MP critica mudanças no Código de Processo Penal
Foto: Michel Jesus – 14.jul.2020/Câmara dos Deputados
Paralisada ao longo do último ano, a discussão do novo CPP (Código de Processo Penal) na Câmara tem mobilizado entidades do Ministério Público que discordam do substitutivo apresentado em abril pelo relator do texto, o deputado João Campos (Republicanos-GO).
Em uma nota técnica, cinco associações de promotores e procuradores criticam 48 trechos do substitutivo e classificam o texto como “unilateral jusfilosofia garantista”, avaliação da qual discordam outros especialistas em direito penal ouvidos pela Folha.
“As necessárias atualizações ao CPP não podem prescindir da observância dos postulados da efetividade dos direitos fundamentais, da tutela das vítimas, do devido processo legal, da vedação ao retrocesso e à proteção deficiente e da observância ao sistema acusatório”, diz a nota.
O projeto que modifica a lei de 1941 foi apresentado pelo então senador José Sarney (MDB-AP) em 2009. Aprovada no Senado, a proposta começou a tramitar em 2011 na Câmara e desde 2016 tem sido analisada e debatida por uma comissão especial.
O substitutivo, que ainda está sujeito a alterações, engloba 372 propostas de mudanças na legislação apresentadas por deputados desde 1997. Ao todo, são 827 artigos, 16 a mais do que o atual código.
Entre os trechos que os procuradores e promotores buscam retirar está o dispositivo do artigo 19 que estabelece que o Ministério Público “poderá promover a investigação criminal quando houver fundado risco de ineficácia da elucidação dos fatos pela polícia, em razão de abuso do poder econômico ou político”.
O exercício da investigação criminal por procuradores e promotores não está regulamentado em lei até o momento. De acordo com o CPP, a competência é da polícia judiciária, o que não exclui a possibilidade de apuração por outras autoridades.
Em meio à lacuna, o STF (Supremo Tribunal Federal) se manifestou sobre o tema em 2015, ao julgar um recurso extraordinário com repercussão geral que questionava o poder de investigação do Ministério Público em Minas Gerais.
Por 7 votos a 3, a corte rejeitou o pedido e firmou a tese de que o Ministério Público pode realizar investigações penais por autoridade própria e por prazo razoável, desde que respeitados os direitos e garantias dos investigados.
O procurador regional da República e ex-presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) Fábio Nóbrega afirma que o substitutivo retrocede ao estabelecer a investigação da instituição como subsidiária.
“A gente defende a investigação ampla sem restrições, como é conhecido pelo Supremo Tribunal Federal, não só por uma questão de constitucionalidade, mas também porque isso permite que o Ministério Público, quando entender conveniente e adequado, faça a investigação”, diz.
O procurador afirma que o relator reconheceu que cometeu um equívoco no trecho e que ele prometeu alterá-lo.
Roberto Livianu, o procurador de Justiça e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, compara o substitutivo com a PEC 37, que restringia a tarefa de investigar às polícias. Conhecida como “PEC da Impunidade”, a proposta foi rejeitada pela Câmara em 2013.
Livianu afirma que o substitutivo faz parte de uma sequência de movimentos voltados para “construir barreiras visando a impunidade” e proteção de pessoas poderosas, ignorando a decisão do STF e do próprio Congresso Nacional.
“É uma aberração. Quem tem que fazer esse juízo de conveniência é o sistema de Justiça. O Ministério Público precisa ter preservado na plenitude o poder de investigação”, diz.
Professor de processo penal da Escola do Ministério Público de Santa Catarina, o promotor Diego Barbiero afirma que a sociedade ganha quanto mais instituições estiverem aptas a investigar e que a redação cria um ambiente de incerteza.
“Há talvez o medo sobre a vagueza desses termos, o que pode criar um ambiente de insegurança jurídica e trazer prejuízo à serenidade investigativa, essencial ao aumento da atividade.”
Em nota pública, as entidades do Ministério Público e associações que representam policiais federais, militares, peritos criminais e bombeiros afirmam que diante da pandemia não há possibilidade de realizar uma discussão ampla sobre o tema, classificando a apresentação do substitutivo como “inoportuna”.
A avaliação é a de que o texto “concentra poder em poucas mãos e dificulta o trabalho de policiais e representantes do Ministério Público e do Poder Judiciário, apenas contribuindo, assim, para aumentar a impunidade e ampliar a violência”.
Associações de delegados das polícias Federal e Civil reagiram defendendo o texto de Campos, também delegado, e apontando viés corporativista pelo Ministério Público.
Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Paiva diz que o texto cria parâmetros de colaboração entre as instituições, que não devem competir entre si.
O delegado afirma ainda que o Ministério Público já está dentro da investigação o tempo inteiro, mas que ao conduzir o processo há risco de direcionamento do processo penal.
Gustavo Mesquita, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo, diz que o substitutivo corrige falhas e está em “perfeita consonância com a Constituição”. “Da mesma maneira como quem julga não acusa, quem acusa não deve investigar.”
O mesmo aspecto é defendido pela advogada Daniella Meggiolaro, presidente da comissão de direito penal da OAB-SP e vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Ela avalia a investigação pelo Ministério Público como inconstitucional.
“Não obstante a decisão do Supremo autorizando isso, nós entendemos que a possibilidade do Ministério Público investigar fere um dos princípios fundamentais do processo, que é a paridade de armas”, diz.
Especialistas em direito ressaltam que o papel investigativo do Ministério Público foi construído ao longo do tempo por meio da jurisprudência e sem limites legais. A avaliação é de que o substitutivo não extrapola ao regulamentar essa atuação.
“Ao contrário de limitar, o que o Código de Processo Penal vem fazer agora é regulamentar algo que teve início por meio de uma decisão judicial”, diz o advogado criminalista Rafael Serra Oliveira, diretor do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
“O Supremo falou que a investigação feita pelo Ministério Público é excepcional. A regra, portanto, é a investigação feita pela polícia. Sendo excepcional, ela precisa observar os mesmos limites impostos à polícia”, acrescenta Helena Lobo, professora de direito penal da Faculdade de Direito da USP.
“Não se trata aqui de quem tem razão, Ministério Público ou delegados. É uma questão de sistema. É preciso haver limites estabelecidos na lei, claramente.”
Raquel Scalcon, professora de direito penal da FGV, afirma que não discorda da ideia de uma investigação complementar, mas que a redação do substitutivo precisa melhorar nesse aspecto. “O que nós podemos discutir é se aqueles critérios de supletividade ou de complementaridade são os melhores.”