Pretos e pobres são presos injustamente com base em fotos
Foto: Reprodução/ Folha
A máquina estatal que alçou o Brasil ao posto de país com a terceira maior população carcerária do mundo também arrasta, nas fendas de suas engrenagens, uma massa invisível de inocentes.
Pessoas que tiveram suas vidas interrompidas por até duas décadas foram atiradas de volta à sociedade sem pedidos de desculpas após o reconhecimento dos erros e ficaram marcadas pelo preconceito e pelo medo de voltarem ao inferno.
São em sua maioria negros e, quase em sua totalidade, pobres.
A Folha seguiu nos últimos 12 meses os rastros dessa máquina Brasil afora. Encontrou cem histórias de pessoas encarceradas injustamente no país e traçou um diagnóstico dos principais erros que levam a essas prisões.
Embora sejam cem os casos detectados, a massa de inocentes pode ser muito maior porque, pela falta de transparência, os erros não são reconhecidos oficialmente e só se tornam públicos pelo trabalho da imprensa.
São três as principais falhas desse processo, destrinchadas após análises de milhares de páginas de processos e dezenas de entrevistas, e que correspondem a 84% dos casos de injustiças: procedimentos de reconhecimento feitos ao arrepio da lei, pessoas presas no lugar de outras por erro de identificação e prisões baseadas só nas palavras de policiais e sem investigação.
Em relação à porta de entrada do cárcere, o levantamento da Folha revela que, de 100 pessoas presas indevidamente, 42 delas foram vítimas da maneira como as autoridades realizaram os procedimentos de reconhecimento, muitas vezes induzindo vítimas a apontarem o suspeito escolhido.
Esse foi o caso do vendedor de balas Wilson Alberto Rosa, 37, preso na zona sul de São Paulo em janeiro de 2017 sob a suspeita de ter participado de um roubo cinco meses antes, na mesma região da capital paulista.
O responsável pela prisão foi um policial civil, marido da vítima, que, após cismar com o vendedor de balas, deu voz de prisão e mandou que ele se ajoelhasse para que fosse fotografado. A foto foi enviada para sua mulher, que teria reconhecido o rapaz.
Rosa foi levado a uma delegacia. Ao invés de seguir para o distrito da área, a cerca de 2 km dali, como seria correto, o investigador levou o vendedor para a unidade policial em que ele trabalhava, a 20 km do local do crime.
“Aí estava eu e mais quatro caras brancos. Você está procurando um negro, o único cara negro lá. Os outros lá mais claros que eu. E [a vítima] vai falar que é quem?”, disse o vendedor à Folha.
Na delegacia, a mulher voltou a reconhecer o vendedor apesar de ele ser 10 cm mais alto do que ladrão, segundo seu próprio relato ao registrar a ocorrência. Rosa tem 1,80 m e o suspeito foi descrito por ela como tendo 1,70 m de altura.
Rosa passou 32 dias na prisão até que o juiz do caso, ao analisar todas as irregularidades cometidas na prisão e no procedimento de reconhecimento, determinou sua soltura. A passagem, porém, marcou a ficha dele.
A única semelhança entre Rosa e o assaltante era a cor deles. Ambos são negros.
O levantamento da reportagem mostra, no caso dos reconhecimentos, que a raça tem peso ainda maior nos erros.
Dos casos analisados pela Folha, 60% dos inocentes presos eram negros. Em um recorte apenas de prisões injustas causadas por reconhecimentos incorretos, esse percentual sobe para 71%.
Redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens aumentaram a quantidade de fotos de possíveis suspeitos circulando –muitas vezes sem qualquer ligação com crimes– e apresentadas às vítimas.
Entre os alvos dessa dinâmica está a dançarina Bárbara Querino, que ficou um ano e oito meses na prisão sob a suspeita de participação em um roubo porque a vítima, após receber uma foto dela via WhatsApp, considerou-a parecida com a criminosa por causa da cor da pele negra e do cabelo encaracolado.
