros. A estudante canadense Carina Ventrone, 25, optou por se vacinar em Los Angeles, na Califórnia, onde está passando um trimestre.
Embora o Canadá seja o país com o maior número de vacinas per capita (5 por habitante), até agora menos de 5% da população canadense completou o ciclo das duas doses. “Meu pai e minha mãe têm câncer, mas só ele conseguiu tomar a vacina até agora, porque tem complicações cardíacas também. Eu, aqui [nos EUA], já tomei as duas doses da Pfizer há semanas”, conta.
A vacinação de turistas é tamanha que alguns governos pensam em institucionalizar a campanha. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, sinalizou, por exemplo, a intenção de oferecer doses da Johnson & Johnson como “souvenir” a qualquer um que visite a cidade, com a possível instalação de pontos de vacinação em cartões-postais como o Central Park e a Times Square. “Neste verão vocês vão ver o turismo renascer em Nova York, vocês vão ver os empregos retornarem por conta disso. Queremos fazer tudo o que está ao nosso alcance e facilitar para os turistas. Então, se eles estão aqui, que sejam vacinados!”, disse de Blasio.
Ao menos outros 18 estados americanos suspenderam o comprovante de residência como documento essencial para receber o imunizante, mas nenhum ainda se declarou publicamente aberto ao turismo da vacina.
“Não está aberto na teoria, mas está na prática”, comenta a enfermeira Mary Lee Melder, que atua num centro de vacinação da Califórnia. Segundo Melder, a ordem nos postos é facilitar a vida de quem quiser receber a vacina, sem cobrar um documento americano ou comprovante de residência.
“Quando inauguramos esse espaço, pouco mais de um mês atrás, víamos longas filas, depois a procura caiu. Mas retomou com força depois que o CDC divulgou que pessoas vacinadas podem transitar sem máscaras”, afirma.
Além de viajantes vindos da América Latina, muitos americanos decidiram voltar aos Estados Unidos. Ainda que temporariamente.
Natural de Los Angeles e radicada em Tóquio, a guia turística Sarah*, 30, fez as malas e voltou para casa para se vacinar no fim de abril. O trecho Tóquio-Los Angeles custa cerca de R$ 10 mil.
O gatilho para Sarah (nome fictício, a pedido da entrevistada) foi ouvir a notícia de que o Japão só conseguiria concluir a vacinação de idosos no outono (entre setembro e novembro) para depois abri-la a outras faixas etárias. Idosos somam mais de 35 milhões no arquipélago que, atravessando mais uma onda de Covid-19, vacinou apenas 2,97% da população – o pior desempenho entre os países desenvolvidos.
Alvo de diversas críticas pelo ritmo lento da campanha de imunização e pela ausência de exames, o Japão é ainda anfitrião da Olimpíada, até segunda ordem marcada para 23 de julho.
“Chega de esperar”, ela decidiu, a fim de priorizar sua saúde, sobretudo mental. “Estou levando o isolamento social muito a sério desde o início da pandemia. Vivo sozinha no Japão, não tenho família para contar. É aterrorizante a ideia de ficar doente num país onde os hospitais estão lotados e talvez você não tenha sequer acesso a testes PCR”, relata.
Foi um risco calculado: Sarah preferiu viajar cerca de 10 mil km para se vacinar porque “na pior das hipóteses, se ficasse doente no trajeto, ao menos poderia passar essa tempestade junto a minha família; isso, para mim, é melhor do que ficar doente sozinha no exterior”. Uma vez imunizada, com certificado de anticorpos e passaporte nas mãos, ela pretende voltar à Ásia em junho.
Já a universitária Meg (nome fictício, a pedido da entrevistada), instalada em Fukui, está preparando a viagem de volta a Iowa em julho, o que também deve lhe custar cerca de R$ 10 mil. Imunocomprometida, ela está há meses esperando a vez para se vacinar como grupo de risco no Japão – o que era para ter acontecido em abril, adiou-se para junho, agora está previsto para agosto. “Quem sabe qual vai ser a próxima estimativa…”
Meg iria trabalhar como voluntária na Tóquio-2020. Ela buscou informações junto aos organizadores sobre a possibilidade de ser vacinada já que estaria exposta no mega evento esportivo. “A resposta foi muito vaga: a Tóquio-2020 vai continuar monitorando as políticas do governo [japonês] e considerar medidas dependendo da situação. Nem é preciso dizer que desisti de ser voluntária na Olimpíada.”