Para tentar mostrar a fragilidade da acusação, a defesa incluiu uma montagem de fotos da dançarina e da atriz Taís Araújo, ambas com rosto apagado e o mesmo penteado, conforme mostrou reportagem do site Ponte.
“Se de fato é possível afirmar, denunciar e condenar uma pessoa pela semelhança de seus cabelos, como podem afirmar que a verdadeira integrante da quadrilha é Bárbara Querino, e não a atriz Taís Araújo?”, questionou a defesa.
Segundo especialistas, quando são sugestionadas a reconhecer alguém, como ao receber fotos da polícia indicando a possibilidade de prisão de um criminoso, as vítimas podem criar falsas memórias e acusar inocentes. A prática de apresentar um suspeito isoladamente é conhecida como show-up.
O motorista Marcos (nome fictício), 39, é testemunha de como memórias irreais podem parecer reais. Em 2019, levou dois jovens inocentes à prisão após apontá-los com os autores de um roubo praticado contra ele.
Os policiais localizaram os suspeitos após a descrição de suas roupas e tipo físico. Ambos eram negros. Quando os viu, Marcos não teve dúvidas de que os dois eram os culpados.
“No calor da emoção, acabei reconhecendo a pessoa errada. Depois em vídeo, nas filmagens do local, a gente vê que muda a estampa da camiseta, mas a altura e a aparência eram as mesmas”, disse.
Dias depois, porém, o motorista cruzou na rua com os verdadeiros criminosos.
Marcos procurou a polícia para tentar retificar seu depoimento e se retratar da injustiça cometida, mas os policiais não lhe deram muita atenção. Disseram para que voltasse outro dia, durante o plantão da equipe que efetuou o flagrante. O motorista preferiu, então, escrever uma carta e entregá-la aos advogados dos jovens.
Diante dessa experiência, o motorista faz um apelo aos policiais e pede para que não eles fiquem apenas nas palavras das vítimas, as quais podem cometer erros sinceros, e que continuem as investigações para afastar todas as dúvidas.
“Às vezes, por mais que a gente fale que é a pessoa, as autoridades poderiam segurar a pessoa ali e procurar imagens de câmeras. Hoje em dia, todo lugar tem imagem, então podia ter uma atenção melhor sobre isso.”
O artigo 226 do Código de Processo Penal diz que a vítima deve ser convidada a descrever o autor do crime. Depois, a pessoa suspeita “será colocada ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”. Muitas vezes, no entanto, esse não é o procedimento da polícia.
A reportagem verificou que em alguns casos são aceitos reconhecimentos com 80% ou 90% de certeza. Em outros, vítimas dizem reconhecer apenas pelos olhos criminosos que usavam toucas ninjas no momento do crime.
Também há situações em que policiais nem se dão ao trabalho de tentar encontrar o suspeito para que a vítima possa visualizá-lo pessoalmente.
O entregador Tiago Vianna Gomes, 27, morador da Baixada Fluminense, foi vítima desse tipo de investigação desleixada. Ele foi preso quando tentava ajudar a rebocar o veículo de um colega, sem saber que o carro era produto de roubo. Respondeu um processo por receptação e foi absolvido.
A foto dele, porém, acabou sendo colocada em um álbum de reconhecimento da polícia e, a partir dali, ao menos oito processos foram abertos contra ele depois de ser apontado como integrante de uma quadrilha que atuava numa região onde jamais esteve.
Mesmo tendo endereço e residência fixos e contatos telefônicos, o entregador nunca foi procurado pela polícia para que sua identidade fosse confirmada ou para que pudesse explicar a confusão. Só soube das suspeitas quando começou a ser preso.
“A vítima chega na delegacia, aponta minha foto, e a polícia vai lá e me prende. Eu até perguntei para a doutora [defensora]: ‘Isso não vai acabar mais nunca?'”, disse.
Segundo o levantamento de Folha, os livros de suspeitos são uma causa frequente de prisão de inocentes. Pesquisas mostram que, quando quem os observa ou faz o reconhecimento é de raça diferente da do suspeito, há mais chance de erros.
Advogada especialista em estudo de gênero, raça e sistema prisional, Dina Alves diz que a construção do negro como suspeito padrão no Brasil data do período pós-escravidão.
“Da noite para o dia, o que era corpo mercadoria foi transformado em sujeito de direito sem direitos. Precisava-se naquele momento ter tecnologia de governo para contenção, extermínio, prisão e construção dos estereótipos, como vadios, delinquentes, vagabundos”, diz. “Isso não está só na mentalidade dos policiais. A produção racial do suspeito padrão também está na mentalidade da sociedade.”
De acordo com a apuração feita pela reportagem, as identificações incorretas por meio de documentos são a segunda maior causa de prisões de inocentes: 23 casos. São pessoas que ficaram atrás das grades porque tinham o mesmo nome de um criminoso ou porque tiveram os documentos levados por criminosos posteriormente usados em crimes.
As consequências de dias, meses ou anos no cárcere são carregadas por toda a vida. Heberson Oliveira ficou dois anos injustamente preso sob a suspeita de estupro. Na prisão, foi estuprado por 60 presos e contraiu HIV.
Eugênio Fiuza passou 17 anos preso injustamente pelo mesmo tipo de crime. No período de prisão, perdeu contato com o filho, e quase todos os familiares morreram. Aos 71 anos, ele ainda espera receber uma indenização do Estado.
Outros inocentes presos também não receberam pedidos de desculpas, não foram indenizados e ainda foram condenados a pagar as custas dos processos.
Apesar de pipocarem casos de inocentes presos em quantidade cada vez maiores, com um em cada quatro casos analisados concentrados nos últimos três anos, poucas medidas concretas foram adotadas no país para tentar reverter esse quadro.
Uma delas foi uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) de 2020 que coloca a realização correta dos procedimentos de reconhecimento de suspeitos como uma necessidade, e não mais como uma mera recomendação.
Para forçar o cumprimento desse dispositivo legal, passou a absolver suspeitos presos apenas com base em álbuns de fotografias, ou similares.
“Quando a gente pensa em memória, a gente não pode imaginar que a memória é como uma câmera fotográfica, que vai lá e registra de forma sequencial o que aconteceu. Não é assim que funciona. O artigo 226 é da década de 1940, então ele não traz uma série de avanços e discussões sobre a psicologia do testemunho. A gente tem um dispositivo legal que é obsoleto e, mesmo sendo obsoleto, ele não é observado”, diz a advogada Marina Dias, diretora do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que atua em projeto para promover mudanças que evitem prisões injustas, denominado Prova Sob Suspeita.
Dias afirma ainda que, antes do reconhecimento, é preciso alertar a vítima sobre o fato de que a investigação continuará mesmo se a pessoa não reconhecer um suspeito na hora. Após a descrição do criminoso, é necessário formar um grupo de pessoas comprovadamente não ligadas ao caso e parecidas com o suspeito, de modo que ele não se destaque de qualquer maneira. É o que os especialistas costumam descrever como alinhamento justo.
Segundo ela, o abandono de algumas práticas corriqueiras da polícia ajudaria a evitar erros, como deixar de exibir fotos via redes sociais à vítima e não ligar para ela pedindo que reconheça o criminoso.
Como parte de um movimento global para evitar novas prisões de inocentes por reconhecimentos errados, diversas entidades e especialistas têm se movimentado no sentido de estabelecer um protocolo atualizado, no âmbito do novo texto, que tramita na Câmara dos Deputados.
Entre as sugestões estão o veto ao álbum de suspeitos e à apresentação de um único suspeito à vítima, seja em reconhecimento fotográfico ou presencial. Além disso, o reconhecimento deve ser corroborado com outros elementos de prova e não pode ser usado isoladamente para comprovar a culpa de alguém.