Personalidades japonesas também estão ansiosas com a demora para vacinar a população – há doses sobrando, falta logística. “Quero vacinas o mais rápido possível”, recentemente escreveu o empresário Hiroshi Mikitani, diretor-executivo da gigante de e-commerce Rakuten, no Twitter. “Tal qual a América.”
Destino: Canadá
Pré-pandemia, Valéria Bueno Ferreira Menquini, 65, viajou para Vancouver para visitar a filha, que há 3 anos é residente legal no Canadá. Era fevereiro de 2020. “Na época, nem se falava em pandemia. Sabia-se que tinha uma gripe importante, mas lá longe, na China”, conta a aposentada, que tem dois filhos vivendo no Canadá.
Pré-pandemia, Valéria Bueno Ferreira Menquini, 65, viajou para Vancouver para visitar a filha, que há 3 anos é residente legal no Canadá. Era fevereiro de 2020. “Na época, nem se falava em pandemia. Sabia-se que tinha uma gripe importante, mas lá longe, na China”, conta a aposentada, que tem dois filhos vivendo no Canadá.
A ideia inicial era passar 6 meses por lá, o que é possível, já que ela é aposentada e está hospedada na casa da filha — mas o prazo foi se estendendo. Com o agravamento da pandemia, fechamento das fronteiras e cancelamento dos voos, ela não se sentia segura para tentar voltar para o Brasil. O visto de turista foi prorrogado e tinha validade até março, mas Valéria pediu para estendê-lo mais uma vez por considerar perigoso viajar naquele momento.
À espera da resposta do governo, ela viu que o país já estava vacinando cidadãos de sua idade, mediante agendamento prévio em um site oficial que não dizia explicitamente que turistas não podem se inscrever. “Diz que é preciso apresentar a carteira de identificação do serviço de saúde, mas que se a pessoa não tiver a carteira ela não será impedida de ser vacinada”, conta Valéria, que decidiu arriscar, preenchendo os dados solicitados e agendando data e hora para a imunização.
Foi com o passaporte brasileiro e o visto de turista que Valéria foi à farmácia indicada, no dia marcado. Ela recebeu a injeção da AstraZeneca, sem nenhum questionamento. A segunda dose foi agendada para julho.
Valéria espera que seu pedido de prorrogação do visto seja aprovado para que ela possa receber a segunda dose no Canadá. Caso contrário, a aposentada terá de tentar em São Paulo, no Brasil. “Foi muito emocionante me vacinar, ainda mais por estar em um país que não é o meu. Não acho que peguei lugar de ninguém, pois se estão vacinando turistas é porque deve ter bastante vacina.” Até 25 de maio, 56,6% da população canadense já recebeu ao menos uma dose do imunizante.
Destino: Uruguai
2,4 mil km rodados em 48 horas
Residente no Brasil há quase 40 anos, o uruguaio Esteban Mateos Aguilar, 57, foi duas vezes de Curitiba à região fronteiriça do Chuy para se vacinar: uma pela primeira dose, em março; outra pela segunda, em abril.
Um bate e volta: cada trajeto somou cerca de 2,4 mil quilômetros rodados em uma janela de 48 horas. Aguilar dividiu o volante com um amigo uruguaio, também movido pelo desejo de se vacinar no país natal, onde teriam esse direito. “A organização em si da vacinação no Brasil é horrível. Por isso, decidimos viajar: no Uruguai, tínhamos a certeza da vacina”, afirma.
No Uruguai, até o momento, apenas cidadãos e residentes — isto é, aqueles que têm um documento uruguaio — podem se vacinar. O sistema para agendamento da vacina está aberto para a população de 18 a 70 anos e funciona pela internet, por telefone ou WhatsApp.
Aguilar preferiu ir até o Uruguai por não saber quando teria a possibilidade de ser vacinado no Brasil. “Pensamos nisso e no custo, pois foi um bate e volta. Não só o custo em termos financeiros, mas também em tempo, em desgaste. Consideramos tudo e pensamos: que preço tem a nossa vida?”, relata.
O questionamento foi decisivo para pegarem a estrada em busca da vacina. Entre os gastos com combustível, comida e hospedagem para um pernoite na região do Chuy, cada um dos amigos desembolsou cerca de R$ 1.600 pelas duas viagens.
“É cansativo, porque são aproximadamente 13 horas dirigindo. A vantagem é que fomos em duas pessoas e pudemos revezar [no volante]. Mas esse cansaço ia sendo compensado por toda a coisa boa que ia acontecer: a gente poder se vacinar”.
À época em que Aguilar fez a viagem, era obrigatório fazer uma quarentena de 14 dias e apresentar um resultado de PCR negativo para entrar no Uruguai. Como permaneceu na região fronteiriça do Chuy e não ultrapassou a aduana uruguaia, ele não precisou apresentar o teste e nem cumprir com o período de isolamento.
No dia 19 de maio, o governo do presidente Luis Lacalle Pou derrubou a exigência do isolamento para uruguaios e residentes que desejem retornar ao país e que já tenham sido vacinados contra o coronavírus. A modificação também vale para uruguaios e residentes que comprovem ter tido a Covid-19 até 90 dias antes da entrada no país.
No lado uruguaio da fronteira, os dois amigos receberam a Sinovac. A primeira sensação, diz Aguilar, foi de alívio. Em seguida, pensando nos familiares e amigos que estão no Brasil, bateu a tristeza. “É uma sensação estranha: você fica feliz por um lado, mas por outro fica preocupado com quem ainda não sabe quando vai tomar a vacina”, afirma.
No Uruguai, a campanha começou, de fato, no dia 1º de março. Em um mês, o país conseguiu vacinar todos os grupos prioritários – além de profissionais na linha de frente, professores, policiais e bombeiros. Depois, liberou a vacinação para cidadãos acima de 18 anos. Até 24 de maio, 46,3% da população já tinha recebido ao menos uma dose, o índice mais alto na América do Sul depois do Chile, que está na casa dos 50,3%.
A estudante brasileira Manuella Ibargoyen, 20, também foi vacinada no território uruguaio. Mas, no caso dela, a viagem não foi longa: nascida em Santana do Livramento, cidade do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o país vizinho, bastou dirigir cerca de 3 km a Rivera, no lado uruguaio, para receber o imunizante.
Filha de uruguaia, a jovem gaúcha pôde ser vacinada porque tem dupla cidadania – algo muito comum em regiões de fronteira. Na zona de divisa entre Brasil e Uruguai, há até uma expressão para casos como o de Manuella: “doble chapas”, em alusão a uma época em que os carros circulavam entre os dois países com duas placas, uma de cada território.
Cruzar a fronteira, ali, é literalmente atravessar uma rua. “Minha casa é do lado brasileiro, só não fui a pé porque [o centro de vacinação] era em um hospital mais para dentro da cidade de Rivera”, conta. De carro, Manuella foi e voltou em menos de meia hora. “Não levou 5 minutos para a vacina. Foi só mais o tempo de observação [cerca de 15 minutos após receber o imunizante] antes de voltar para casa”, diz.
A estudante diz que estava “sem expectativa nenhuma” de receber a vacina no Brasil. Ela agendou as duas doses pelo WhatsApp: 1º e 29 de abril. No meio tempo após a primeira dose, conseguiu um estágio em Pelotas, a 260 quilômetros de Porto Alegre, e foi para lá. Na data marcada, voltou a Santana do Livramento, a porta de entrada para Rivera. “Minha esperança é que a vacina chegue para todos no Brasil. É um direito de todo brasileiro.”
Procurado pela CNN, o Ministério da Saúde do Uruguai não soube informar quantos “doble chapas” receberam a vacina contra a Covid-19 até agora.
O Uruguai tem cinco departamentos que fazem fronteira com o Brasil. Entre eles, Rivera é o que tem maior percentual de vacinados (53,11% com a primeira dose e 42,20% com a segunda). Treinta y Tres é o que tem a menor taxa, com 44,98% de vacinados com a primeira dose e 32,76% com a segunda.